Se costuma dizer que todos temos ao menos um causo com Fusca, sim, para aqueles que já completaram trinta anos isto é bem verdade.
Até o Lourenço Diaféria (1933-2008), contista, cronista e jornalista brasileiro, ao se referir ao Dia Nacional do Fusca, comemorado no dia 20 de janeiro de todos os anos, acabou falando de um causo seu com um Fusca. Apresentamos este causo com sabor de crônica.
UM BEIJO PARA A MENINA SEM MÃO
Por Lourenço Diaféria
em janeiro de 2006
Fusca é substantivo comum. De alguma forma, máquinas são símbolos. Mas o Fusca, mais que todos, por antiguidade e persistência, inscreveu-se entre os móveis e utilidades domésticas. Não sei se estou falando alguma novidade. A mecânica do Fusca marcou época. O pequeno veículo que assombrava multidões não era simplesmente um automóvel. Era um monumento à tecnologia.
Alguém deve lembrar-se do Jaguar. Tive um amigo, aliás morto, que idolatrava seu Jaguar. Usado, mas perfeito, impecável. Outros curtiam seu Simca Chambord. Quando varavam ruas ou lavavam o veículo em frente de casa, proporcionavam espetáculo deslumbrante. Aos poucos o Simca caiu de moda. Outros falavam dia e noite do orgulho de seu Gordini. E o Romi-Isetta? O fato é que os automóveis, ao envelhecer, rolam para os cemitérios. Já o Fusca resiste e insiste. Ainda agora reaparece, orgulhoso, em outras versões, como um troféu.
Também tive um Fusca, meu primeiro automóvel, conquistado num sorteio de consórcio. Faz séculos. Dirigia precariamente, mas era afoito como todo jovem. O grupo de colegas saímos pela BR-116 rumo ao sul. Alegres, confiantes, satisfeitos e atrevidos. Acontece que, ao longe, muitos quilômetros adiante, apareceu um baile fino na estrada. Totalmente inesperado. No salão, meninas perfumadas, gentis, e garotões secando os visitantes. Mal deu tempo de meia dúzia de valsas. Repentinamente, de donos do mundo nos transformamos em bicões. Achamos melhor zarpar, por questão de amor à pele.
De manhã, caímos fora, retomamos a estrada. O céu estava nublado, plúmbeo, como se costuma dizer, asfalto úmido. Ficaram para trás os perfumes, os vestidos de festa, o salão enfeitado. Fomos, a bem dizer, enxotados.
A menina mais bonita do baile, a mais perfumada, a mais doce, a mais gentil – tinha um agradável hálito de menta na boca – ficaria eternamente para trás. O único problema é que não tinha uma das mãos. Quem a tirou para dançar, antes de ser expulso, foi o Fraterno. O Fraterno! Nunca mais se viram. Jamais tiveram oportunidade de se apaixonar para sempre. Nem puderam deixar desabrochar o olhar. Fiquei sabendo depois que, acuado, o Fraterno se mandou. Sem fazer sequer um covarde gesto de adeus.
No meio da manhã caiu a chuva, imensa, pingos grossos na serra, nos pinheiros, toldando o horizonte. Faltava, então, acontecer o imprevisto, o acidente previsível: um ônibus da Curitibanos bateu contra o Fusca. De rodas para cima, o carro lembrava uma peça de churrasco chamuscada. Uma família de madeireiros socorreu os acidentados. Um casal fez uma oração. Ainda bem que ninguém estava morto. Grávida de meses, uma mulher que passava prestou socorros, e partiu.
E a menina que tinha apenas uma mão e dançou com o Fraterno? Deve ter casado. Deve ter tido filhos. Os pinheiros, onde estarão? E as gralhas? O motorista do ônibus veio perguntar, pressuroso, se estávamos em condições de seguir viagem. Retomamos o pé na estrada, de carona, a cabeça ardendo. O cegonheiro depositou sua encomenda na oficina mecânica. Muitas vezes depois voltamos ao sul. Sempre desviando o rosto para não recordar os maus pedaços daqueles trechos.
O sol aos poucos foi ficando agradável e ameno. As noites passaram a ter estrelas, riscavam o céu, havia nuvens, pássaros, cheiro de pinhões. Também chovia, claro. De qualquer modo, nunca mais vi a menina que dançou com o Fraterno num salão de baile na cidade de Curitibanos.
Conto estas coisas apenas porque em janeiro se comemora o Dia do Fusca, e então me deu vontade, tantos anos depois, de mandar um beijo para a menina que tinha apenas uma mão e que dançou com o Fraterno num salão da beira da rodovia. Tais coisas faz bastante tempo. Juro jamais voltar ao assunto.
Os causos formam um acervo histórico “na prática” da trajetória do Fusca no Brasil e este espaço está aberto também para os causos de nossos leitores, caso você tenha um causo e queira enviá-lo (alexander.gromow@autoentusiastas.com.br) é bem capaz que ele acabe sendo publicado na coluna Falando de Fuscas & Afins.
AG