O Chevrolet Corvette é um dos ícones da indústria automotiva americana, ao lado do Ford Mustang. Desde sua primeira versão, lançada em 1953, mesmo com o fraco motor Blue Flame de seis cilindros, o ‘Vette é o carro esporte americano com um pé na Europa. Além disso, há uma forte ligação na história do Corvette com outro automóvel ícone americano.
Por anos a fio, o conceito de carroceria de compósito de fibra de vidro, leve e resistente, suspensão independente traseira e motor V-8 formavam a receita da GM para o carro se aproximar dos modelos europeus, sucesso no período pós-guerra.
A evolução de geração em geração, desde a orignal C1 ainda com eixo rígido traseiro até a atual C7, elevou os padrões do Corvette em todos os aspectos. Qualidade e desempenho (não apenas em linha reta) eram as principais deficiências do modelo, hoje uma referência em como fazer um carro relativamente barato de alto desempenho.
A produção em série do carro jogou os números de volumes anuais para o alto, salvo os primeiros anos em que o projeto ainda estava alavancando os número de vendas por ser algo novo para os americanos. Não demorou para que o Corvette fosse para as pistas enfrentar os rivais americanos e internacionais. Os potentes motores V-8 de corrida disponíveis, aliados ao baixo peso do carro e a suspensão com potencial para ser calibrada para as pistas, logo emplacaram sucesso nacional.
As corridas de carros esporte nos EUA estavam ganhando público nos anos 1950, com a participação dos fabricantes e de equipes cada vez mais profissionais. Além dos carros locais, muitos pilotos corriam com carro importados, especialmente os vindos da Europa, já reconhecidamente rápidos e competitivos.
A frota de carros europeus de corrida era veloz, porém frágil. Os robustos motores V-8 da América eram muito superiores neste quesito. Não era difícil ver Ferraris e Maseratis com motores Ford ou Chrysler instalados no lugar dos originais que quebraram e o conserto era caro e demorado.
Um texano envolvido com exploração de petróleo chamado Gary Laughlin foi um destes pilotos que ficou com seu Ferrari encostado em uma oficina depois de quebrar o motor numa corrida. O reparo seria caro demais, além do tempo necessário para importar peças da Itália. Como bom americano, queria aproveitar o que havia de bom em seu mercado local, e um carro de corrida com motor americano seria uma boa ideia. Era a oportunidade de juntar a confiabilidade americana com o desenho e agilidade européia.
Gary era revendedor Chevrolet e uma pessoa muito bem relacionada, tanto na indústria como nas pistas de corrida. Dois de seus contatos nas pistas eram os texanos Carroll Shelby e Jim Hall, pilotos e preparadores, com boa experiência em carros vindos da Europa, como Aston Martins, Ferraris e Maseratis. O senso comum entre os três texanos ditou como deveria ser o carro de Gary: a base italiana, leve e funcional, com motor americano resistente e potente.
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Na época, Shelby tinha experiência internacional em competições. Já havia pilotado Aston Martins, Ferraris, Healeys e Maseratis tanto nos EUA como na Europa. Disputou corridas de F1 em 1958 e 1959, além da incrível vitória em Le Mans em 1959.
Hall também já havia pilotado carros como Maseratis, Listers, Coopers e Ferraris na mesma época de Shelby, era um bom piloto e tinha as mesmas tendências de inventor que Carroll, modificando seus carros para extrair o melhor desempenho possível.
A facilidade para conseguir componentes para o projeto dos texanos e até carros inteiros da Chevrolet por conta de seu contato como revendedor fez Laughlin escolher o Corvette como a base de seu projeto. Shelby e Jim Hall, que depois ficou mundialmente famoso com os Chaparral e que também era revendedor GM, começaram a traçar o plano de como deveria ser o Corvette, e a necessidade de uma carroceria mais eficiente seria primordial para o carro ser bem sucedido. Na época, boa parte dos carros vencedores vinham da Itália, então era para lá que os olhares se voltaram.
Com a ajuda de seu amigo Peter Coltrin, jornalista e fotógrafo californiano com diversos contatos na Europa, Gary conversou a respeito do projeto com Sergio Scaglietti, o chefe da Carrozzeria Scaglietti, em Modena. A idéia era enviar alguns Corvettes para a Itália para receberem uma nova carroceria mais aerodinâmica e eficiente que a original de plástico reforçado com fibra de vidro.
Scaglietti concordou com o projeto, e não apenas um carro seria feito, mas três carrocerias, porém deveria ser feito na maior discrição possível, uma vez que a Ferrari era um de seus principais clientes e Enzo Ferrari poderia não aceitar muito bem a idéia da Scaglietti trabalhar para outras pessoas em projetos similares, como uma forma de concorrência à própria Ferrari. Na época, Sergio estava trabalhando no Ferrari 250 TdF (Tour de France), o qual seria semelhante ao novo Corvette-Scaglietti.
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A parte da negociação com a Scaglietti estava resolvida, agora Gary precisava conseguir os carros para enviar. Ele tinha contato com Ed Cole, membro do alto escalão da GM, que facilitou a retirada de três chassis modelo 1959 da linha de montagem antes de receberem a carroceria. Dois chassis eram equipados com motor V-8 283 pol³ (4,6 litros) carburados com dois quadrijets e caixa automática Powerglide e um chassi foi equipado com câmbio manual de quatro marchas e injeção mecânica de combustível da Rochester, já na configuração de 320 cv que só estaria disponível ao público dois anos depois.
Este chassi equipado com injeção de combustível foi o primeiro a ser trabalho na Itália. O desenho previamente feito para o Ferrari TdF foi modificado para se ajustar ao entreeixos e as demais dimensões do Corvette. Uma solicitação de Laughlin foi que a grade dianteira original do carro fosse mantida para deixar uma marca de que aquele carro ainda era um Chevrolet Corvette, e quem sabe atrair a atenção da GM para uma possível série especial ou uma produção em pequena escala.
Não custa lembrar que Gary e Jim Hall eram revendedores GM, logo qualquer negócio do tipo seria bem vindo, bem como Shelby e novamente Hall que tinham interesse em criar um carro esporte competitivo o suficiente para colocar nas pistas e comercializar aos demais pilotos americanos.
O primeiro carro foi entregue de volta a Gary Laughlin já em 1960, mas o resultado foi um pouco diferente do que ele esperava. A nova e bela carroceria de alumínio era significativamente mais leve que a original (180 kg a menos), mas o acabamento de montagem não era dos melhores. Como o carro foi feito sem grandes movimentações para permanecer escondido dos olhos da Ferrari, não se gastou muito tempo e esforço nos detalhes. Este primeiro carro muitas vezes é conhecido como Corvette Italia.
A diretoria da GM logo ficou sabendo do projeto com a Scaglietti, e na época os programas relacionados a carros de corrida e de alto desempenho estavam sendo cortados em todos os lugares do EUA por conta de programas de segurança automotiva. Também seria uma concorrência interna com o próprio Corvette de produção normal.
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Não demorou para esta onda esbarrar no projeto de Laughlin, e os outros dois carros tiveram que voltar da Scaglietti inacabados, também por pressão de Enzo Ferrari que ficara sabendo do desenvolvimento. Carroll Shelby recebeu um telefonema direto de Ed Cole solicitando que tudo fosse cancelado e os carros trazidos de volta para os EUA.
Os três carros não eram idênticos, cada um com peculiaridades e detalhes diferentes, como a grade dianteira de Corvette do primeiro carro. O segundo carro possui uma admissão de ar no capô e saída laterais de ar e design da traseira mais suave, enquanto que o terceiro carro, pintado de azul, tem saídas laterais de ar atrás das rodas dianteiras, entrada no capô e pequenos filetes traseiros na carroceria. Os dois últimos carros foram completados nos EUA.
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Nenhum deles foi devidamente ajustado para compensar o menor peso da carroceria, a suspensão precisava ser recalibrada, mas nenhum deles foi parar em uma pista de corrida. O carro de Shelby e de Hall foram completados e depois vendidos, passando de mão em mão de colecionadores ao longo dos anos, mas até hoje os três estão preservados. Carroll Shelby mal viu o carro e já o colocou à venda pois precisava de dinheiro e tinha que continuar a procura de alguém que topasse uma parceria para seu projeto de carro esporte.
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Este projeto foi o embrião do Shelby Cobra, o híbrido anglo-americano de maior sucesso de todos os tempos que culminou na lenda que hoje é o Cobra, o carro feito por um fazendeiro que destruiu Ferraris nas pistas.
Os Corvettes Italia poderiam ter sido o caminho para o sucesso de Carroll Shelby com a GM, caso tivesse seguido em frente e um volume de produção tivesse sido feito. Talvez o lendário Shelby Cobra nunca tivesse existido, nem os Mustangs GT350 e GT500 preparados por ele, pois os contatos de Carroll com a Ford se intensificaram depois do fim do projeto do Corvette.
São os rumos da história onde algumas portas fechadas levam a novos caminhos, e às vezes este caminho é mais iluminado que o anterior. Shelby hoje é sinônimo de Fords velozes, se fosse com a GM, poderia não ter sido tão bem sucedido. Nunca saberemos.
MB