“Os Outros Que Se Danem”, esse é o título do livro do James Bond que comprei num sebo. Lançado no Brasil pela Editora Civilização Brasileira, foi escrito por Ian Fleming em 1954. Seu título original é “Live And Let Die”, nome adotado no filme homônimo de 1973 (“Com 007 viva e deixe morrer” no Brasil). Não é e nem pretende ser uma obra literária; é só para diletantismo, assim como os filmes da série 007. E o livro faz isso bem. É agradável de ler, tanto que rapidamente o devoramos. Livro bom é aquele que nos entristece por estarmos chegando ao seu final. O resto é conversa fiada.
O impacto de vê-lo ao vivo é inesquecível: Blower Bentley (foto do autor)
Pelo livro se vê que Ian Fleming era um autoentusiasta. Logo no início a história começa com Bond indo a um encontro com Mister M, o chefão, para saber qual seria sua próxima missão.
“O cinzento Bentley conversível, de 1933, um 4,5-litros com compressor Amherst-Villiers, fora trazido minutos antes da garagem onde era guardado, e o motor tinha pegado assim que Bond calcara o arranque automático. Depois de acender os dois faróis de neblina, Bond seguiu com extremo cuidado por King’s Road e subiu a Sloane Square até sair no Hyde Park.”
Os argentinos têm mais e melhores clássicos do que nós
O livro foi lançado em 1954 e a história era passada na atualidade de então, e como o Bentley era de 1933, deduz-se que o carro de Bond tinha ao redor de 20 anos. E que carro! O Milton Belli já escreveu sobre os Bentley dessa época, final dos anos 20 e começo dos 30, sua época de glória, repleta de vitórias em várias 24 Horas de Le Mans. Dessa glória a marca colhe frutos até hoje.
A Bentley passou por um período de trevas, enquanto esteve nas mãos da Rolls-Royce, que comprou a marca com o intuito de anulá-la. Em vez de comprar e fechá-la e ponto final, tratou de se aproveitar do prestígio da marca colocando o símbolo da Bentley em modelos que eram praticamente Rolls-Royces. Com isso a Bentley nesse período perdeu seu apelo esportivo. Só depois que a Volkswagen a comprou em 1998 é que os Bentley voltaram a ser como no princípio, grandes, luxuosos, pesados, supervelozes e bem construídos esportivos.
Carro para autoentusiasta
É interessante notar que Ian Fleming fez questão de citar certinho o modelo, um 4,5-litros com compressor Armhest-Villiers, e lendo a bem completa matéria do Milton, ficamos sabendo que esse modelo, apesar de até mais potente que o Bentley de 6,5 litros, que é aspirado, não obteve sucesso nas pistas, principalmente devido a quebras mecânicas. Mas Bond, James Bond, não o usava nas pistas. Usava-o no dia a dia. Não dá para imaginar uma escolha mais autoentusiástica que essa. Simplesmente não dá. O escritor acertou na mosca. Quem sai por aí com um carro desses é autoentusiasta de corpo e alma.
Anos atrás, na Autoclásica — melhor feira de automóveis clássicos da América Latina, em Buenos Aires —, tive a oportunidade de ver ao vivo esse carro. Ele é impactante, de embasbacar, de tirar o fôlego. A gente fica estático e o queixo cai. Que máquina linda! Fica-se imaginando como será dirigi-lo. Pesadão, potente, alavanca de câmbio pesada, bruta; volante enorme, com cordame enrolado em sua pegada para que não escape das mãos; pedais brutos, espaçados uns dos outros; painel de avião, mostradores como devem ser, grandes, com fundo preto e números e ponteiros brancos. O desejo de guiá-lo atinge a volúpia.
A alavanca de câmbio ficava do lado de fora
Esse das fotos estava com sistema de escapamento Brooklands, que além da caixa do abafador em forma de paralelogramo na lateral central do carro, tinha a sua ponteira achatada, como um rabo de peixe, como se vê nas fotos. Tudo para abafar o ronco. Brooklands foi o primeiro autódromo construído. É anterior até ao de Indianápolis. Foi inaugurado em 1907 e como havia residências nas suas cercanias, para não incomodar os moradores esse tipo de escapamento passou a ser obrigatório para todos os carros que ali corressem, daí o nome “Brooklands” dado a ele. Os Bentley arrasavam nessa pista. Era de alta velocidade, tinha forte superelevação nas curvas e para isso nada melhor que alta potência, já que à fluidez aerodinâmica ainda não era dada muita importância. Grande potência, grande motor, grande carro = Bentley.
Escapamento tipo Brooklands
E a história do livro segue, com James Bond indo parar lá na Flórida para acabar com um bandido da pesada, um tal de Mr. Big, que era um gênio do mal. E lá um agente americano boa-praça, um tal de Leiter, que será o seu parceiro, o recebe.
E é assim que Bond vê os carros americanos da época:
“A visão do carro de Leiter afugentou-lhe as preocupações. Bond apreciava os carros velozes e gostava de dirigi-los. Detestava a maioria dos carros americanos. Careciam de personalidade e da pátina de perícia individual que distingue os carros europeus. Não passavam de “veículos”, análogos na forma, na cor e até mesmo no som das buzinas. Produzidos para serem usados um ano e depois dados como entrada de pagamento pelo modelo do ano seguinte. Todo o encanto de dirigir tinha sido suprimido deles com a abolição da mudança mecânica das marchas e as inovações na direção e suspensão. Todo o esforço fora eliminado, bem como aquele íntimo contato com a máquina e a estrada, que infunde destreza e sangue-frio ao volante europeu. Para Bond os carros americanos não eram mais que confortáveis escaravelhos de metal em que se podia viajar com uma das mãos na direção, o rádio ligado a todo volume e as janelas fechadas para evitar correntes de ar.”
Mas Leiter arranjara um velho Cord, dos poucos carros americanos de personalidade, e Bond criou ânimo novo ao pular para dentro do automóvel, ouvir a sólida dentada na caixa de mudanças e o som viril do grosso cano de escape. Deve ter mais de quinze anos, pensou Bond, e no entanto é ainda um dos carros de aspecto mais moderno que se pode imaginar.
Seguiram pela estrada, ….”
Cord 801, o carro do agente Leiter
Por aí se vê que não é de hoje que se discute sobre como deve ser um carro de autoentusiasta. O 007 bem que entraria nessa discussão, se alguém aqui tivesse peito de encarar a sua leve e nervosa Beretta. Para mim, tudo bem, já que estou do lado dele. Esse Cord do livro, que provavelmente deve ser um 801, também tive a oportunidade de ver ao vivo na mesma Autoclásica. Só que esse modelo que vi tinha câmbio pré-seletivo e seletor, como se pode ver nas fotos. O seletor consiste de uma alavanquinha que corre por essa pequena grelha cromada. Quando o sujeito quer mudar a marcha, ele leva a alavanquinha para a pretendida marcha e quando ele pressiona o pedal da embreagem a marcha é mudada. Esse sistema era um opcional, pois vi outro Cord da mesma época com câmbio manual normal, que nem o Cord do agente Leiter.
Esse Cord tinha tração dianteira. O transeixo ficava à frente do motor, que era um V-8 fabricado pela Lycoming. Ele não era lá muito potente, desenvolvia só 127 cv, mas um V-8 é sempre um V-8 e só o seu ronco já nos anima, assim como animou o Bond. O grande destaque do Cord era a sua estabilidade, muito dela conseguida também por ele ter um baixo centro de gravidade. Como ele não tinha que ter um cardã passando por baixo, já que a tração era dianteira, ele podia ser mais baixo.
A tração dianteira lhe permitiu ter baixo centro de gravidade, herança das corridas de Indianápolis
Acho que o Bond se animou com o Cord mais por causa de seu desenho extremamente moderno e intimidante.
Bom, é isso aí: nem só de Aston Martin vive o verdadeiro Bond, James Bond. Seria legal se fizessem um filme da série ambientado na época em que foram escritos, década de 1950, com um Bentley desses, com tecnologia antiga de espionagem e tudo o mais. Assim variava um pouco e ficaria mais interessante que essa correria desenfreada dos filmes de hoje.
AK