Vamos rodar com um chinês que já passou da barreira dos 100.000 km. Afinal, sou meio “tio” da ideia. Enquanto escrevia “Carros com mais de 100 mil km: quem tem medo?”, o Eduardo Pincigher, gerente de imprensa da JAC, pensava o mesmo, uma forma de provar que o “china” JAC é durável. Minha matéria aqui no AE se tornou vice-campeã de audiência — campeã, considerando ser tema exclusivamente de automóvel — e o J3 já foi matéria em mais de 20 diferentes mídias, impressas ou digitais. Além de ser uma excelente ideia, a de fazer jornalistas automobilísticos os analisarem um carro usado, saindo do óbvio de rodar apenas com os 0-km.
Até a entrega foi diferente. O Edu me pergunta quando vou devolver o JAC. Primeira resposta: “Precisa devolver? Tem certeza que vocês querem de volta?” Como não “colou”, respondo mais sério: “Daqui a mais de 1.000 km.”
E assim foi, peguei o Jaquinho J3 com 109.719 km e ele só voltou uns 12 dias depois, com exatos 111.113 km. Rodei 1.415 km com o “china” fabricado em 2013 e ele se saiu muito bem. Estava com boa saúde e bem espertinho. Quase tão rápido como um “Uno com escada”, essa lenda rodoviária que a gente vê pelas estradas a mais de 180 km/h. Claro, este JAC com placa cearense de Fortaleza é um carro de sorte. Muita sorte.
A pedidos, a JAC forneceu o histórico das revisões do carrinho. Comprado em novembro de 2013, rodou quase 60 mil km em menos de um ano e voltou para outra revendedora da marca em Recife em agosto de 2014, provavelmente em alguma troca. Ou seja, único dono e “carro de estrada”, pela quilometragem rodada em tão pouco tempo. Ficou com a própria revenda durante um ano, rodando mais 30 mil km, e acabou vindo para a frota da própria JAC em São Paulo, com quase 91 mil km.
Rodou mais um pouco e caiu na frota de imprensa, já com mais de 99 mil km. Virou os 100 mil km com a primeira reportagem e continuou rodando. Nas 20 e tantas matérias em que participou, crescia entre 200 e 300 km com cada jornalista. Claro, eu tinha de exagerar e mandei mais de 1.400 km no velocímetro do Jaquinho.
Se fosse um anúncio de usado, valia um “carro de fino trato”.
Pela papelada das revisões, nada de especial: troca de óleo, filtros, correias, velas… nada relevante. Apenas a substituição de um polia da bomba d’água e uma misteriosa “polia da marcha-lenta” (provavelmente a polia dentada do virabrequim, que fornece leitura de ponto), na revisão dos 60 mil km, chamam a atenção.
Eduardo me acrescentou que foi trocado o cárter, devido a um vazamento de óleo. Seu motorzinho quatro-cilindros não flex “1,4” (na verdade 1.332 cm³, ou seja, mais para 1,3) continuava na melhor faixa de utilização. Como se sabe, o motor varia sua potência durante a vida útil, aumentando inicialmente até os 10 mil km, com a diminuição do atrito devido ao assentamento das peças internas, e vai permanecendo quase constante até mais de 100 mil km se tiver boa manutenção. Pois bem, este J3 continuou com excelente desempenho, provavelmente com todos os seus 108 cv (a 6.000 rpm) espertos e prontos para rodar.
Dos 1.400 km rodados, cerca de 70% foram em estrada e a média geral de consumo de gasolina ficou nos 12 km/l. Muito boa, considerando que em rodovias geralmente cruzava a 120/130 km/h (velocidade real, medida no GPS). Com seu tanque de 48 litros chegou a fazer 590 km até bater reserva, sobrando uns 5 litros, pelo menos. Ou seja, passou dos 13 km/litro em viagens rápidas. Sinal de que o motor estava em ótimo estado.
Os 111 mil km eram mais percebidos pela transmissão. O câmbio, apesar da alavanca precisa, mostrava anéis sincronizadores já mais desgastados pelos engates mais duros, especialmente da segunda marcha, a mais utilizada em trocas.
Da mesma forma se sentia folga na transmissão quando se desacelerava e voltava a acelerar em baixa velocidade. Além de folgas de engrenagens, provável desgaste dos contatos de semi-eixos com câmbio e rodas (as juntas homocinéticas não apresentavam ruídos). Também o pedal da embreagem estava um pouco mais pesado, causado por disco e platô já um pouco gastos.
A suspensão estava sem folgas, apenas com um nhéco-nhéco nas bandejas da dianteira, principalmente em dias frios, provavelmente buchas de borrachas ressecadas ou excessivamente duras. Depois de alguns quilômetros rodados, com o aquecimento das borrachas, o ruído desaparecia. Ou quase: só era percebido em movimentos de grande amplitude, com a passagem rápida em lombadas usando todo o curso da suspensão. De qualquer maneira, nada que pedisse conserto urgente.
Como me confidenciou um funcionário da revenda paulistana que cuida da frota da JAC, “é o carrinho mais gostoso de rodar de toda a frota”. Fácil de concordar e até de explicar. Por mais de 50 mil km ele esteve com a própria JAC, ou na revenda pernambucana ou na frota de imprensa. Daí ser um carro de muita sorte na vida.
Seu visual era exemplar e certamente recebeu reparos não registrados oficialmente. Afinal, nenhuma marca gosta de ver seu produto “sair mal na foto”. Capô (sem nenhuma marca de pedrinhas da estrada), assim como os para-choques certamente foram repintados. Marcas do tempo (e do sol) apareciam nos plásticos dos faróis, que foram polidos e envernizados. O verniz estava se soltando.
O para-brisa tinha uma pequena trinca na sua base, estrategicamente coberta pela palheta na posição de descanso. Aliás, as próprias palhetas estavam ressecadas, o que percebi sob chuva numa viagem noturna. Precisavam de substituição, mas usei o velho truque de entortar um pouco as hastes, para que as palhetas tivessem maior pressão no vidro. Resolveu, ainda que isto não deva ser feito sempre, já que aumentam a abrasão e riscam o vidro. Mas, como o para-brisa já estava trincado…
Internamente tudo estava perfeito. Demais. Até o banco do motorista estava novo, sem o clássico afundamento por centenas de horas de “bunda” para chegar a esta quilometragem. Mas, de novo a explicação de “sair bem na foto”.
Perguntas frequentes:
1) O carro tinha realmente mais de 100 mil km?
R: Sim, era o que denunciavam principalmente câmbio e transmissão.
2) Todos os JAC chegam a esta quilometragem assim?
R: Com certeza, não. Poucos carros (não só os JAC) têm a sorte de iniciarem a vida com um dono cuidadoso e depois serem bem tratados em revendas da marca.
3)Você compraria um JAC J3 com mais de 100 mil km?
R: Este carro em especial, certamente compraria. O difícil é achar outro com esta quilometragem e nesse estado.
4) Qual a maior desvantagem de ter um JAC mais velhinho?
R: Peças de reposição. Apesar de ter aumentado, o mercado paralelo de peças para JAC se resume a componentes de desgaste, como correias, velas, correias, kit de embreagem, pastilhas de freio e outras do mesmo gênero. Peças de carroceria, com faróis e lanternas, ou se compra na revenda ou usadas, vindas de carros de desmanche. Mas, sua mecânica é simples e um bom mecânico dá conta da manutenção normal, a não ser em possível panes mais complexas, como as eletrônicas.
De qualquer forma, há outro dado importante. Geralmente se roda 200 ou 300 km com um carro de teste. Com este Jaquinho rodei 1.400 km como se fosse meu veículo pessoal, carregando bagagens e indo para o interior de São Paulo e também para Resende (RJ). Se mostrou confiável e só abri o capô por curiosidade. Nada ameaçou quebrar e não abaixou o nível do óleo do motor, assim como o nível de água de arrefecimento do motor.
Ou seja, mesmo que tenha sido cuidado com extremo critério, é possível passar dos 100 mil km com este chinês e se ter um carro com ótimas condições de rodagem por muito mais tempo.
JS