Desta vez vou falar de um segredo. Bem, já não tão segredo assim, pois já foi até divulgado em matéria numa revista alemã e em publicações internas da Volkswagen no Brasil. Isso sem falar numa postagem no Facebook que registrou milhares de acessos e compartilhamentos. O que apresento aqui é o acervo — privado — de carros da Volkswagen que contam a história da fabricante no Brasil. Trata-se de um patrimônio de alto nível, tanto pelos itens que o compõem, como pelo estado impecável dos carros, fruto de uma dedicação excepcional de funcionários que promoveram a manutenção e ampliação deste significativo patrimônio histórico cuja importância ultrapassa os limites físicos da fábrica Anchieta da Volkswagen.
O título desta matéria — “Schatzkiste” — significa “Baú do Tesouro” e foi como a revista alemã Käfer Revue (revista do Besouro) se referiu à parte do acervo de veículos históricos da Volkswagen brasileira que teve a oportunidade de visitar, mostrada em reportagem publicada em 30 de abril de 2014. Esta é uma edição especial da conhecida e longeva revista Gute Fahrt (‘boa viagem’ em alemão) que desde sempre teve e tem uma ligação direta com o Grupo Volkswagen.
Este acervo também foi citado na página 8, da edição 421 de 3 de novembro de 2014 do boletim interno Jornal da Volkswagen, uma publicação dirigida aos funcionários da empresa.
Mesmo sendo mantido cuidadosamente vedado a olhos indiscretos, a publicação de um álbum de fotografias no Facebook causou uma grande comoção entre os apreciadores da marca Volkswagen no Brasil. Este álbum mostrou a visita realizada no dia 11 de maio de 2016 por um grupo de 80 aposentados da Volkswagen, dividido por razões de logística em dois grupos de 40 pessoas. Foi visitada uma parte do acervo de carros antigos e documentação histórica que foi sendo recolhida ao longo dos anos por iniciativa de funcionários profundamente comprometidos com a história da Volkswagen do Brasil, na qual os carros produzidos são testemunhas de tudo que foi feito por aqui.
O acervo, que já reúne 84 veículos, foi iniciado na década de 1980 por um grande entusiasta da marca, Guenter Karl Hix, que era o chefe do Departamento de Estilo, atual Design Center. Neste período, foi iniciado o acervo com uma Variant II 1980 e um Brasília 1982, ambos zero-quilômetro. O trabalho de formação do acervo contou com o dedicado trabalho de Antônio Ferreira de Souza Filho, Wolfgang Mathias Pfeifer, Cláudio Conde, e vários outros. Em 2004, José Luiz Hellmeister Loureiro passou a gerir o acervo, dando continuidade aos trabalhos de preservação deste tesouro.
O acervo possui carros originários da própria fábrica, em estado de novos, alguns foram comprados no mercado e restaurados e atualmente há 25 carros aguardando restauração. Estão guardados em duas outras áreas da fábrica, devidamente preservados e mantidos em estado de funcionamento.
Os últimos veículos incorporados ao acervo foram à última Kombi e o último Furgão produzidos no mundo em novembro de 2013, e a Kombi Last Edition nº 56, homenagem aos 56 anos de produção do modelo no país.
Como exemplo dos carros resgatados do mercado nos últimos anos, há um VW 1600 4-portas “Zé do Caixão”, um VW 1600 TL 1973 e um VW Gol 1300L 1980. Este último participou da Primeira Edição do Gol Fest realizada no Sambódromo de São Paulo em 10 de abril de 2010 para comemorar os 30 anos de produção do Gol. Este carro consta como sendo o primeiro Gol que recebeu Placa Preta, um atestado de originalidade.
Esse Gol 1300 L, pouco tempo após ter participado do Gol Fest, foi colocado à venda e o diligente Guilherme Sabino, então responsável direto pelo acervo, soube do fato e conseguiu adquiri-lo, onde ficará marcando sua presença para as gerações futuras. O Guilherme Sabino explicou que “O que mais motiva a equipe responsável pelos veículos é poder preservar, por meio deste acervo, a memória daqueles que ajudaram a construir a história do sucesso da Volkswagen do Brasil. Não existe outra motivação que impulsione essas pessoas a manter esta iniciativa que não seja a paixão e o carinho pela marca Volkswagen!”
Por muitos anos este importante acervo foi sendo ampliado por meio do uso inteligente de dispositivos internos como, por exemplo, a transferência de carros de testes internos — cujos custos já faziam parte da verba de desenvolvimento e seu destino seria o sucateamento — para o acervo mediante transferências patrimoniais sem custo. Com isto foram preservados muitos carros que atendem perfeitamente à finalidade de preservação de carros da marca produzidos no Brasil.
Já os veículos adquiridos de colecionadores passaram por um complexo sistema de aprovação que exigia seis assinaturas de executivos de alto nível, mas houve a compreensão e apoio destes para o aumento do patrimônio por este meio.
Um dos tesouros do acervo, incorporado em 2012, são os cartuchos com as microfichas com os arquivos de produção que foram resgatados por Guilherme Sabino, mas que precisam ser analisados quanto ao conteúdo de informações, coisa que ele não teve tempo de fazer antes de sua aposentadoria. O Sabino conseguiu localizar um aparelho leitor destas microfichas em perfeito estado de uso que agora também está no acervo, permitindo o acesso às informações. Certamente esta documentação é de grande interesse histórico e merece um tratamento especial. Mas este material ainda não está em condições de permitir acesso para pesquisas, tampouco foi liberado para tal.
Com muita visão, inventividade, iniciativa e arrojo o patrimônio foi sendo ampliado e preservado até atingir o nível relatado nesta matéria.
O Gol do Senai
Para dar um exemplo de como carros que tinham como destino o sucateamento acabaram no acervo, veja o caso do Gol do Senai, que aqui é descrito pelo mentor deste, Paulo Guino, que me relatou:
“O ‘Carro do Senai’ foi uma doação da VW para o Senai como objeto de treinamento para os alunos de Mecânica de Automóveis. Esse veículo fazia parte de um programa que não permitia a sua venda, por isso ele foi doado ao Senai para Treinamento, onde mais de 3.000 alunos o montaram e desmontaram.
Fui fazer uma visita ao Senai Felix Guisard, de Taubaté, em maio de 2010, pois eu havia sido convidado para ser paraninfo de uma turma de alunos. Ao passar pela oficina o diretor Fernando Takeo me disse que como esse carro já estava lá há muitos anos, ele ia ter que se desfazer dele. Perguntei se ele não queria devolvê-lo para a Volkswagen (eu já tinha um plano traçado para este veículo). Ele prometeu verificar, e duas semanas depois ele me respondeu que sim, o carro poderia ser devolvido.
Enviei uma carta solicitando o veículo e o mesmo veio para fábrica de Taubaté, sendo restaurado pelo Miguel Correia, chefe da oficina de reparos de veículos especiais.
Aí, com ajuda de uma pequena “vaquinha” para compra de algumas peças faltantes, o trabalho foi feito, o carro ganhou uma pintura nova e todos os detalhes necessários para que ficasse zero novamente.
Minha intenção inicial era criar um pequeno acervo para a Fábrica de Taubaté, que é a fábrica do Gol, mas depois, devido a mudanças internas, os planos foram alterados e este carro, com toda a sua carga histórica, acabou sendo incluído no acervo da fábrica Anchieta, ainda bem…”
Neste exemplo podemos ver como a boa vontade, o senso de oportunidade e a intenção de preservação, aliada à uma ação efetiva, permitiram que mais um carro fosse acrescentado ao acervo da fábrica Anchieta — praticamente sem custo — gerando um item do patrimônio que passa a ter um valor inestimável para a manutenção da história da Volkswagen no Brasil. Mais um esforço vitorioso movido pelo amor à marca.
O álbum da visita
Este é o álbum da visita citada no início da matéria, originalmente publicado no Facebook pelo Paulo Guino e que faz parte do acervo dele.
O executivo José Luiz Hellmeister Loureiro, responsável e grande incentivador do acervo, fez uma apresentação aos participantes antes do início da visita.
O álbum começa com a visita parcial ao acervo de 84 veículos, visto pelos visitantes ao adentrarem ao salão. A curiosidade da foto fica com esse míni Gol amarelo que tem motor e anda. Quem descobriu um jipe no fundo à esquerda aguarde um pouco que logo vamos falar dele.
Uma das “joias da coroa” é um VW SP1 1972, uma grande raridade, pois foram fabricadas somente 85 unidades.
Carlos Claus Janeba ao lado da Kombi 1961, um dos veículos adquiridos de colecionadores e que foi meticulosamente restaurado.
Este quadro na parede retrata Heinz Nordhoff, que foi presidente mundial do Grupo VW, responsável pela instalação da VW no Brasil. Ele está portando a Ordem do Cruzeiro do Sul conferida pelo presidente Juscelino Kubitschek por ocasião da sua visita ao Brasil e inauguração da Fábrica Anchieta da Volkswagen do Brasil, em São Bernardo do Campo, em 19 de novembro de 1959. Este quadro foi mais um dos inúmeros resgates feitos pelo incansável Guilherme Sabino, que não perdia a oportunidade de ir ampliando os itens do acervo com objetos de cunho histórico.
Considerado o primeiro Gol placa-preta do Brasil, o veículo é admirado pelos visitantes: trata-se de um Gol 1300 L 1980 que foi incorporado ao acervo por Guilherme Sabino.
Muitos dos itens que aparecem na próxima foto foram resgatados e restaurados pelos colegas da fábrica e estão sendo cuidados com todo o empenho. Vários relógios como o que aparece na foto ficavam distribuídos pelas Alas. Este em particular era da Oficina da Engenharia da Ala 17 e foi “encontrado” pelo amigo Guilherme Sabino, então curador do acervo. Ele conseguiu a sua transferência patrimonial para o acervo e promoveu a sua restauração e o colocou em lugar de destaque.
Este é o Fusca “Itamar” branco transformado para conversível para ser usado na inauguração da linha de montagem do modelo pelo presidente Itamar Franco em 1993. No total quatro Fuscas foram assim transformados pela firma paulista de personalização de veículos Sulan. O branco está no acervo; o azul havia sido adquirido pelo ex-presidente Itamar Franco e hoje faz parte de seu memorial. O preto ficou com o ex-presidente da Autolatina, Pierre-Alain De Smedt. Há um quarto, vermelho, que havia sido comprado pelo Comandante Rolim Adolfo Amaro, o fundador da TAM.
Era para que todos participassem da festividade, mas devido à inusitados protestos de funcionários dentro da fábrica, somente o azul e uma Kombi conversível, que aparece numa foto adiante, acabaram sendo usados.
A seguir o ex-curador do acervo, Guilherme Sabino, primeiro à direita, fazendo apresentação técnica detalhada de cada modelo, sob o vigilante olhar do gerente da área, José Luiz H. Loureiro, de terno, segundo à esquerda do Sabino.
Outro registro da visita guiada. Os painéis nas paredes foram confeccionados para a visita comemorativa dos 60 anos da Volkswagen no Brasil, realizada no dia 10 de novembro de 2013 e que foi registrada na matéria: “Mega-Visita Volkswagen” com a qual comento a minha participação neste evento inesquecível.
Esta Kombi 1988 foi preparada no período da Autolatina para levar visitantes à produção. Havia um segundo modelo, que foi vendido. Ela era usada em ocasiões especiais, como a inauguração da linha de montagem do Fusca “Itamar”.
Nesta parede há uma homenagem ao grande designer Márcio Lima Piancastelli, com a foto da equipe em torno de um VW Brasília, e dos quadros com seus desenhos.
Agora sim, vamos falar um pouco de uma das maiores raridades do acervo, trata-se do VEMP – Veículo Militar Protótipo. Uma peça única. Este veículo foi construído em 1976, sem muito alarde, para participar de uma licitação de veículos militares leves promovida pelo Exército Brasileiro. Ele, inclusive, participou de testes no duríssimo campo de provas do Exército no Rio de Janeiro, na Restinga da Marambaia, e até que obteve uma pontuação muito boa, pois tem tração nas quatro rodas! Mas o fato de ter um motor traseiro foi citado como justificativa para a sua desqualificação e quem acabou vencendo foram o Jeep Willys e o utilitário Toyota Bandeirante. Esta história até que lembra um pouco a do “SCHWIMMWAGEN II FEITO PELA PORSCHE” que relatei aqui no AUTOentusiastas.
Depois de ser desqualificado, o VEMP passou a ser usado para rebocar protótipos na fábrica, e acabou sendo um pouco descaracterizado. Novamente o Guilherme Sabino reconheceu o valor deste veículo, conseguiu a sua transferência para o acervo e promoveu uma difícil restauração, pois da documentação de sua originalidade tinham sobrado somente algumas fotos, como a que segue mostrando o VEMP em pleno teste pelo Exército (esta foto fez parte da apresentação inicial da visita proferida pelo José Luiz H. Loureiro). Sabino conseguiu inclusive restaurar a operacionalidade da tração 4×4. Certamente este é um dos assuntos menos comentados pela Volkswagen até agora.
Uma foto tirada quando todo o grupo de visitantes estava ao lado do VEMP atentamente ouvindo a sua incrível e desconhecida história. Detalhe para a capota, outro item que teve que ser refeito, pois a original tinha se perdido no uso como reboque na fábrica. Certamente muitos destes “cabeças brancas” da Volkswagen também não sabiam desta história, daí o interesse de todos.
Kombis comemorativas que marcaram época. Estas Kombis são modelos que foram construídos pelo departamento de Estilo e que deram origem às séries especiais que viriam a ser produzidas. Como protótipos,elas não poderiam ser vendidas e seriam destruídas, mas graças à proatividade do pessoal do acervo elas estão aí muito bem na foto! A do fundo registrou o fim da era do motor arrefecido a ar, foi uma série que infelizmente não foi numerada. A do meio comemorou os 50 anos de fabricação da Kombi no Brasil e seu número é 00 de 50. E a em primeiro plano é a Last Edition que marcou o fim mundial da fabricação deste tipo de veículo, com o número 0000 de 1200.
Uma trinca de raridades, o VW Sp1, um VW 1600 TL e um VW 1600 quatro-portas, todos em excelente estado de conservação.
Ala dos “mais moderninhos”, a saber, do primeiro plano para trás: Gol 1300 L 1980, Gol GTI 1993, Gol Geração II 1999 (zero-km), Gol Geração III 2001 (zero-km) e Gol Geração IV 2008 (zero-km); excetuando o 1300 L 1980, todos já são da era de motores arrefecidos a água, a exceção do Gol 1300 L 1980.
Um exemplo clássico do resgate de veículos para o acervo é esta Kombi Bombeiro 2005, que foi desmobilizada e seria vendida, mas foi integrada no patrimônio do acervo e o pessoal dos bombeiros da fábrica fez questão de equipá-la com tudo que ela tinha em condições de uso. Agora isto tudo faz parte da história resgatada no acervo. E ainda existe uma Kombi Ambulância sendo restaurada para a mesma finalidade.
Este foi o primeiro grupo, todos aposentados, que teve permissão para visitar o acervo, mais o grupo dos organizadores, Loureiro, João Marques, Marcelo Cavalcante da VWP que coordenou a visita histórica, com um grupo de ex-colegas da VW.
Esta é grande paixão do Guilherme Sabino, o “Zé do Caixão” adquirido de colecionador e foi meticulosamente restaurado na Volkswagen, tornando se uma das grandes joias do acervo.
Adiante, o veículo que participou do recorde de resistência em janeiro de 2003 em Interlagos e que foi também foi pilotado pelo Sabino, que é um piloto de testes com larga experiência: ele começou na Volkswagen exercendo exatamente esta função; como piloto de testes ele avaliou veículos em várias partes do mundo como, por exemplo, no Irã.
Para finalizar esta série de fotos, segue a que registra o que Paulo Guino teve a honra de inaugurar, com o seu comentário: o Livro de Visitas do acervo. Nesta oportunidade ele agradeceu ao colega José Luiz Hellmeister Loureiro, executivo que atualmente responde atualmente pelo acervo, pelo empenho na gestão desta incrível iniciativa.
Aqui cabe o reconhecimento ao abnegado trabalho de várias gerações de funcionários da Volkswagen a quem se deve a existência e manutenção deste acervo que merece ser tratado com respeito até que surja a possibilidade se transformar num setor de preservação específico. Espero que esse importante acervo venha a ser colocado à disposição do público interessado pela marca e por seus produtos.
Como sonhar não é proibido, eu sonho com a possibilidade de este acervo ser colocado à disposição da história da indústria automobilística brasileira na forma de um Museu Volkswagen. Poderia ser uma “Mini-Autostadt” com espaço para os carros do acervo, espaço para palestras e biblioteca do acervo técnico de antigos. E muito mais… Como eu disse, sonhar não é proibido e ainda não paga imposto.
AG
Para este trabalho contribuíram de maneira importante os amigos Guilherme Sabino e Paulo Guino, que proveram consultoria, material fotográfico e informações específicas. Agradeço aos dois pelo apoio.
Os créditos das fotos, revista e informativo interno da Volkswagen foram dados no texto da matéria.
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