Aqui no Brasil só tivemos contato com Fuscas modelo 1950 em diante, mas há carros mais antigos de 1938 a 1950 que compõem o que se chama de Uraltkäfer em alemão — Fuscas Veteranos. Inicialmente eram construídos de maneira precária até que a fábrica ficasse pronta. Poucos foram fabricados durante a II Guerra Mundial e outros tantos fabricados sob a ocupação dos Aliados, em especial os ingleses, e avançando nos primeiros anos da gestão Nordhoff.
Os Fuscas Veteranos têm características próprias e quem não as conhece pode ficar perdido, mesmo estando em eventos como o de Bad Camberg ou Hessisch Oldendorf na Alemanha; o risco que se corre é não saber especificamente onde olhar para constatar a originalidade dos carros. Este conhecimento é muito especifico e para nós passou ao largo. Mas sempre é tempo de dar uma olhada nestes raros espécimes.
Este é um assunto muito amplo, mas vamos começar com alguns exemplos de carros, aqui na Parte 1, e nas próximas partes vamos entrar em alguns detalhes destes carros, que certamente serão de interesse dos que querem se atualizar sobre este assunto.
Em junho de 2015 eu fui visitar a coleção do Richard Hausmann, então na cidade de Erlangen, pois a coleção está mudando para Nuremberg em 2017.
Trata-se de uma coleção dedicada especificamente a carros veteranos, alguns já restaurados de uma maneira simplesmente fantástica. O Richard é um dos grandes especialistas no assunto e angariou renome e respeito internacionais. Não é uma coleção grande, mas a qualidade é espetacular. Aliás, falar de quantidade neste tipo de carros é um contrassenso, já que a quantidade dos veteranos que sobreviveram é pequena; tanto que ocorrem restaurações de carros dos quais sobraram somente algumas partes, desde que sejam carros comprovadamente históricos.
Os carros que vamos apresentar fazem ou certamente já fizeram parte da coleção do Richard, alguns já podem ter sido vendidos. Sua apresentação é feita para ilustrar a questão dos carros veteranos, se bem que os carros que estão com ele no momento são incríveis.
O próprio Richard conta como foi que a sua coleção começou, como segue:
Com 18 anos o meu primeiro carro foi um Fusca 1300 ano 1966 na cor azul Bahamas. Meu segundo carro foi um pouco mais moderno, a saber um VW Super Beetle 1303 de 1973, na cor amarelo Rimini que era realmente espalhafatosa. Com o meu terceiro carro eu comecei a procurar Fuscas mais antigos.
Inicialmente comprei um Fusca azul com janela traseira retangular e com teto solar de lona, fabricado em setembro de 1957 [N.d.T: na Alemanha os Fuscas 1957 já saíram com a janela traseira retangular e o novo painel – coisa que foi implementada no Brasil somente em 1959]. Um ano depois que eu vendi esse besouro bateu a tristeza, afinal de contas ele foi o nosso carro de casamento, e o desejo de ter outro Fusca tomou conta de mim e eu comprei meu primeiro Brezelkäfer (Fusca de duas janenlinhas traseiras), um belo e original tipo 11G (com teto solar) de 1951. Isso foi em 2000. Seguiram-se outros.
Depois eu comprei alguns para revender. Isto aconteceu com um Cabriolé Karmann de 1952 e um besouro oval standard ano 1953 muito original. Ambos participaram, com meu standard de 1949, do Desafio Vintage Volkswagen Challenge de Erlangen até Pequim [N.d.A: esta aventura será contada em uma outra matéria].
Em 2005 eu comprei o meu Fusca 1949 Standard, um dos primeiros que foram fabricados para exportação, que ainda não tinha precisado de reforma no assoalho; e um pouco mais tarde eu comprei o meu Standard de junho de 1949, ainda com o tanque pequeno.
Em 2009, Peter Porter me ofereceu um KdF tipo 60 que eu comprei imediatamente logo depois da primeira inspeção mais detalhada. Este carro, como foi possível determinar durante a restauração feita posteriormente, é um exemplar muito original dos poucos KdF’s sobreviventes.
Quando, em 2011, eu recebi inesperadamente uma considerável quantia de dinheiro, eu investi uma parte em mais alguns membros da minha coleção. Então eu comprei, no final de 2011, um Hebmüller ano 1950 quase totalmente restaurado.
Pouco depois, no primeiro semestre de 2012, vieram um Fusca Cabriolé 1950 feito pela Karmann e outros dois Fuscas usados pelas forças militares de ocupação: um de 1947 (US Army) e outro de 1948 (BAOR-British Army of the Rhine); que acabaram estourando a capacidade da minha garagem.
Em dezembro de 2012 e janeiro de 2013, adquiri mais dois besouros de 1946, um nos Estados Unidos e outro na Alemanha. No verão de 2013, consegui fechar a esperada compra do KdF de Moscou, que eu conhecia desde a nossa viagem de Erlangen a Pequim. Quase ao mesmo tempo, me ofereceram o KdF que estava sobre cavaletes no teto de uma oficina na Lituânia servindo de chamariz, que também comprei.
De lá para cá a coleção foi incrementada por três Kombis e outros exemplares. Quanto ao espaço eu decidi construir um Museu na cidade próxima de Nürnberg, que está em fase de acabamento e transferência dos carros.
Para dar uma ideia da distribuição dos carros da coleção do Richard eu coloquei as suas datas de fabricação numa linha de tempo que reproduzo abaixo:
Passamos a alguns dos exemplares que fazem ou já fizeram parte da coleção do Richard. Vamos começar pelo carro que ele comprou em dezembro de 2009, um KdF tipo 60 fabricado em abril de 1943, que foi fornecido no dia 29 de maio ao N.S.K.K. em plena Segunda Guerra Mundial.
Um pouco de história: o NSKK (Nationalsozialistische Kraftfahrkorps – Corpo de Transporte Motorizado Nacional-Socialista) foi uma organização paramilitar do NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei – Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, mais conhecido como Partido Nazista). O NSKK era composto por motoristas, mecânicos e motociclistas. O objetivo primário do NSKK era educar seus membros com habilidades de direção e também deixá-los aptos à execução de tarefas de manutenção de automóveis e motos. Esta organização também deu suporte às “Silberpfeil – Flechas de Prata” carros de competição Grand Prix da Mercedes-Benz e da Auto Union que ostentavam a cor prata — direto na chapa de alumínio.
Este carro fez parte de um lote de oito KdFs que foram fabricados já numa época de tempos difíceis, lembrando que o foco da fábrica, então confiscada pela Luftwaffe, a Força Aérea Alemã, eram componentes de avião, a bomba voadora V1 e só depois vinham os dois tipos de jipes e os poucos Fuscas. Já havia falta de peças e acessórios, tanto que este carro veio sem as “bananinhas” (setas semafóricas), cujas aberturas na coluna central foram cobertas por chapas de metal soldado.
Entre 2012 e 2013 ele foi submetido a uma restauração integral feita pelo renomado especialista polonês Jacek Krajewski, de Varsóvia. O carro encontra-se em estado totalmente original. Os capôs dianteiros e traseiros, bem como as portas são originais, o mesmo se aplica ao assoalho e ao restante da carroceria. As estruturas dos bancos estavam bem conservadas e foram restauradas com um pano que foi tecido segundo o padrão original. Com isto ele foi o primeiro KdF restaurado com tecido original.
Seguem-se três fotos do carro tiradas pelo Richard, detalhe para o cano de escapamento que sai a 45º, solução que foi usada naquela época:
Muitos detalhes dos carros produzidos a partir de 1941 se diferenciam dos modelos pós-guerra; os componentes como portas e capôs tinham o número da carroceria puncionados, no caso deste carro o número é “519” que foi preservado.
Certamente, a diferença mais óbvia é o tanque de combustível e a área ao redor. O tanque em forma de barril, cilíndrico, e os “narizes” em ambos os lados são um indicador claro para um KdF. Mas isso não é tudo. Na foto abaixo podemos ver o tanque em forma de barril atrás do estepe, que apresenta outra curiosidade, já que era aparafusado num suporte:
A foto seguinte dá uma visão mais detalhada dos detalhes do tanque tipo barril , suporte do estepe e dos “narizes”; neste caso a placa de identificação deste carro fica no lado direito do carro.
Dando uma olhada mais em detalhe nos tais “narizes” vamos ver fotos dos dois e o detalhe para o logotipo do KdF no “nariz” do lado direito do carro que são indicativos de autenticidade dos KdF:
Os primeiros anos de produção do Fusca foram bastante “agitados” no que se refere às modificações, e em muitos casos às adaptações causadas pela falta de material decorrente tanto da guerra como do pós-guerra, até a estabilização da fábrica no após chegada da paz, já na era Nordhoff. Isto complica em muito a vida dos colecionadores destas raridades que têm que saber se o seu carro tinha, por exemplo, o chicote de cabos elétricos do lado direito ou esquerdo, ou de que lado deve estar a placa de identificação do carro. Isto se torna mais crítico nos casos em que os carros são encontrados em estado muito precário, onde várias coisas foram mudadas pelos usuários; a situação mais crítica é dos carros que foram para trás da Cortina de Ferro, onde não havia peças e para que os carros continuassem andando foram feitas adaptação das mais estapafúrdias.
Vamos passar para um exemplo destes carros que foram fortemente modificados por seus usuários. Vamos a um “Kommandeurwagen” (carro do comandante), um KdF tipo 92 de abril de 1943. Originalmente o chassi era de um jipe leve (Kübelwagen) com a carroceria de um sedan KdF. Ou seja com a suspensão dianteira elevada e as caixas de redução nas rodas traseiras.
Este carro tinha sido originalmente entregue no dia 8 de junho de 1943 para a Diretoria Geral de Tráfego do Leste, em Varsóvia, mas foi resgatado por volta do ano 2000 na Lituânia, onde estava encarapitado no teto servindo, já por uns 10 anos, de chamariz para uma oficina. Na época de seu resgate este raro KdF estava assim:
A primeira coisa que foi feita no caso deste carro foi a busca de indicativos de sua autenticidade, como foi o caso do número da carroceria que estava coberto por várias camadas toscas de tinta, como podemos ver nas fotos abaixo do site “The Samba”:
Adiante se foi verificar o número do chassi, que naqueles carros ficava no túnel próximo à base da alavanca de câmbio, e lá estava o número de chassi:
O carro tem muitos detalhes originais, como as caixas de redução nas rodas traseiras, visto que seu chassi é do Kübelwagen. Com isto este carro do comandante tem uma distância ao solo maior que lhe confere maior capacidade de vencer terrenos difíceis. Na foto abaixo se pode ver as caixas de redução deste carro, este tipo de caixa de redução foi empregado nas primeiras Kombis também:
A traseira do carro vista por baixo ainda quando o carro estava sobre um cavalete no teto da oficina; detalhe para as caixas de redução nas rodas (Foto: The Samba)Para dar uma visão do estado deste carro quando ele foi resgatado, aí vão algumas fotos com detalhes. O trabalho de restauração será complexo e demorado, mas certamente resultará em mais uma peça histórica preservada; as fotos são do site The Samba:
Eu vi este carro lá na garagem do Richard em Erlangen, ele está esperando a vez para ser restaurado, visto que há outros carros o sendo também. Certamente estas restaurações têm um custo elevado, mas é muito bom que o Richard possa fazer este investimento em veículos que fazem parte dos primórdios da saga do Fusca.
Passamos para o “Belo Adormecido”, um superexemplo de “Barnfind”, pois este carro, fabricado em 23 de setembro de 1948, deu baixa em seus documentos em 18 de outubro de 1951 e ficou hibernando, como mostrado na foto de abertura, até 13 de agosto de 2005, quando foi adquirido pelo Richard. A nova lacração veio a ocorrer em 9 de julho de 2009, quando o carro ficou novamente em suas condições excepcionais de uso.
Trata-se de um Fusca standard tipo 11, e como vimos, ano 1948. Este carro recebeu alguns “mimos” quando comprado, como os para-choques cromados, calotas cromadas, friso cromado no estribo, aros de farol cromados, lanternas traseiras com friso cromado, fechos dos capôs cromados, transformando a sua aparência mais próxima ao modelo de exportação que estava sendo lançado na época para tornar os carros mais palatáveis nas disputas com carros mais luxuosos de outros países.
Algumas fotos do carro feitas pelo Richard; no carro as suas placas originais que tiveram que ser substituídas por placas novas placas unificadas no Mercado Comum Europeu:
As placas originais antigas compõem a originalidade do carro e são usadas em eventos; na foto abaixo o Richard mostra as placas para o Manfred Braun:
Em matérias anteriores alguns leitores se referiram ao ruído característico do motor dos Fuscas antigos. Para atender a esta clientela ai vai um vídeo curtinho que eu fiz e que mostra o Richard manobrando este Fusca para colocá-lo de volta na apertada garagem de Erlangen:
Nas fotos a seguir, alguns detalhes deste carro:
Aqui terminamos a Parte 1 desta matéria. Na Parte 2 continuaremos a apresentar mais carros desta incrível coleção.
Navegador desta matéria:
Parte 2
Parte 3
AG
Registramos o agradecimento ao Richard Hausmann por ter aberto as portas de sua garagem e ter enviado material sobre seus carros. Também agradeço ao Manfred Braun pelos contatos que ele propiciou.
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