Há cinquenta e sete anos, no dia 3 de janeiro de 1959, sábado, um grupo de pioneiros fabricou o primeiro “Volkswagen de Passageiros” nacional. Uma história sem um registro claro, ofuscada pela posterior inauguração da fábrica, envolta em mitos e que merece ser lembrada por todos.
Olhar para 57 anos atrás não é uma tarefa simples, em especial quando praticamente não restaram registros fidedignos de detalhes, somente um relato básico da sequência dos acontecimentos. Mas este é o desafio diuturno de quem procura resgatar fatos históricos. Uma das coisas que é imprescindível é olhar para o passado com os olhos e o sentimento da época. De nada vale pensar em condições atuais, com fábricas amplamente automatizadas, limpas e providas de toda a infraestrutura necessária, para avaliar o que ocorreu na incipiente “fábrica” da Volkswagen do Brasil no fim da década de 1950.
Fazendo uma linha de tempo, lembramos que a Segunda Guerra Mundial, na Europa, terminou em maio 1945, e o que era para ser a fábrica do Volkswagen de Passageiros (naquele tempo o apelido Käfer na Alemanha, muito menos o apelido Fusca no Brasil, não haviam sido criados) se resumia a escombros fumegantes depois de prolongados ataques aéreos que só pouparam, cirurgicamente, a usina térmica do complexo industrial que servia também à cidade construída no entorno. Apenas seis anos depois do fim da guerra, em 1951, a Brasmotor já montava Sedans a partir de CKDs. Oito anos depois do fim do conflito, em 1953, a Volkswagen se estabelecia como empresa no Brasil, inicialmente num galpão alugado na rua do Manifesto, em São Paulo, ainda trabalhando com CKDs.
Três anos depois, 1956, começa a construção da fábrica na via Anchieta, em São Bernardo do Campo, e um ano depois, em setembro, sai o primeiro veículo Volkswagen nacional, uma perua Kombi. E somente 14 anos depois do fim da guerra sai o primeiro “Volkswagen de Passageiros” nacional, em 3 de janeiro de 1959.
Algo realmente admirável para uma empresa destruída em grande parte e que contou com a ajuda da Força de Ocupação inglesa e de recursos carreados pelo Plano Marshall para seu soerguimento. A partir deste ponto vamos deixar um pouco o rigor histórico de lado e passaremos a nos referir ao “Volkswagen de Passageiros” como “Fusca”.
A Fábrica Anchieta, no início de sua construção, já em 1956 tinha uma ala “em condições” que permitiram a transferência da linha de montagem da rua do Manifesto para lá, mas, na realidade estas “condições” eram muito precárias. Relatos de pioneiros da época do início da fabricação dos Fuscas nacionais reportam que, por exemplo, os escritórios sofriam muito em dias de chuva devido ao barro do canteiro de obras; em dias secos o flagelo era o pó e, pior ainda, todo o ambiente era infestado por ratos e ratazanas, tornando o trabalho bastante penoso.
Ainda não foi possível encontrar uma foto do primeiro Fusca saindo da linha de montagem, semelhante àquela da Kombi 00001— fica lançado o repto para a procura deste documento histórico.
Foi feita uma pesquisa na Volkswagen do Brasil e aí se verificou que, infelizmente, se veicula há muito tempo fotos de carros com vigias traseiras ovais, que foram fabricados até 1958. como sendo carros 1959. Este é um dos mitos errados propalados pela própria filial brasileira em livros e publicações internas e externas, mas está em tempo de reconduzir os fatos às suas origens corretas.
Nosso primeiro Fusca nacional já saiu com a vigia traseira retangular, marcando uma das mudanças importantes no visual do carro, que de duas janelinhas até o 1953 primeira-série passou para oval na segunda série deste ano, vigia esta que durou até 1958; a vigia retangular permaneceu, mas aumentaria 20% em área no ano-modelo 1967.
Foi feito contato com o Museu da Volkswagen na Alemanha (Dra. Ulrike Gutzmann – Historische Kommunikation – Volkswagen Aktiengesellschaft), igualmente sem sucesso, por lá não há material sobre o primeiro Fusca brasileiro. Ocorre que todo o esforço de marketing foi concentrado pela Volkswagen do Brasil para a inauguração da fábrica que ocorreu no dia 18 de novembro de 1959. Deste evento há fotos e registros, mas, ao que tudo indica, este ofuscou o registro histórico da fabricação do primeiro carro ocorrido 11 meses antes.
Também não resultou em muito sucesso uma longa pesquisa no Centro de Memória da Prefeitura de São Bernardo do Campo, onde foram pesquisados jornais e revistas da época.
Em matéria de Fusca foi encontrada uma propaganda de Natal da Volkswagen do Brasil no jornal A Vanguarda, de São Bernardo do Campo, edição de 20 de dezembro de 1958 com um interessante desenho de Fusca. Infelizmente não havia uma foto do primeiro Fusca entre o material pesquisado.
Adiante foi encontrada na edição de 24 de janeiro de 1959 deste jornal uma nota que fala sobre a então incipiente produção do Fusca nacional, somente 20 carros por dia. A ampliação desta quantidade dependia do término de construção de outras alas da fábrica.
Mas o fato histórico ora pesquisado ocorreu no sábado 3 de janeiro de 1959, quando ficou pronto o primeiro “Volkswagen de Passageiros” fabricado com um índice da nacionalização de 54%. Seis dias depois este carro era vendido pela concessionária Marcas Famosas, que junto à Brasilwagen, Cibramar, Bruno Tress e Sabrico fazia parte do grupo de revendedores autorizados Volkswagen (ainda não se falava de concessionárias) na capital de São Paulo. Esta relação fazia parte de um anúncio veiculado na página 2 da seção Assuntos Gerais do jornal Folha da Manhã em sua edição de 7 de janeiro de 1959.
O primeiro Fusca brasileiro foi vendido a Eduardo Andrea Matarazzo. Encontrar este anúncio foi resultado da pesquisa feita junto ao Banco de Dados do Grupo Folha; na foto abaixo está o Edmir Lima, daquele departamento. Ele colaborou na pesquisa e também não conseguiu encontrar uma foto do primeiro Fusca na linha de montagem. A sua pesquisa resultou na “descoberta” da primeira propaganda do Fusca brasileiro publicada na Folha da Manhã, antigo jornal do Grupo Folha.
Realmente, o início da fabricação do Fusca nacional foi tudo menos algo glamoroso. Foi na verdade uma tarefa de heróis anônimos, enfrentando dificuldades inimagináveis nos dias de hoje, sem esmorecer, abrindo o caminho para uma gloriosa trajetória de um carro que, afirmo, ainda é necessário para países do terceiro e quarto mundo.
O Fusca ainda aparece em estatísticas de venda de veículos usados com algum destaque. Transpondo esta situação para rincões distantes deste gigantesco país-continente, onde as estradas ainda são precárias e um carro confiável, robusto e de manutenção simples e conhecida é uma necessidade, vemos como o Fusca ainda é vital para muitos usuários que fazem de tudo para mantê-lo andando. Há casos em que o uso do Fusca é levado até a extremos, como foi flagrado em Barcelos, que fica no rio Negro, no coração da Amazônia. Lá existia um que era o único carro da comunidade e que um dia foi um Fusca, e mesmo com a falta de peças, serviu a todos por muitos anos!
Acho que a trajetória que se seguiu anos a fio, durante a qual o Fusca trouxe felicidade e progresso para milhões de brasileiros, pois foram produzidos mais de três milhões de carros no Brasil, é muito bem retratada numa propaganda cujo mote é: “Qual é a posição social do dono deste carro? ”
Segue-se o texto desta propaganda que é uma obra-prima:
“Qual é a posição social do dono deste carro?
-É melhor não arriscar nenhum palpite.
Você pode pensar que o dono é um bancário e depois descobrir que é um banqueiro…
Ou pensar que o dono é um estudante, e depois descobrir que é o próprio reitor da Universidade…
O Volkswagen é assim mesmo. Ele nada revela sobre seu dono. Ou melhor, quase nada.
Porque alguns traços de caráter são revelados automaticamente pelo próprio fato de o dono ter um VW.
Por exemplo, o senso prático.
Quem tem Volkswagen resolve o problema do transporte da maneira mais racional.
É senso de economia.
Quem tem VW, faz economia em cada quilômetro.
E faz economia também na hora de vender, pois o VW é o carro que melhor compensa o dinheiro investido na hora de comprá-lo.
Adivinhar a posição social do dono de um Volkswagen é difícil.
Mas é fácil conhecer alguns traços muito importantes de seu caráter.
Você por acaso tem um VW (Fusca)?
Parabéns.
Independentemente de sua posição social. ”
O tempo em sua desabalada carreira leva as pessoas inevitavelmente ao esquecimento, mormente nos dias de hoje quando o tempo parece encurtar-se ante à avalanche de tarefas que caem sobre nossos ombros. Aí é que se torna importante dar uma parada de vez em quando para lembrar de fatos importantes que marcaram nossas vidas e o progresso de nosso país. O início da fabricação do Fusca nacional foi um destes fatos que este artigo tem como objetivo lembrar e preservar para o futuro.
AG
Nota do Autor: este material foi originalmente publicado na minha coluna “Volkswagen World”, do Portal Maxicar (www.maxicar.com.br), e esta publicação ocorre de comum acordo com o meu amigo Fernando Barenco, gestor do MAXICAR, companheiro de muitos anos de trabalho em prol da preservação dos veículos VW históricos e de sua interessante história. O conteúdo foi revisado. O seu conteúdo é de interesse histórico e representa uma pesquisa bastante aprofundada do assunto.
A coluna “Falando de Fusca” é de total responsabilidade do seu autor e não reflete necessariamente a opinião do AUTOentusiastas.