Nesta matéria vamos apresentar mais um “causo” do meu segundo livro, agora a história da Viatura “262” do DSV (Departamento de Serviços Viários) que foi recuperada pela ação do Coronel Marcondes e que, hoje, continua “na ativa”, mas como Viatura “001”, e participa com destaque das cerimônias da corporação; como o Coronel Marcondes destaca no seu depoimento.
No READER’S CORNER apresentamos um caso de amor entre o dono e seu Fusca que, mesmo após a partida dele, continua, agora na pessoa de seu neto.
“262”
Coronel Clodomiro Ramos Marcondes
Como a maioria dos brasileiros cinquentões, eu também tive um Fusca. Foi meu primeiro carro e seu ano era 62. Uma delícia, considerando-se que aprendi a dirigir num Fusca 61, “canela seca”; para os mais novos, a primeira marcha só era engatada com o carro parado ou, com muita habilidade, com o carro andando devagar e “no tempo certo” do motor.
Já estava na Academia de Polícia Militar, onde ficaria por cinco anos, em regime de internato. Com meu Fusca, sempre dividindo a gasolina com meus colegas de turma, fiz passeios e viagens deliciosas. Mas não é sobre este Fusca que desejo contar as voltas que a vida pode dar.
Em 1973, recém-saído da Academia, Aspirante a Oficial, ao chegar à minha primeira Companhia de policiamento, na zona leste da capital de São Paulo, um Fusca novo e reluzente (Rádio-Patrulha de Trânsito) me esperava para dividir comigo novas aventuras, algumas mais arriscadas, mas sempre prazerosas.
Acabava de ser lançada a sirene eletrônica, hoje tão comum nas viaturas de polícia e emergência de forma geral. A velha sirene elétrica estava com seus dias contados. Sobre o teto da viatura alguma coisa parecida com um chapéu-coco, em plástico vermelho transparente, com luzes afixadas em um disco que girava às custas de um motorzinho de limpador de para-brisa, se constituía na mais moderna forma de sinalização visual e acústica de viatura policial.
Com a vibração natural do jovem patrulheiro, quase que desejávamos que o velho Motorola (rádio) nos chamasse para alguma emergência e assim pudesse o Fusca policial, dotado daquele moderníssimo aparato de sinalização, “singrar” a Radial Leste, ou qualquer outra via, em busca da ocorrência irradiada. Lembro-me que no período noturno a sinalização de luzes giratórias, inédita, chamava a atenção de todos.
Mais uma vez o Fusca, agora no desempenho da atividade profissional, tornara-se companheiro inseparável. Lá estávamos nós no policiamento de trânsito, nos jogos do Morumbi, nos principais corredores da Zona Leste, escoltando os presidentes da Republica quando em visita à nossa capital etc.
Era do interior daquele Fusca que assistia à chegada do Ano Novo; lembram que naquela época a Corrida de São Silvestre acontecia durante a passagem de ano? Pois é, aquele Fusca e eu nos lembramos. Afinal, éramos sempre escalados para o evento.
A nossa carreira, no entanto, nos leva a constantes mudanças e, em razão disso, fui obrigado a abandonar a minha querida 262, isto mesmo, 262 era o prefixo da viatura que significava: 2º Batalhão, 6ª Companhia, 2ª Viatura (a 1ª era a do Comandante da Companhia, lógico).
Os anos foram passando e minha carreira foi me afastando cada vez mais do Policiamento de Trânsito. A Polícia se modernizava dia após dia, até que, como por encanto, Fusca era coisa do passado. Mas será…
Quase 25 anos depois do início desta história, por volta do ano 2000, já promovido a Coronel, como prêmio (ou castigo…) recebi a missão de Comandar o Policiamento de Trânsito da Capital de São Paulo. Para nós, policiais militares de carreira é, de fato, uma honra comandar a unidade de policiamento na qual iniciamos nossa vida profissional, a despeito dos problemas que sabia iria enfrentar.
Depois de algum tempo de trabalho árduo, que teve como recompensa o menor número de mortos registrados na capital paulista em acidentes automobilísticos nos últimos 30 anos, ao relembrar que o policiamento de trânsito, naquela época altamente especializado, tivera início com o Fusca, tive a notícia de que alguns deles, heroicamente, ainda estavam na ativa e outros, na oficina aguardando leilão para, quem sabe, virarem sucatas.
Movido pela curiosidade decidi por uma visita ao pátio de veículos inservíveis e que aguardavam pelo leilão. Para minha surpresa lá estava a 262, sem o brilho de outrora e bem danificada. Como salvar aquela velha companheira daquele destino ingrato? Como aceitar passivamente que aquela viatura que transportou parturientes ajudando no nascimento de diversas crianças e que, também transportando vítimas de acidentes, deve ter salvo outras tantas vidas, agora não tivesse ninguém que a salvasse?
Após estudos de viabilidade, nos quais prevaleceram o coração sobre a razão, decidimos; a 262 seria restaurada e transformada em viatura símbolo do Comando de Policiamento de Trânsito.
Da decisão à ação existiu uma grande distância. Não se podia gastar verba pública naquela empreitada. Graças ao apoio de funcionários da oficina de manutenção que se dispuseram a trabalhar em suas horas de folga ao longo dos meses e do apoio da RONTAN, tradicional empresa de veículos especiais e que em 1973 havia fornecido o sistema de sinalização daquela viatura, é que, aos poucos, a 262 foi renascendo. Foram conseguidas peças em clubes de Fusca, com amigos e, depois de algum tempo, a emoção de dar a partida naquele motor recondicionado equivaleu a uma volta no tempo…. Cuidou-se para que o acabamento de pintura fosse o mesmo utilizado em 1973, ou seja, corpo amarelo com para-lamas pretos. Naquela época a identificação das viaturas (prefixos e dizeres) não era feita em adesivos e sim através de moldes de borracha vazados sobre os quais se aplicava tinta preta em spray. Estes moldes, a partir de tapetes de borracha, foram cuidados e manualmente refeitos, com o zelo, inclusive, de se manter o número de emergência policial da época, 227-3333, hoje 190.
Meses se passaram até que a 262 pudesse desempenhar seu novo papel; abrir caminho e dar as boas vindas às novas viaturas que chegassem ao CPTran e, imponentemente, ser a encarregada de abrir qualquer desfile cívico do qual participasse o Comando do Policiamento de Trânsito.
Com a extinção do CPTran, medida considerada polêmica hoje, confesso que temi pelo futuro da 262, mas, graças a novos oficiais que também gostam do Fusca e mais ainda, que preservam a história da nossa Polícia Militar, descobri a 262 sendo cuidada com carinho em seu novo lar; o Gabinete de Ensino do Trânsito.
Conforme pode ser visto na foto, seu prefixo atual é 001, uma homenagem à viatura que se tornou símbolo do Policiamento de Trânsito e uma lembrança viva do apogeu desse policiamento na capital paulista.
Recebi em 21 de março de 2016 as seguintes considerações do Coronel Marcondes sobre a sua participação como autor de um causo:
Não imaginava a repercussão do livro “Eu amo Fusca”, até que recebi um telefonema de um alto executivo de uma grande empresa, que queria presentear um amigo também amante de Fusca. Para minha surpresa, após pesquisar na internet, ele chegou até mim para saber se eu teria algum exemplar do livro, uma vez que sua procura no mercado teria sido em vão, edição esgotada. Recorri aos amigos da gráfica responsável pela impressão da obra e consegui três exemplares, um com o qual atendi o pedido feito pelo executivo e dois que estou guardando a sete chaves.
Em outra ocasião, visitei a Fundação da Polícia Federal, em Brasília, sendo recebido pelo seu presidente. A certa altura da conversa, o presidente indagou-me: Quer dizer, coronel, que o senhor também gosta de fusca? Disse que sim, mas quis saber o porquê da pergunta. Sua resposta foi que também soubera que havia sido colaborador do livro de “causos” sobre Fusca e daí a conversa mudou para histórias de ambos sobre o nosso amigo em comum, o Fusca.
Aconteceu, também, um fato marcante no ano passado (2015). Como ex-comandante do Comando de Policiamento de Trânsito, fui convidado para a comemoração de mais um aniversário daquela unidade. Até aí, nada de mais, o que me surpreendeu foi no encerramento da solenidade, quando teve início o desfile de viaturas. A viatura que “puxou” o desfile foi a 262, agora batizada de 001, passando a ser a madrinha das novas viaturas (foto anexa). Ainda bem que temos oficiais e comandantes que deram continuidade à perpetuação da viatura que entrou para a história por todo o serviço prestado e, naquele momento, embora pareça um pouco de exagero, senti que estávamos homenageando as dezenas de vítimas que foram por ela socorrida e também aos dedicados policiais que se expuseram de todas as formas para proteger o cidadão paulistano.
Vida longa ao 001.
READER’S CORNER
da coluna Falando de Fusca
Durante a pausa da palestra que proferi em Taubaté no dia 5 de março de 2016 a Primeira Dama do CAAT – Clube de Automóveis Antigos de Taubaté, a Silvia, me mostrou umas fotos em seu celular e me contou o causo sobre o seu saudoso pai que reproduzo abaixo. Mais um causo emocionante sobre o amor de um dono por seu Fusca e que merece ser registrado aqui.
O FUSCA DE MEU PAI
por Silvia Salles de T. Fusco
Em 1974 meu pai, Hélio Salles, comprou um Fusca 1500 branco, que seria seu companheiro pelos próximos 38 anos.
Comprou o Fusca, com pouco mais de 1.000 quilômetros rodados, de uma médica vizinha, que não gostou do carro e para sorte dele, resolveu vendê-lo.
Nesta época, ainda solteira, ele me convidava para dar umas voltas e em uma avenida deserta, me passava o volante me ensinando os macetes da condução, sempre elogiando o carro.
Numa destas saídas, já mais confiante, mas ainda sem carteira, fomos andar em uma estrada perto e para nosso azar, fomos parados por um guarda rodoviário que nos multou. Foi a única multa do carro em 38 anos.
Depois, já casada, quando meu pai vinha me visitar, de longe escutava o barulho típico do carro e sabia que era ele.
Junto com minha mãe, foi inúmeras vezes a Ubatuba, a Campos do Jordão e o carro nunca o deixou na mão, sempre um grande companheiro.
Uma ocasião, preocupado com os roubos de carros, criou uma trava que prendia os três pedais, fechados por cadeado. Não era prático, mas muito eficaz.
Aos 87 anos, ainda dirigia muito bem, mas batalhava contra um câncer na garganta e percebendo a gravidade da doença, e a pequena chance de cura, preocupava-se cada vez mais com o destino do Fusca, passando noites em claro tenso com a decisão a tomar, até que resolveu doar para meu filho, João Henrique, pois tinha a certeza absoluta que o carro continuaria conservado e original. Quando a doação foi finalizada com a transferência de propriedade, ele relaxou. Pouco tempo depois, nos deixou.
Meu filho João gosta de carros antigos e os preserva originais, de modo que meu pai ficou tranquilo com a doação, pois sabia que o carro ficaria original e muito bem cuidado.
Hoje o carro fica guardado, protegido por capa, saindo para participar de alguns eventos do CAAT – Clube de Autos Antigos de Taubaté, inclusive do rali que acontece uma vez por ano, sempre em agosto.
Meu pai se foi e toda vez que a saudade aperta, olho para o Fusca e parece que o vejo dirigindo e sorrindo pelo prazer que sentia com o carro.
Nota: para quem quiser ver como foi a palestra lá em Taubaté basta clicar AQUI.
AG