Investir milhares e milhares de dólares em um carro de corrida que não pode correr em nenhum campeonato será uma boa decisão nos tempos de hoje, em que economias mundiais estão em crise e o setor automobilístico está passando por uma mudança por conta da onda da “revolução da mobilidade”? Certamente que sim.
A Porsche está usando o seu modelo 919 do Campeonato Mundial de Resistência (WEC) com diversas modificações para quebrar recordes em diversos circuitos pelo mundo. A equipe alemã abandonou o WEC no fim do ano passado, após três títulos mundiais e três vitórias consecutivas na 24 Horas de Le Mans, desbancando primeiro a sempre favorita Audi e depois, a Toyota.
Com a proposta de extrair o máximo do carro, sem as restrições técnicas do regulamento da WEC, a equipe de engenheiros da Porsche modificou o 919 para aprimorar a velocidade do carro, potência do trem de força híbrido e a downforce.
E como que um dos melhores protótipos do mundo pode ser melhorado ainda mais? Dando liberdade para os engenheiros extraírem mais e mais dos componentes do carro já existente, sem limitações impostas por regras.
A proposta era utilizar o máximo de componentes do 919 do campeonato, ou seja, o mesmo motor, mesmo chassi, sistemas elétricos, hidráulicos, etc, porém extraindo o máximo. Uma vez que o carro não precisa durar o mesmo tanto que numa corrida do WEC, que tem pelo menos seis horas de duração, a tarefa já fica mais simples.
O motor V-4 de dois litros teve os restritores de fluxo de combustível removidos e um novo mapa de gerenciamento, o que elevou a potência máxima para algo perto dos 750 cv, quase 200 cv a mais do que a versão de corrida. O sistema híbrido de tração também foi alterado e, sem a restrição do regulamento, ele pode acumular mais energia, o que significa que ele pode usar mais potência nos motores elétricos do eixo dianteiro e por mais tempo. A potência total da motorização híbrida é algo em torno de 1.200 cv.
O carro também ficou mais leve em 40 kg, pesando agora 890 kg em ordem de marcha com piloto. Isto dá uma relação potência-peso de 1.350 cv/t, bem perto de um carro da F-1, que está perto dos 1.500 cv/t.
Como a maioria dos carros de competição de ponta, a aerodinâmica é um dos pontos mais importantes do projeto do carro, e o 919 Evo não é diferente. Sem as limitações de tamanho de asa e posição, dutos de ar, extrator e assoalho, o carro agora tem 53% mais downforce que o carro do ano passado, além de uma eficiência aerodinâmica total de 60% melhor, o que significa que a relação entre arrasto e downforce gerados é superior.
Pneus especiais foram desenvolvidos para o carro, com maior aderência, uma vez que a durabilidade não precisa ser alta pois o carro só vai andar poucas voltas a cada jogo de pneus. Tudo isso nos mostra na verdade o que o 919 original é capaz de fazer, se não for limitado por regulamentos.
Até agora, dois recordes foram quebrados: Spa-Francorchamp e Nürburgring.
Em Spa, um dos circuitos mais rápidos e desafiadores do mundo, o Evo bateu o recorde da pista por 0,783 segundo, até então marca de Lewis Hamilton com o Mercedes W08 feita na qualificação do GP da Bélgica do ano passado. Na mesma pista, o Evo foi 12 segundos mais rápido que o 919 convencional de 2017.
Em Nürburgring, o anel norte (Nordschleife), a mais famosa pista do mundo por seus tempos de volta que virou até medida de desempenho para carros de rua, o recorde foi superado por muito mais. O recorde anterior, também da Porsche, com Stefan Bellof e o 956 do Grupo C que era de 6min11,13s marcado em 1983, caiu para incríveis 5min19,546s.
A velha discussão de que o recorde de 1983 foi feito em um traçado diferente, único daquele ano por conta da construção do circuito da F-1 atual, não faz mais diferença alguma, pois por ser quase um minuto mais rápido, tanto faz o circuito de 1983 ser um pouco diferente ou não.
Esta é uma marca impressionante, é um carro muito rápido. Para se ter uma ideia, os carros modernos mais rápidos são o McLaren P1 LM, que modificado fez 6min43,22s e o 911 GT2 RS do ano passado, que fez a volta em 6min47,25s.
Pode-se notar nos vídeos acima que a condução do 919 é mais suave que o 956. Desconsiderando as condições da manutenção do asfalto e planicidade do piso, o 956 é um carro muito mais arisco e complicado de guiar que o 919, mesmo sem vermos a volta completa. Isto mostra a evolução que existiu nos protótipos nestes 30 anos.
Todo o desenvolvimento de sistemas de suspensão modernos, direção assistida e um chassi extremamente rígido ajudam a tornar a pilotagem mais tranquila. Na realidade, um carro fácil de guiar tornou-se necessário, pois imaginem a dificuldade de pilotar por três horas seguidas um carro que precisa ser domado a cada curva. É arriscado demais, pode-se perder uma corrida por cansaço desnecessário. No caso do Evo, o sistema de ar-condicionado foi removido para redução de peso, mas normalmente os carros do WEC possuem tal recurso.
A relevância deste feito da Porsche com o 919 Evo foi muito discutido, e gerou muito retorno de marketing. E marketing e propaganda são dois pontos fortes da Porsche, além de seus belos carros. Mostrar a superioridade técnica e deixar registros pelas pistas do mundo é uma ótima propaganda para uma marca de carros esporte. Todas as mídias sociais “bombaram” com a notícia do feito em Nürburgring, e a pergunta que fica agora é: o que será o próximo?
Comparativamente, o feito de 1983 foi marcante pois na época os carros do Grupo C e os F-1 eram igualmente velozes, onde em algumas pistas o F-1 era mais rápido e em outras, os Grupo C. Hoje, a equivalência se mantém, com uma ligeira vantagem para os F-1. O que o 919 Evo fez foi trazer de volta a vantagem para o lado dos protótipos.
Desde 2007 que um F-1 não coloca um tempo de volta no Nordschleife, quando Nick Heidfeld deu algumas voltas com o BMW-Sauber, mas o tempo foi muito longe de qualquer marca relevante. A melhor volta foi acima de 8 minutos e meio, mas a proposta era apenas demonstrar o carro para o público. Seria pelo menos curioso ver um F-1 moderno andando forte no circuito alemão. É de se esperar que uma volta perto do tempo do Evo seja possível.
Esses tempos de volta, recordes de pista e afins seriam relevantes? Muitos dizem que é pura bobagem e que não agregam nada. Eu penso que este desafio de ser mais e mais rápido pode trazer inovações e força os limites da engenharia e criatividade. É o mesmo caso dos supercarros, como o Bugatti Veyron e seus 1.001 cv e os 400 km/h. Não se trata dos números, mas de se empurrar mais para frente os limites conhecidos da engenharia.
O Evo pode ainda ser um laboratório para o novo regulamento da WEC que em 2020 entra em vigor, com foco no que estão chamando de “hipercarro LMP1”, que seria a alteração dos atuais protótipos da LMP1 para carros mais parecidos com carros como o McLaren P1 ou o Aston Martin Vulcan.
Na prática, muito pouco se aproveita diretamente, por exemplo, do 919 Evo para um carro de rua, mas o conhecimento adquirido e conceitos testados podem evoluir ao longo do tempo para aplicações reais em carros de produção. Foi assim e continuará sendo enquanto o automobilismo existir.
MB