— Eu quero ir para Nice na próxima semana. Pode me dar passagens?
— Para qual data, senhor?
— Dia 14. Qual é o melhor trem?
— Bem, com certeza o melhor trem é o que chamam de O Trem Azul. O senhor evita o cansativo processo de alfândega em Calais.
Derek acenou com a cabeça. Ele sabia disto tudo, não havia melhor.
[…]
— A porta estava entreaberta, ele disse. Se um homem estivesse parado atrás daquela porta eu poderia vê-lo, mas ele poderia, certamente, estar perfeitamente visível para a madame quando ela entrasse.
— Pois é — disse Poirot, — tem algo mais que você quer nos contar?
— Acho que isto é tudo, Monsieur. Não me lembro de nada mais.
— E nesta manhã? — disparou Poirot.
— Como a Madame ordenou, eu não a acordei. Apenas logo antes de Cannes que eu bati na sua porta. Sem resposta, eu a abri. A senhorita parecia estar dormindo na cama. Eu a segurei pelo ombro para despertá-la, e aí…
— E então você viu o que aconteceu — completou Poirot. — Muito bem, eu acho que já sei de tudo que preciso.
— Eu espero, Monsieur comissário, que eu não seja culpado de alguma negligência — disse o homem preocupado. — Que caso para acontecer no Trem Azul! É horrível.
— Console-se — disse o comissário — tudo será feito para manter esse caso o mais discreto possível, apenas ao interesse da justiça. Eu não acho que você seja culpado de qualquer negligência.”
Estes são trechos do livro O Mistério do Trem Azul, de Agatha Christie, publicado em 1928 e que conta o misterioso caso de um assassinato a bordo de um luxuoso trem. Este já era um dos mais renomados meios de transporte do Velho Continente. O charme dos luxuosos trens de passageiro europeus data do começo do século XX, quando eram o método de transporte preferido dos ricos e famosos. Cruzar a Europa nos anos 1920 não era uma tarefa exatamente fácil como hoje, mas as ferrovias já facilitavam bastante a locomoção de cargas e de pessoas pelo continente.
As ferrovias na França, dependendo de sua região, em especial bem ao sul, tinham algumas ligações com as empresas de trens italianos, que com o tempo fizeram restrições de uso e alterações de roteiros.
Uma das rotas mais procuradas era a que ligava o norte ao sul da França, passando pela capital Paris. Ao norte, estava a cidade de Calais, e ao sul, a Riviera Francesa e a cidade de Nice, próximo a Monte Carlo e Cannes. Oficialmente, o nome era Calais-Mediterranée Express e operou desde 1886 até os anos 2000, sob o comando da empresa francesa PML.
A partir dos anos 1920, esta rota era dedicada ao transporte de passageiros com trens de primeira classe, voltados aos carros de luxo. Os vagões da composição que eram dedicados aos dormitórios (cabines onde era possível dormir) eram pintados externamente de azul, e não demorou para que os trens ficassem conhecidos como Le Train Bleu (o trem azul, em francês). Se na época você fosse um ricaço de Paris ou um inglês bem sucedido e quisesse passar uns dias na Riviera, este era seu meio de transporte definitivo.
Não demorou muito para alguns entusiastas automobilísticos tivessem a brilhante ideia de correr contra o trem e ver quem era mais rápido ao longo do trajeto. Muitos falharam, outros falharam de forma heroica. O primeiro a conseguir vencer o trajeto de quase 1.200 km entre os extremos da França foi Dudley Noble com seu Rover Light Six em janeiro de 1930. A corrida, entretanto, não foi um mero acaso, pois havia interesse por trás de toda a ação.
Pelos relatos da época, a corrida contra o trem foi uma invenção de Dudley Noble juntamente com Frank Searle e Spencer Wilks, diretores da Rover, para conseguir uma notícia grande que levasse o nome do Light Six recém-lançado.
Para a Rover, foi uma notícia de grande destaque, de grande visibilidade, algo que todos buscavam na época em que divulgar seus produtos era vital para a sobrevivência dos fabricantes. Este foi o melhor comercial que o novo modelo Light Six com seu novo motor de seis cilindros em linha e 2 litros poderia ter.
Noble conhecia bem trajeto do trem, suas paradas programadas, pontos de troca de pessoal, embarque e desembarque. Sabia onde levava vantagem com um carro e onde tinha que se esforçar ao máximo para não ficar para trás, nos locais onde o trem era mais eficiente. Tudo muito bem planejado para que sua corrida fosse um sucesso e a publicidade não saísse como um tiro no pé. Também não foi de primeira que ele conseguiu vencer o trem azul. Algumas tentativas “extra-oficiais” foram feitas, mas com problemas em cada situação, o time esperou o sucesso na corrida para divulgar a notícia e oficializar o feito.
Depois de Noble, diversos tentaram repetir seu feito. O desafiante mais arrojado foi o inglês Woolf Barnato, um dos Bentley Boys e então principal acionista da Bentley Motors, que já falamos um pouco aqui no Ae. Conta a história que em março de 1930 durante um jantar no Carlton Hotel em Cannes, provavelmente com bastante bebida envolvida, Woolf teria apostado com os amigos que conseguiria não apenas vencer o trem do sul ao norte da França, mas ainda chegaria a Londres antes do trem chegar a Calais.
Era uma aposta e tanto, pois além de cruzar toda a França, Woolf teria que cruzar o canal até a Inglaterra e dirigir até Londres, especificamente até o The Conservative Club. Como não poderia deixar de ser, Barnato dirigiria um Bentley. Não tinha como ser melhor que isso. Amigos em um bar discutindo assuntos aleatórios e de repente, uma aposta surge e então cria-se uma corrida de mais de 1.200 km contra um trem!
Às 17h45 do dia seguinte, Barnato e o amigo Dale Bourn, que o ajudaria no revezamento da condução, partiram no Bentley Speed Six em direção ao norte da França nesta mesma hora que o trem saiu da estação em Cannes. Cruzar a França de carro em 1930 devia ser uma aventura e tanto. Imagine então fazer isso praticamente sem parar e a alta velocidade, afinal, era uma corrida! As condições climáticas não eram boas, muita chuva no percurso aumentou a dificuldade do Speed Six em cruzar o país em alta velocidade, ainda mais por ser à noite.
Os quase 200 cv de potência do 6 ½-litros eram mais que suficientes para que Woolf fosse confiante o suficiente para apostar que chegaria a Londres antes do trem chegar a Calais. Pelos cálculos baseados nos horários de chegada e partida do trem, a média de velocidade necessária para vencer era de aproximadamente 65 km/h. Mesmo com pneu furado, falta de postos de combustível pelo caminho e a travessia de barco até a Inglaterra, Woolf e o Speed Six chegaram ao destino em Londres às 15:20h. Quatro minutos antes do Trem Azul chegar a Calais.
Woolf Barnato conseguiu vencer o trem por quatro minutos! É uma margem muito, mas muito pequena para uma corrida de vinte e uma horas e meia. Parece até história de pescador, mas o fato é que assim foi registrado na história, e ninguém mais pode questionar sua veracidade. A média de quase 70 km/h feita pelo Bentley é impressionante até para hoje, pois os tempos de paradas e as condições precárias de muitos trechos por onde rodaram já diminuem a média por si só.
Este foi mais um marco na história da Bentley, que pode gabar-se de fabricar carros (ou caminhões, como dizia Ettore Bugatti) mais velozes que o Expresso do Mediterrâneo. Como consequência da corrida, Woolf foi multado e a Bentley proibida de participar do Salão de Paris de 1930 por promover uma corrida ilegal. Com certeza Woolf não estava nem aí para isso. Ele venceu a corrida contra o Le Train Bleu com o melhor tempo já registrado e virou publicidade instantânea para a Bentley Motors, talvez até mesmo de maior impacto que o Salão de Paris poderia trazer.
O feito de Barnato e seu Bentley Speed Six ficou famoso na Europa. A questão é que com o passar do tempo, a história foi um pouco alterada. O fato dele ter vencido a corrida com quatro minutos de vantagem não é questionado, mas o carro com o qual ele correu sim. Por muitos anos acreditou-se que o Speed Six que venceu o trem era um modelo feito para Barnato com uma carroceria especial, única, chamada Sportsman Coupe fabricada pela Gurney Nutting. Este carro por muitos anos foi apelidado de Blue Train Special.
Um carro único sendo o herói da corrida contra o trem mais famoso da França era poético. O artista inglês Terence Cuneo retratou a corrida em uma bela cena pintada em tela que ilustra a abertura deste post, mostrando o Bentley fastback correndo ao lado da locomotiva do Mediterrâneo. Por conta do teto rebaixado, o banco traseiro era montado de lado, o que fazia deste um carro de três lugares apenas.
O único porém nesta bela história é que Barnato só foi receber o Gurney fastback quase um mês depois da corrida. Como era possível então que este teria sido o carro a vencer o trem? Simples, não foi este carro. Na realidade, Woolf correu com seu Speed Six de uso regular, um modelo com carroceria quatro portas convencional feita na H. J. Mulliner, pintado de preto.
Tudo indica que Woolf, ao receber o Sportsman Coupe, batizou-o de Blue Train Special em homenagem à corrida recém-vencida, mas como a imagem de um carro especial de carroceria exclusiva começou a circular como sendo o protagonista, não foi feito muito esforço para consertar a história em circulação. Era mesmo mais legal creditar o Gurney Nutting como o carro que venceu o Le Train Bleu do que um mero saloon quatro-portas preto.
Registros históricos muitos anos depois puderam provar que Barnato correu com o Mulliner Speed Six e não com o Sportsman Coupe. Textos do próprio Barnato deixam claro que quando ele menciona o carro, características citadas como detalhes da carroceria e equipamentos excluem o Coupe. A quantidade de estepes disponíveis, o porta-malas onde eram carregados equipamentos, latas de óleo e gasolina, ferramentas, tudo mencionado ia contra o Sportsman, pois não seria possível carregar todos os itens citados nos relatos com aquela configuração de carro.
Em uma nota do próprio Barnato, referindo-se ao feito de Noble e seu Rover Light Six, ele refere-se ao carro que usaria para vencer o trem não apenas ao litoral da França, como fez o Rover, mas à Inglaterra, como sendo seu “Saloon Speed Six”.
Não critico o fato do pessoal da Bentley não contar a história verdadeira até pouco tempo atrás. Era uma publicidade mais instigante, provocante, e ter o Coupe em destaque no lugar do Mulliner “sem graça” parecia ser mesmo mais atraente. Era uma lenda. E de qualquer jeito, um Speed Six venceu o trem, independente de qual foi. Agora o site oficial da Bentley mostra e cita o Coupe como Blue Train Special, mas faz apenas uma pequena nota informando que o carro da corrida era o Mulliner. A publicidade, pelo relato do próprio Barnato, foi uma mera consequência de seu feito, cujo objetivo na realidade era se gabar de que vencer o trem não era nada demais e ido mais além do que Dudley Noble.
Hoje, tanto o Sportsman Coupe como o Mulliner estão restaurados e fazem parte da mesma coleção particular, com poucas aparições públicas.
Woolf Barnato e seu Speed Six poderiam ter sido personagens na história de Agatha Christie, e neste caso, o Sportsman Coupe seria bem mais atraente para ser retratado no conto.
O distinto e misterioso gentleman inglês a bordo de sua reluzente máquina, verde escura como a mata e veloz como um felino, suas linhas fluidas transmitiam sensação de velocidade e cortavam o ar dos campos do interior da França, à caça do trem azul.
Poderia ter sido assim, que tal?
Versões comemorativas
Para comemorar os 75 anos da vitória do Bentley de Woolf Barnato sobre o Blue Train, a empresa lançou uma edição comemorativa de trinta unidades do modelo Arnage, com carroceria Mulliner e motorização do Arnage R – motor V-8 de 6 ¾-litros biturbo com 460 cv. Detalhes de carroceria como a grade do radiador cromada, rodas especiais, interior diferenciado destacavam o Blue Train Series.
Este ano, a Bentley relançou o nome com o modelo Mulsanne Speed Mulliner ‘Blue Train’ para comemorar os 85 anos da corrida. Assim como o Arnage, detalhes de interior, carroceria e rodas diferenciam a versão comemorativa dos Mulsanne convencionais. O motor V-8 de 540 cv não deixa nada a desejar em termos históricos, pois na época da corrida os 200 cv do Speed Six eram excepcionais, e os 112 m·kgf de torque complementam a capacidade de aceleração do Bentley, que levam os 2.800 kg do carro de zero a 100 km/h em menos de 5 segundos.
Belas homenagens da Bentley ao feito de seu maior acionista no começo da história da marca. Com certeza o próprio W.O. Bentley ficou feliz em ver um de seus Speed Six ganhando tal fama e reconhecimento, e gostaria de saber que até hoje, o feito de um Bentley é lembrado e comentado.
MB