Treze vitórias em 17 corridas disputadas. Este é o número final da Audi como construtor nas 24 Horas de Le Mans. Todos eles reunidos na foto de abertura desta matéria. Ao final deste ano de 2016 a equipe alemã vai se retirar do Campeonato Mundial de Resistência (WEC – World Endurance Championship), do qual a 24 Horas de Le Mans fazem parte de seu calendário de provas ao redor do mundo.
Os anos 2000 foram dominados pelos carros da fábrica de Ingolstadt. Apenas Porsche, Peugeot e Bentley conseguiram vencer as 24 Horas além da Audi neste período, sendo que a Bentley é um caso a parte por ser praticamente uma variação da equipe Joest da Audi com outro carro (a Bentley Motors Limited faz parte do Grupo VW desde 1998).
Ver uma equipe dominante em uma categoria não é raro nem precisamos nos esforçar muito para encontrar bons exemplos. Os carros da Mercedes na F-1 atual são um caso claro, ou podemos voltar uns anos atrás e pegar como referência os tempos do domínio absoluto de Schumacher e Ferrari. Há quem diga que isto deixa o esporte chato, sem graça, mas há outras visões que podemos abordar.
Se existe uma equipe que se destaca das demais, no caso de categorias de ponta onde os investimentos são altos e há muitos interesses em se manter em destaque, as demais equipes vão correr atrás de soluções para serem mais competitivas e, assim, avanços tecnológicos surgem e são explorados. Em categorias locais de baixo custo, isto sim pode ser um problema, mas é um outro caso.
A proposta de projeto dos protótipos da Audi, aliada com a maior liberdade técnica de criação que o regulamento do WEC permite, geraram carros que elevaram a barra da inovação a novos níveis, alguns pontos que até eram tidos como impensáveis tempos atrás. Foram diversas quebras de paradigmas ao longo destes anos todos e que refletiram diretamente na forma como os carros de corrida e até mesmo os carros de passeio são concebidos. Quem liderou esta equipe e esta empreitada foi o Dr. Wolfgang Ullrich, o austríaco chefe da divisão de competição da Audi.
Geração R8 – motores a gasolina
A primeira geração dos Audis protótipos nasceu no final dos anos 1990, numa oportunidade de colocar o nome da empresa no meio do automobilismo de provas de longa duração, que estava em aquecimento de forma mundial. Porsche, Toyota e Mercedes estavam em disputa pelo campeonato e pelas 24 Horas de Le Mans, a mais desejada vitória que se pode ter neste meio. Investimentos milionários dos fabricantes eram colocados à prova para mostrar suas capacidades e engenharia, além de ser um excelente laboratório para novas tecnologias.
Duas frentes de batalha foram traçadas, uma com um carro de cockpit fechado e outro aberto. O carro aberto, normalmente chamado de spyder, era o R8R e que foi desenvolvido internamente na Audi junto com a famosa equipe Joest, parceira de longa data da Porsche no automobilismo. O carro fechado, chamado de R8C, foi projetado na Inglaterra pela Racing Technology Norfolk, com a liderança de Peter Elleray e consultoria de Tony Southgate. Peter trabalhou nas equipes Tyrrell e Arrows da Fórmula 1, depois mais à frente viria a projetar o Bentley Speed 8 LMP. Tony Southgate foi engenheiro da Lotus e grande parceiro da TWR na construção dos Jaguar XJR de endurance e depois no projeto do Ferrari 333SP. O R8R seria enquadrado na categoria LMP (Le Mans Protoype) e o R8C na categoria LMGTP (Le Mans GT Prototype), que seria a evolução da GT1, onde Porsche e Mercedes disputavam.
A produção do chassi em compósito de fibra de carbono do R8R ficou para a italiana Dallara, enquanto que a própria RTN fabricaria o R8C. O motor era comum aos dois carros, o V-8 biturbo de 3,6 litros. Na primeira participação em Le Mans, 1999, o R8C não teve muito sucesso, enfrentou muitos problemas por ter sido menos testado que o irmão R8R, que terminou a 24 Horas em terceiro e quarto lugares.
Uma revisão no projeto resultou no abandono do conceito de carro fechado, e o R8R evoluiu para o novo modelo chamado apenas de R8. Nova carroceira, novas dimensões, otimização de downforce e redução de arrasto aerodinâmico e, principalmente, mais testes de desempenho e resistência do carro como um todo. O projeto foi feito pela mesma equipe responsável do R8R, a parte da engenharia interna da Audi e a equipe Joest.
Desenvolvido pelo chefe de motores da Audi, Ulrich Baretzky, o motor a gasolina V-8 biturbo de 3,6 litros agora conta com sistema de injeção homogênea direta de combustível FSI (Fuel Stratified Injection) que desenvolve mais potência que a versão do R8R e também mais confiável. Para pressurizar o sistema de injeção a até 110 bar existem duas bombas de combustível de controle eletrônico acionadas por engrenagens via o comando de válvulas. Como em Le Mans os carros andam aproximadamente 70% do tempo com o motor em regime máximo, ou seja, “acelerador no fundo”, a configuração de motor com injeção direta e com a mistura ar-combustível mais homogênea resulta em melhor desempenho, e também ajuda a reduzir o consumo.
A tecnologia FSI evoluiu muito em função do automobilismo e em especial Le Mans, permitindo a fabricação de motores mais eficientes, potentes e econômicos, hoje comum nos Audis (e VW) de passeio e em muitos outros carros mundo afora.
O projeto do carro foi feito para ser o melhor carro possível para ser consertado. Le Mans é cruel, e acidentes acontecem, e ter agilidade no reparo é essencial. Componentes de engate rápido, conectores de montagem simples e separação do carro em subconjuntos fizeram do R8 um carro de fácil manutenção. Neste aspecto o carro foi tão bem feito que até mudaram o regulamento para que não fosse tão grande a diferença com os competidores. Para se ter ideia, era possível trocar toda a transmissão e suspensão traseira em menos de cinco minutos.
O resultado deste reprojeto foi nada menos que cinco vitórias em Le Mans, de 2000 a 2005, exceto 2003. O R8 foi um dos carros mais vencedores da história do WEC, e também marcou o início da “Era Audi” em Le Mans. Em termos de inovação, foi o primeiro a vencer com um motor FSI.
Geração R10 e R15 – motores diesel
Em 2006 a Audi surpreendeu o mundo com o modelo R10, substituto do R8, agora equipado com motor diesel. Um enorme V-12 diesel de 5,5 litros biturbo. Muitos foram céticos e não acreditaram que um “motor de caminhão” fosse capaz de vencer os modernos motores a gasolina de alto desempenho. Não foi a primeira vez que um motor diesel andou em Le Mans, a primeira tentativa foi em 1949 com um Delettrez Diesel, sem muito sucesso.
Novamente com a oportunidade de desenvolver tecnologias novas, no caso as de motores diesel, a Audi utilizou o campeonato de forma exemplar, além de que os dirigentes da marca viam com bons olhos o mercado mundial, em especial nos Estados Unidos, de carros de passeio diesel, até então mais difundido na Europa.
A introdução do R10 no campeonato foi marcada por grande expectativa, não só pelo novo motor diesel mas também pelo desenho cheio de cantos retos e superfícies planas da carroceria, algo que até o momento esta em desuso, pois as superfícies curvas e suaves estavam na moda. A aerodinâmica é uma ciência muito louca, um mínimo detalhe faz com que o um conceito tido como ultrapassado passa a ser o próximo grande trunfo de uma equipe.
As vantagens de se correr com um motor diesel são o alto torque e o menor consumo de combustível, este primordial em uma corrida onde a regularidade é essencial e quanto menos tempo parado reabastecendo, melhor. O alto torque (mais de 120 m·kgf) permitia um escalonamento de marchas adequado para praticamente qualquer pista, desde as mais curtas e travadas até Le Mans com suas longas retas. O interesse da Audi em ter este carro vencedor era tão grande que o motor foi desenvolvido do zero para o carro, todo em alumínio para ser o mais compacto e leve possível, além de potente e resistente. Ulrich Baretzky foi o responsável pelo projeto do motor, que certa vez quando questionado porque o R10 era tão silencioso, sua resposta foi bem simples: “barulho é energia, e nós não desperdiçamos energia”.
O chassi foi projetado do zero pela Audi, pois tinha que ser preparado para suportar outras cargas que um motor deste tipo poderia trazer para o carro. A construção novamente foi feita pela Dallara. Na corrida de estreia em Le Mans no ano de 2006, o R10 venceu e ainda repetiu o feito em 2007 e 2008.
Era a prova de que motores diesel não eram mais os velhos geradores de celeiro que os americanos desprezavam. Era o futuro do WEC que estava sendo escrito. Como evolução, a Audi passou a utilizar o modelo R15 em 2009. A proposta do motor diesel se manteve, agora na configuração V-10 de 5,5 litros com superalimentação, esta que utilizava tecnologia de turbo de geometria variável (VGT).
O R15 trouxe outras novidades, como o uso de faróis de LED, mais eficientes que os tradicionais, e também inovou com o uso de uma bateria de íons de lítio, similar à tecnologia das baterias de celular. As baterias futuramente viriam a ser usadas nos modelos híbridos, enquanto que os faróis de LED já são itens de produção nos carros de passeio.
A aerodinâmica do R15 era bem arrojada, com a carroceria cheia de recortes, entradas e saídas de ar com formas estranhas, claramente desenhadas em túnel de vento de forma a minimizar o arrasto aerodinâmico.
A Peugeot entrou na disputa com o modelo 908 HDi, também diesel, e conseguiu vencer em 2009, o que forçou a Audi a melhorar o R15, agora com o modelo R15 Plus. A carroceria teve alterações, a mais marcante sendo o bico do carro com duas protuberâncias que lembram o nariz de uma arraia. Estas mudanças na aerodinâmica e também no chassi trouxeram benefícios que levaram a Audi a sua nona vitória em Le Mans, em 2010.
Geração R18 – tecnologia híbrida
A próxima geração da dinastia Audi foi a R18, marcada pelo retorno dos carros com cockpit fechado. No primeiro ano (2011), o modelo corria com o novo motor V-6 turbodiesel de 3,7 litros, menor e mais leve que os antecessores, obrigado por alteração no regulamento para reduzir a vantagem dos carros equipados com motor diesel.
Uma vez que o regulamento limitava o tamanho do motor, a proposta era ter um carro mais ágil e menos complexo, além de mais eficiente. Quanto menos cilindros, menor a complexidade, e consequentemente menor a chance de algo quebrar. Novamente o turbo teria geometria variável, mas agora era apenas um para alimentar as duas bancadas de cilindros. O escapamento era feita pelo centro do V do motor, para tornar o pacote mais compacto e os engenheiros de aerodinâmica conseguirem extrair o máximo do centro do carro sendo mais estreito. O R18 foi o primeiro Audi diesel de corrida a utilizar seis marchas, os demais aproveitavam o torque monstruoso do motor para rodar apenas com cinco.
Voltando ao detalhe da carroceria fechada, esta foi uma forma que a Audi encontrou para otimizar a aerodinâmica do carro, uma vez que um carro fechado geralmente tem menor arrasto que um carro aberto. A opção de carro aberto é feita pela facilidade de troca de pilotos durante as paradas de box, mas no balanço entre esta vantagem e a redução do arrasto, este levou a melhor. O novo chassi tinha novas aplicações de compósito de fibra de carbono por toda a parte. O nome Ultra aparece no carro como uma referência à tendência de projeto leve (lightweight) de alta performance.
No primeiro ano do R18 a vitória em Le Mans foi sofrida. O único R18 que terminou a corrida venceu, poucos metros à frente dos rivais da Peugeot.
Em 2012, a Audi inovou mais uma vez, agora com a tecnologia híbrida e-tron quattro. Foi a primeira vez que um carro equipado com esta tecnologia foi vitoriosa em La Sarthe, mas não foi a pioneira nisso, mérito este da Panoz nos anos 1990.
O e-tron quattro, como o nome diz, utilizava tração nas quatro rodas. As rodas traseiras eram tracionadas pelo V-6 e as rodas do eixo dianteiro eram acionadas por um motor elétrico, como já explicamos na época do lançamento aqui no AE. Desta proposta evoluíram diversos competidores, entre eles a Toyota e a Porsche. A Audi conseguiu superar seus competidores e vencer as 24 Horas com o R18 e-tron de 2012 a 2014. No primeiro ano, com uma estratégia um pouco mais conservadora, a Audi inscreveu tanto carros modelo R18 ultra, puramente diesel, como carros modelos R18 e-tron, equipados com o sistema híbrido-diesel.
Nas evoluções do R18, o motor V-6 com um turbo foi mantido, variando apenas sua cilindrada, chegando até a versão final com 4 litros. Outras tecnologias foram lançadas no R18, como os faróis com laser e os sistemas de captação e armazenamento de energia do sistema híbrido.
A aerodinâmica sempre foi um dos trunfos da Audi, e cada vez mais tiravam proveito de suas descobertas. Certa vez, em uma das edições das 6 Horas de São Paulo, em Interlagos, tive a oportunidade de conversar com o Dr. Ullrich, e tive a certeza do que imaginava. Mais do que um conjunto motriz eficiente, os Audis foram superiores por muitos anos graças à aerodinâmica muito sofisticada dos carros. Pequenos detalhes faziam grandes diferenças.
Elevando o nível da competição
Ao meu ver, a Audi foi a principal responsável pelo desenvolvimento das tecnologias que vemos em uso hoje em dia, tanto nas pistas como nas ruas. Ao criar novas ideias e colocá-las em prática uma vez que se mostram eficientes, os competidores precisam correr atrás e desenvolver soluções equivalentes ou melhores, e assim um leva o outro para a frente.
Se não houvesse a inovação e a disputa, até hoje estaríamos vendo corridas com o mesmo formato e os mesmos carros, sem nada novo. Graças à mentalidade dos organizadores das 24 Horas, a evolução técnica e desenvolvimento de novas tecnologias são os principais objetivos da corrida. Liberdade de criação, isto é o que o automobilismo precisava, e o organizador da 24 Horas de Le Mans, o Automobile Club de L’Ouest (ACO) ainda permite isto.
A primeira vez que se ouviu falar do R18 e-tron muitos estranharam, mas vendo um destes andar quase que nos mesmos tempo de um F-1, por vinte e quatro horas seguidas, é impressionante. E isto só pode acontecer porque desde o primeiro modelo, o R8R, a Audi dedicou-se a aprender cada vez mais e colocar em prática suas ideias, por mais malucas e ousadas que fossem.
Se eu pudesse novamente ter a chance de conversar com o Dr. Ullrich, a única coisa que poderia ser dita seria apenas um sincero ‘obrigado’.
MB