A Gebrüder Beutler (Irmãos Beutler) foi fundada por Ernst Beutler e Fritz Beutler em 1943 na cidade de Thun, no cantão suíço de Berna. A Beutler se concentrou em exemplares únicos ou pequenas séries. Embora o empreendimento sempre tenha operado à sombra do famoso coachbuilder suíço Graber, a Beutler fez um nome para si através de projetos sem exageros porém elegantes e de execução impecável, e geralmente de alto custo.
A especialidade da Beutler eram carrocerias para chassis europeus leves (se bem que ela abriu uma exceção para carros americanos da Packard e Cadillac). Em 1955 o nome da empresa passou a ser Gebr. Beutler & Cie. No início de 1960 ficou claro que, como resultado da introdução de carros monobloco e o número cada vez menor de fabricantes que poderiam fornecer chassis, diminuiria a demanda por veículos especiais. Em 1966 a empresa se chamava Carrosserie Beutler. De 1981 em diante o nome da empresa passou para Carosserie + Spritzwerk Beutler AG (onde Spritzwerk é oficina de pintura). Mas em 8 de setembro de 1987 foi declarada a falência da empresa e os carros remanescentes passaram para a categoria de grandes raridades disputadas por colecionadores do mundo inteiro.
A Beutler trabalhou com muitas marcas de vários países, a saber:
Inglaterra: Bentley – Austin-Healey – Bristol – Daimler – Jaguar – Jowett – MG
França: Salmson – Bugatti – Delahaye – Citroën – Simca
Itália: Alfa Romeo – Ferrari Lancia
EUA: Cadillac – Packard
Alemanha: BMW – DKW (Auto Union) – Maico – Porsche (356) – VW (1200 e 1500)
Protótipos: Bristol Cupê 1948 – 1957, BMW 1960 Coupé – Maico 1957 Coupé.
Mas, fiéis à coluna, vamos tratar de um carro especial, o Beutler-Volkswagen Cupê, dos quais foram feitas 28 unidades entre 1953 e 1958, algumas conversíveis. A motorização foi do Fusca, mas alguns receberam opcionalmente mecânica Porsche. Um veículo certamente pouco conhecido por aqui.
A Beutler se divertiu cortando alguns Fuscas e fazendo uns picapes e alguns furgões:
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Talvez o mais emblemático carro feito pela Beutler tenha sido o Porsche desenvolvido juntamente com Ferry e seu pai Ferdinand Porsche quando este voltou da França, onde injustamente foi mantido como prisioneiro de guerra. Trata-se do Porsche 356, dos quais foram fabricados os primeiro seis pela Beutler com componentes Porsche. O primeiro deles foi exposto no Salão de Genebra de 1949 no estande da Beutler!
Vamos deixar esta parte da história para voltar ao Leitmotiv desta matéria: o Beutler-Volkswagen Cupê — também conhecido por Beutler Special, num teste feito no início dos anos 50 pelo conhecido repórter e escritor automobilístico Jerrold E. Sloniger, especializado em Porsche e Volkswagen, e que vamos transcrever aqui. Uma maneira de conferir os fatos com os olhos de um especialista daquela época (deixamos os verbos no presente para manter o clima do texto):
Pois é, beleza em automóveis custa dinheiro… Individualidade para que você brilhe por ter um carro único também custa caro. E quando ambos de juntam, como foi o caso do Beutler-Volkswagen Cupê, a etiqueta de preço no seu lançamento, no modelo standard com a mecânica do Fusca, atingiu 17.000,00 francos suíços (SFr) da época, posto em Thun, Suíça.
Mas o que é que isto significa nos dias de hoje? Sem um termo de comparação esta informação perde muito de seu sentido real. Com a ajuda do site oficial de estatística do governo suíço, considerando o ano de 1954 como data inicial e 2014 como data final (a estatística para 2015 só será fechada no ano que vem) temos o espantoso valor atualizado de SFr 75.307,00!!! Abaixo a tela da atualização do Landesindex der Konsumentenpreise (Índice nacional dos preços ao consumidor), especificamente do Teuerungsrechner (calculador dos aumentos de preços):
Pois é, este valor foi cobrado por um veículo construído sobre a plataforma de um Fusca, obviamente muito melhorado, luxuoso e totalmente feito à mão, mas o que é que se compraria hoje em dia por este valor lá na Suíça? Vários carros caem nesta faixa de preço, mas que tal um Audi A6? Seu valor lá hoje varia entre SFr 72.800,00 e SFr 76.000,00 dependendo da versão escolhida.
Continuo a reportar a opinião do Jerrold E. Sloniger daqui em diante:
No entanto, a melhor recomendação para o estilo, qualidade de mão de obra e acabamento deste carro alternativo baseado no Volkswagen é o fato de que as pessoas ainda vão pegar suas carteiras mesmo depois de ouvir o preço total.
Este Volkswagen Especial, produzido pelos irmãos Beutler em suas oficinas localizadas perto de Berna, será o precursor de uma “série especial”, que será customizada, de caso a caso, de acordo com os desejos do cliente. Eles vão até mesmo alterar ligeiramente a forma dos pára-lamas ou a linha do teto, se o cliente assim o desejar.
Foi feita referência ao modelo “standard”, porque é difícil dizer o que está incluído no seu preço-base. Toques de luxo como: lampejador do farol, espelho retrovisor anti-ofuscamento, isqueiro de charuto, esguicho do pára-brisa, palas de sol acolchoadas com espelho de cortesia na direita, velocímetro Ghia, relógio e mostradores de óleo e combustível, e uma alça de apoio para o passageiro, são apenas alguns dos os acessórios “padrão”.
Opções de acessórios constantes do carro usado para o teste — que Ernst Beutler utiliza para o transporte privado — incluem: faróis de neblina, rodas e tambores de freio da Porsche, termômetro de interior/exterior, teto solar, rádio, volante da Nardi, bem como dupla carburação e coletores de admissão Beutler.
A carroceria Beutler era montada sobre um chassi Volkswagen absolutamente original, fato que explica parte do custo. Eles têm que comprar carros prontos e sucatear as suas carrocerias. O carro do teste estava montado sobre o mais recente chassi com estabilizador na frente e o seu manejo é muito parecido ao de um Volkswagen normal — só que tinha algo a mais.
O peso adicional de 50 kg, juntamente com um centro de gravidade mais baixo e uma distribuição de peso um pouco melhor, deram ao carro uma sensação mais estável nas curvas rápidas, mas ele implora por mais potência.
Este Beutler Special foi equipado com dois carburadores Solex 32 PBIC, conforme mencionado, mas ficou nisto, nenhum preparo a mais. Esta opção (um adicional de uns SFr 800,00) consegue apenas equilibrar o peso adicional na aceleração, mas a carroceria delgada com superfície de arrasto menor justifica a afirmativa da Beutler de uma velocidade máxima de 130 a 140 km/h. O carro de teste era muito novo o que impediu a realização de um teste pleno.
A posição do motorista contribui muito para a sensação desportiva deste carro charmoso. Os bancos são design Beutler e eles dão o suporte necessário para coxas e costas exatamente onde ele deveria estar. As faixas de tecido centrais, ajudam a segurar o motorista no lugar, colaborando com o desempenho do desenho “semi-concha” dos bancos. Os bancos podem ser recuados para permitir a condução com braços esticados.
A alavanca de câmbio encurtada, exatamente onde sua mão cai, opera a caixa de câmbio Volkswagen normal, que é adequada para o carro. Em todo o caso, a alavanca mais curta permite mudanças de marchas ainda mais precisas.
A visibilidade de um Beutler é excelente. Ambos os pára-lamas dianteiros estão onde um motorista médio pode vê-los sem ter que se espichar. A larga janela traseira aliada a um cofre do motor baixo propiciam uma visibilidade traseira excelente.
Não é de se supor que qualquer carro seja perfeito, mas as notas negativas que poderiam ser dadas ao Beutler são todas decorrentes de itens que poderiam ser facilmente evitados graças à natureza de compra por encomenda do carro. O pior item foi o acabamento de esmalte preto brilhante na parte superior do painel; ele pega reflexos que podem ser muito perturbadores.
De menor importância foi a falta de identificação nos interruptores e o fato de a chave de ignição ter a forma do acionamento do pisca-pisca. Além disso, apenas para ser exigente, eu preferiria um tacômetro ao invés do relógio. Por último, os limpadores de pára-brisa limpam muito bem o lado do motorista, mas deixam um ponto cego na frente do passageiro.
Na parte traseira, os Beutlers têm um banco “para uso ocasional” integralmente acolchoado e estofado, mas que é muito raso para levar adultos a qualquer distância que for. Com os bancos dianteiros recuados o espaço para as pernas atrás é extremamente tímido também. Mas o encosto deste banco traseiro rebate propiciando acesso a uma boa área para bagagem.
Aliás, o próprio compartimento dianteiro é uma das maiores surpresas do Beutler. Pelos padrões da Volkswagen, ele é vasto e, o mais importante nisto, tem uma forma muito aproveitável. O tanque de combustível e o pneu sobressalente são colocados horizontalmente sob o carpete, deixando livre um compartimento oblongo com uma grande capacidade.
O motor está alojado na traseira em um compartimento espaçoso, com uma tampa que é acionada de dentro do carro. Um ponto negativo é a colocação do motor um pouco mais baixa e mais à frente do que em um carro normal, em ligeiro detrimento do acesso para manutenção.
O acabamento no Beutler Special é absolutamente irrepreensível. Não só todas as costuras e articulações são lindas, mas também as portas e tampas são fechadas com uma leve pressão e com um agradável “clic” que indica a qualidade de montagem. Cada painel do carro é feito à mão, o que ajuda a explicar as 12 semanas que os dois irmãos Beutler e sua equipe levam para produzir um Beutler Special.
Este não é, reconhecidamente, um carro para aqueles que se concentram em fazer economia, mas o preço é plenamente justificado pela qualidade. Além disso, o projeto é uma daquelas aves raras que tem uma aparência muito boa. Simplificando: é um carro muito, muito difícil de se deixar de lado.
Para encerrar eu comento que não foi só a Beutler que aproveitou a mecânica do Fusca para fazer seus veículos de forma independente na Europa, excluindo aqui a Karmann e a Hebmüller, coachbuilders que foram contratados pela Volkswagen para produzir as versões conversíveis do Fusca. Falo especificamente dos seguintes exemplos Dannenhauer & Stauss (Dannenhauer & Stauss-Karosserien), Rometsch (Karosserie Friedrich Rometsch), Drews (Gebrüdern Drews), Ghia-Aigle (Carrozzeria Ghia-Aigle) e da Stoll (Karosseriebau Stoll). Cada um deles tem a sua própria história com suas interessantes e, em regra, caras construções especiais. Os carros destes coachbuilders que sobreviveram até hoje são disputadas peças de coleção e muitas delas podem ser vistas em eventos como o de Bad Camberg ou Hessig-Oldendorf. Talvez assunto para uma próxima coluna…
AGr