Continuando com “causos” do meu segundo livro, aí vai um causo que pode ter ocorrido com muitos, sempre com um final surpreendente. O interessante nestes causos é a possibilidade que leitores se identifiquem com o que está sendo descrito. Recebi muitos testemunhos de leitores do meu Livro II contando como suas experiências coincidiram com este ou aquele causo.
No Reader’s Corner uma história de vida girando em torno de uma “Velha Senhora”…
Leopoldo
Sérgio Albuquerque Brandão
Meu amigo Fábio, à época também estudante de arquitetura, era o dono do “Leopoldo”. O “Leo”, para os mais íntimos, era um Fusca 70 branco, original de rodas e quase todo o resto, mas com um belo kit 1600 “cabeça plana” no motor.
Para os padrões da época, andava uma barbaridade. Para nós, os amigos, era simplesmente o Fusca do Fábio, mas para ele era sempre o “Leopoldo”.
Uma bela tarde de sábado, no Rio de Janeiro, o Fábio liga para uma amiga, convidando-a para sair com ele. Papo vai papo vem e ela pergunta se alguém mais vai com eles.
Desligado como sempre, e achando que o mundo todo sabia quem (ou o quê) era o Leopoldo, o nosso amigo responde do seu jeito habitual: “Ora, vamos eu você e o Leopoldo…”
Na hora marcada ele chega à casa da garota, sendo recebido pela empregada, que lhe pede que aguarde ali na sala. Sua patroa já vem.
Na sala, Fábio encontra outra garota que ele não conhecia, arrumadíssima, pronta para a noite. Sua amiga aparece quase ao mesmo tempo, faz as apresentações e já se dirige para a porta, quando o Fábio, sem entender a presença da terceira pessoa pergunta: “E ela… vai sair com quem? Conosco?” e sua amiga responde: “Ué… ela vai com o Leopoldo…”
Agora, caro leitor, imagine a situação do meu desligado amigo, que teve que explicar para a outra garota que ela havia se embonecado toda, em grande estilo, para sair com um Fusquinha 70…
E a foto do Léo?
Depois de muita procura o Sérgio Albuquerque Brandão encontrou uma foto do “Leopoldo” um “velho” companheiro de peripécias da juventude, perpetradas junto com o amigo Fábio que aparece na foto com uma amiga comum a Marta. Esta foto é inédita, pois ela não tinha sido achada a tempo para participar do livro, mas agora ela completa esta publicação.
“Leopoldo”, nascido em 1970 e registrado no Rio de Janeiro como EC-2804, era o terror dos carros ditos mais “modernos”. Graças a um kit 1600 “cabeçudo” e ao diferencial 8:35 original do 1300, era o terror dos moderninhos, especialmente nas arrancadas. O Sérgio guiou muito este carro, junto com seu amigo Fábio, que era o dono do carro, eles fizeram a Rio-Vitória com tempos e médias horárias que só a juventude dos vinte e poucos explica e que eles eram loucos o bastante para fazer. Depois da colocação do kit 1600 vieram vários instrumentos auxiliares, dentre os quais um conta-giros, raro naqueles dias, se destacava como a cereja do bolo. Alargadores nas rodas traseiras aumentavam a estabilidade do carro.
Reader’s Corner
da Coluna Falando de Fusca
O causo que se segue foi enviado pelo amigo de Facebook Luiz Eduardo Costa. Ele conta como uma Velha Senhora fez parte de sua vida, acompanhando momentos de alegria e de dificuldade. O seu amor pela Kombi que seu pai teve foi marcante e isto fica claro neste texto. Certamente este causo terá seu lugar reservado num próximo livro de causos para o qual estou coletando material.
LEMBRANÇAS DE UMA VELHA SENHORA
Por Luiz Eduardo Costa
Eu me lembro como se fosse hoje: Foi em julho de 1977. Ela chegou garbosa, limpinha para o evento importante. Eu já sabia que meu pai iria trazê-la, fiquei esperando em cima do muro em nossa casa no bairro da Pedra Branca em São Paulo. Naquela época ela ainda era um neném. Tinha só um ano de uso.
Estou me referindo a uma Kombi ano 1976, standard. As primeiras T2. O veículo era da empresa em que ele trabalhava na época. Pediu emprestado para levar minha tia, irmã de minha mãe, meus quatro primos, meu tio e toda a bagagem para o Aeroporto de Congonhas, embarcar para os EUA. Para eles as coisas não estavam boas por aqui.
Tentaram a vida lá fora e se deram bem. Nunca mais voltaram a morar aqui. Coubemos eu e minha irmã na frente com meu pai.
Fiquei triste, mas a emoção de andar de Kombi foi mais legal. Imaginem, eu com nove anos, ali do lado do meu pai, já sonhando em dirigir. Coisa de menino…
Depois disso vi a Velha Senhora poucas vezes. Coisa rápida. Meu pai tinha uma Variant 1972 vermelha (outra paixão!!) que quando levava para abastecer no mesmo posto em que a empresa tinha conta, eu a via lá para lavar; ia até ela e dizia “oi”. Parece coisa de louco tratar um carro como gente.
No final de 1979, a empresa passou por uma reestruturação e meu pai foi demitido. Com 45 anos iria arranjar emprego onde? Vendeu a Variant para pagar as prestações da casa, o dinheiro acabou, cortaram nossa luz, nossa água. 1980 foi um ano péssimo para nós. A economia ainda estava bem.
A indústria vendeu mais de 1 milhão de veículos. Mas essa fartura não bateu em nossa porta.
Já estávamos na região do ABC há quase dois anos, ali ao lado da Mercedes e da Ford.
Passamos necessidades. Comida só o que sobrava da merenda da escola, que eu e minha irmã levávamos vasilhas plásticas para guardar. Tempos difíceis…
Veio 1981. A indústria tomou uma derrocada vendendo metade do que vendeu em 1980. Greves de metalúrgicos, demissões em massa e nada de emprego para meu pai, que sempre gostou de trabalhar e já se encontrava depressivo com isso. Minha mãe conseguiu trabalho de faxineira numa transportadora, minha irmã, então com 15 anos, de caixa de supermercado de bairro. Eu embora procurasse não tinha achado nada para fazer.
Quando meu pai conseguiu trabalho no bairro da Lapa em São Paulo numa empresa de nome se não me engano Siderúrgica FIEL a antiga empregadora o chamou de volta. Ficou meio receoso, mas aceitou. Iria tirar a empresa do “vermelho”. Um funcionário do departamento de cobrança estava (não sei como) recebendo as duplicatas dos clientes.
Comprou carros e casas para renda. Meu pai quis um carro para trabalhar, pois iria assumir dois serviços: entregar peças para as fabricantes e receber as duplicatas. Mas com a crise, a empresa não podia comprar um outro veículo.
Solução: colocar a Velha Senhora para andar de novo; ela estava com o motor travado no pátio da empresa.
E assim foi feito. Naquela noite meu pai chegou radiante em casa. De Kombi, só para uso dele até nos fins de semana. Que bom ter um carro em casa de novo! Mas ela não estava exatamente como tinha visto da última vez. A ferrugem corria solta por portas, caixas, longarina dianteira e para-lamas. Estava abandonada e suja.
Com alguns trocados que ganhava aos domingos trabalhando na lanchonete da igreja, comprei alguns produtos de limpeza para deixá-la bonita novamente. Cera, massa de polir, para-ferrugem, pretinho… E ainda um belo banho por dentro, pois a Kombi é dos poucos carros que se pode lavar dentro. Tudo para convencer meu pai a deixar-me guiá-la, nem que fosse um pouco. Eu já com 14 anos, corpinho de criança de 10 anos.
Meu pai até foi legal comigo, deixou-me guiar a Kombi algumas vezes. Sai-me bem. Mas iria durar pouco.
Certo dia ele foi fazer umas cobranças no Rio de Janeiro. A empresa deu dinheiro para ele ir e voltar de avião. Mas ele para economizar foi de ônibus à noite, e voltaria de avião no começo da tarde.
Vi a Kombi muito suja na garagem e quis fazer-lhe uma surpresa. Abaixei o freio de mão até perto do portão e dei um bom banho nela. Mas errei tremendamente por falta de experiência em colocá-la para frente com os chinelos molhados. Meu pé esquerdo escorregou e eu fui de encontro com a parede. E o que é pior: com as portas abertas. Não amassou muito, apenas o para-choque, mas as portas saíram do lugar. Desci imediatamente, me sentia um criminoso. Minha mãe veio lá da cozinha já com a sentença de morte: — Tenho pena da sua alma hoje!!
Nem quero estar aqui quando seu pai chegar!
E não é que passados uns 15 minutos encosta um táxi na porta e era ele! Voltou de avião para chegar mais cedo. Ao ver que algo estava errado, nem precisou perguntar, pois minha mãe destramelou a matraca como advogada de acusação. Ele xingou, falou, falou a tarde toda. Muito. Coisas horríveis. Não o recriminava, pois ele estava certo. A Velha Senhora era nosso ganha-pão.
Eu não sabia, mas ele a havia comprado da empresa e pagava aos poucos com serviço. Um funileiro do bairro colocou tudo no lugar no mesmo dia.
Mesmo assim não me convenci de que, como meu pai dizia em seus discursos, eu nunca iria dirigir. Passaram-se uns três meses e eu meio com medo pedi novamente para que ele me ensinasse. Receoso, deixou, mas numa longa descida e em porto morto num horário de pouco movimento.
Durante algum tempo se resumia a isso. Nunca abandonei a Velha Senhora com o asseio. Todos os domingos ela tomava um bom banho com acabamento, mas sem as chaves. Tudo bem, estava por perto dela o que já me deixava feliz.
Certo domingo de manhã cedo, acordamos para ir a missa e para minha surpresa, no caminho ele ofereceu para que eu guiasse. Quando chegamos perto do ponto em que eu parava para devolver-lhe o carro ele me disse: -“Hoje vamos em frente, põe terceira ai e vamos embora! ”
Meu coração pulou de felicidade!!! Terceira e depois quarta… 60 km/h!
Que felicidade!!! Meu pai me tranquilizou: “Me enganei a seu respeito. Você guia bem!!!
Como são as coisas!
Passados alguns dias ele caiu na rua, dentro de um bueiro mal fechado ocasionando a quebra da clavícula. E agora? Como fazer para trabalhar? Foi aí que veio o convite: “Vamos trabalhar juntos? ”
Você vai guiando e eu vou do lado. — De que jeito? Podemos ser pegos pela polícia! — disse eu.
Mas o velho sempre deu um jeito, ninguém reparava isso na rua. Nem polícia passava e percebia. Era outra época.
E assim São Paulo ficou pequena para mim. Rodávamos o dia inteiro. Meu pai melhorou e passou a confiar em mim. Sempre fui muito responsável ao volante. A coisa tomou vulto, pois em 1990 tive que abandonar minha faculdade de arquitetura, troquei de emprego da área administrativa para operacional, abracei a profissão de motorista.
Foi o ano em que a Velha Senhora foi-se embora por um motivo bem nobre: ajudar nas despesas médicas do meu pai que teve uma séria queda, ocasionando fratura exposta na casa em que estava construindo em Jaguariúna, SP. Foi triste, mas por uma boa causa.
Graças a Deus nestes 26 anos de profissão, cresci na profissão, hoje trabalho com um ônibus de 23 metros.
Nunca matei ninguém, nem cachorro. Apenas dois acidentes com pequenos danos materiais.
Os anos se passaram, e devido ao acidente meu pai não pode mais dirigir Kombis. Adotou um bom e velho Fusca 1300 1976. Em 2013, ele já fraco do coração, teve que vendê-lo, pois não conseguia mais dirigi-lo.
Na noite de 9 de novembro de 2013, ele nos deixou. Menos de um mês depois a Velha Senhora se despediu da linha de montagem. Foi e ainda é muito duro para mim. Estranho como possa parecer, foram quase juntos embora.
Deixaram um legado de boas lembranças e boas virtudes que meu filho Henrique ama e cultiva: o avô, o Fusca e a Kombi…
AG
A coluna “Falando de Fusca” é de total responsabilidade do seu compilador e dos autores dos causos e não reflete necessariamente a opinião do AUTOentusiastas.