Sobraram poucos países que realmente ainda quero conhecer. E a China era o primeiro da lista. Finalmente fui à China e fui enganado. “Coleguinhas” jornalistas que já haviam estado por lá alertaram: a comida é muito complicada, você passa fome, tem dor de barriga todo dia… leve muitos remédios.
E lá foi o Tio para o outro lado do planeta levando uma farmácia: remédios para o estômago, fígado, intestino… Quase inclui uma rolha.
Tudo errado. Depois de 24 horas de voo, mais umas 10 horas de aeroporto, finalmente cheguei naquele enorme e intrigante país. Claro, no meio havia uma escala em Addis Ababa (só a gente acha que é Adis Abeba), pois fomos com a Ethiopian Airlanes, a convite da agora chino-brasileira CAOA-Chery, para ver o Salão de Beijing (que também só a gente acha que é Pequim).
Bastou usar um pouco de lógica, que funciona até na China. Não via cachorros ou gatos pelas ruas. Logo, evitei comer carne. Também não via pombos, nem nas enormes praças. Logo, não encarava o “flango”.
Comi muitos frutos do mar e um monte de gororobas condimentas (meio adocicadas e bem apimentadas), que me recusei saber o que eram. Não tinham gosto nem de carne, nem de “flango”. Em Wuhu, sede da Chery, comi um camarão com alho e especiarias chinesas que me deixou saudade. De quebra, para acompanhar o camarão, tomei um leve fogo com uma aguardente chinesa, provavelmente de arroz, que estava ótima e não deu a menor ressaca. Tudo pedido no espertofone da dona do restaurante, que escrevia em chinês e traduzia para inglês (e vice-versa).
Resumo desta opereta bufa de abertura: engordei dois quilos em cinco dias e não tive nem sobra de dor de barriga. Nem mesmo um começo de azia.
Fiquei cinco dias, mas a China merece pelo menos um mês para ser mais bem entendida, não só pelos carros e motos, mas pelo desenvolvimento impressionante, que salta aos olhos, independentemente dos números do PIB.
Em Beijing/Pequim e também em Xangai praticamente só se vê nas ruas carros de luxo: muitos SUVs, mas o chique é ter um sedã grande, claro, com distância entre eixos alongada. Modelos de luxo alemães conhecidos por aqui, mas feitos por lá em associação com empresas estatais chinesas (Audi, BMW e Mercedes), ganham entre 20 e 40 cm a mais de entre-eixos. Uma exigência dos chineses, que querem grandes e compridos sedãs para desfilar. Existem SUVs pelas ruas, mas o máximo é ter sedã grande, maior ainda pela carroceria alongada.
E também se vê pelo país todo milhares de scooters, 99% elétricos. E aí se entende melhor a eletrificação dos carros que agora começa na China.
O processo foi simples: modelos bem básicos de scooters elétricos foram colocados em supermercados com preço atraente. E, o mais raro por lá, com vendas em prestações. Em cerca de dois anos os scooters com motores convencionais a combustão simplesmente desapareceram.
Mesmo com sua autonomia limitada (raramente passam de 50 km sem recarga), além de usados nas cidades, podem ser vistos pelas estradas, cheio de passageiros e cacarecos. E a popularidade das netas elétricas da Vespa abre caminho para os carros elétricos.
O maior argumento para a eletrificação está também na poluição brutal das grandes cidades. Mesmo para quem está acostumado com a poluição de uma cidade como São Paulo, existem dias em Beijing que assustam: mal se enxerga o outro lado da rua.
Os modelos são sempre simples e baratos, mesmo assim existem opções, inclusive para as garotas
E olha que a entrada de mais carros nas grandes cidades é limitada pelo fornecimento de novas licenças. O número de novos emplacamentos é sempre menor que a demanda, e as novas placas são leiloadas mensalmente pela internet. Uma nova licença, em grandes cidades, pode custar algo entre US$ 15 e 20 mil dólares. Por isso que quase só se vê carros caros e de luxo pelas ruas. Depois de pagar tudo isso por uma placa, dificilmente ela vai ser colocada em um carrinho barato e popular.
Mas, em meio a este racionamento de novas licenças, com placa azul, cresce rapidamente outro tipo de veículo, com placa verde, exclusiva para carros elétricos. E aí está outro grande incentivo: para os elétricos e sua placa verde não existe leilão de licenças. Basta comprar, emplacar e sair rodando.
O governo chinês nomeou sete empresas para produzir elétricos (a Chery é uma delas) e criou vários incentivos e isenções tributárias para popularização. Incentivos federais, estaduais e municipais, que vão durar entre dois e três anos. Assim, já inicialmente os elétricos terão preço competitivo em relação aos carros convencionais. Com o tempo, e aumento de produção, esperam que o preço diminua naturalmente e incentivos não mais serão necessários.
Já este ano, 8% dos carros vendidos serão elétricos, o que é muuuiiito carro. As vendas de veículos na China em 2018 deverá ser de 30 milhões de unidades. Tirando caminhões e ônibus, sobram 24 milhões: 8% disto são quase 2 milhões (1.920.000), comparável a toda produção brasileira neste ano.
E de onde virá a energia elétrica para abastecer tantas baterias? Viajei cerca de 1.500 km pela China (de trem bala a 300 km/h) e perdi a conta de tantas usinas nucleares que vi pelo país, a maioria novinha, com o concreto de seus enormes cálices recém-desmoldado. Ao que tudo indica as velhas usinas a carvão ou óleo pesado estão ficando no passado.
O que vão fazer com tantas baterias para reciclagem? Inicialmente, o governo chinês regulamentou os componentes das baterias. Agora sempre são de íons de lítio misturadas a outros elementos predeterminados.
Exatamente para facilitar a reciclagem, na China elas sempre terão a mesma fórmula para, em cerca de oito anos, serem reaproveitadas para novas baterias para nobreaks e outras utilizações que não exijam tanta eficiência. Nestes primeiros oito anos (duração média das baterias atuais), os chineses estudam o que fazer na segunda reciclagem ou mesmo como fazer um descarte não poluente.
Resumindo: tudo que vai surgir de novo em carros elétricos deve vir da China. Por motivos muito simples: ao contrário dos carros convencionais a combustão, quando os chineses estão sempre um ciclo atrás, nos elétricos eles começam junto com todos os países, mas com produção em massa… E ainda tem a vantagem de serem os produtores de boa parte da parafernália eletrônica que também equipa os carros elétricos.
Quer saber o futuro do carro elétrico? Esqueça os países nórdicos e seu marketing e observe o que vai acontecer na China. Esqueça também os carros de luxo que já pingam pelo Brasil e olhe para os chinos elétricos populares. É por aí que vai caminhar esta nova alternativa de transporte pessoal.
Claro, rodei com carros elétricos na China, E também, claro que eram da Chery, nossa anfitriã.
Adoro motores a combustão mas, tenho de reconhecer, os elétricos também são gostosos de dirigir. Principalmente por duas razões. Primeiro sua sempre ótima aceleração já que motores elétricos têm alto torque, constante em qualquer rotação. Depois, pela sua capacidade de fazer curvas rápidas. Independente de suspensão ou pneus, a penca de baterias colocadas no assoalho e também os motores elétricos montados na altura dos eixos fazem que o centro de gravidade seja muito baixo, quase impossível de se conseguir em carros com motores convencionais.
A forma de dirigir é diferente e requer alguma adaptação. Principalmente para não abusar das acelerações (e diminuir muito a autonomia) e também para reaprender a frear, reagindo com antecipação a qualquer obstáculo a frente, seja trânsito mais lento ou um sinal que vai ficar vermelho. Assim, praticamente não se usa o freio: é só tirar o pé do acelerador e deixar que o forte “freio-motor” diminua velocidade e recarregue as baterias. A forma de dirigir chega aumentar em mais de 50% a autonomia.
O trauma de recargas já está bem menor, já que quase todos os elétricos atuais recuperam 80% de sua carga em apenas 30 minutos de recarga em uma tomada de alta intensidade de corrente (a popular “amperagem”).
A Chery faz três diferentes modelos: o pequeno eQ1, o eQ (versão eletrificada do conhecido QQ) e também o Tiggo 2 elétrico (chamado de Tiggo 3 xe EV na China). Rodei com os três modelos elétricos na fábrica em Wuhu.
Usando a mesma carroceria das versões convencionais já industrializadas no Brasil pela CAOA-Chery em Jacareí (SP), o QQ EV e o Tiggo2 EV têm maiores chances de serem vendidos aqui. Ainda este ano a CAOA pretende trazer os três elétricos para clínicas e pesquisas de mercado e eles devem estar no Salão do Automóvel de São Paulo em novembro.
O pequeno Chery eQ1, para duas pessoas, lembra o smart inclusive no reduzido comprimento, de 3,2 m. Urbano, tem até 41 cv de potência chega aos 100 km/h, com autonomia de 180 km após recarga completa da bateria (em 8 horas; carga rápida de 30 minutos fornece 80% de recarga). Apesar da aparente pouca potência, é bastante esperto e ágil. A pequena distância entre eixos (2,34 m) permite rápidos desvios de trajetória (claro, direção com assistência elétrica) e mostra frenagem eficiente, auxiliada pelo sistema de recuperação de energia, que recarrega as baterias em desacelerações. Até luxuoso pela proposta urbana, conta com tela interativa no painel e ar-condicionado.
Já o Chery eQ (ou QQ EV) tem linhas bem conhecidas por aqui e também ganhou certo luxo nesta versão elétrica. Mais forte que o pequeno eQ1, o QQ EV conta com motor elétrico de 57 cv e acelerações um pouco mais rápidas, melhores que a versão convencional com motor a combustão.
Mas sua velocidade máxima é também limitada aos 100 km/h para preservar a autonomia (de 200 km). O prazer ao dirigir está exatamente na agilidade, com manobras rápidas e aceleração suficiente para se livrar do trânsito congestionado. Tela multimídia e condicionador de ar completam o pacote do QQ elétrico, além de alguma decoração externa para diferenciar do modelo convencional.
Para os admiradores dos elétricos, o Tiggo 2 EV (Tiggo 3 xe na China) reserva o melhor do pacote, tanto em autonomia como em performance. Seu motor trabalha normalmente com 60 cv, mas permite picos de 122 cv, quando chega a 152 km/h. Claro, o melhor é usar menor potência para se chegar a uma autonomia de até 350 km. Mas é difícil resistir a uma aceleração de colar as costas no banco, digna de um esportivo. Fabricado desde 2009, também usa atualmente a nova carroceria do Tiggo 2 com motor a combustão, lançado recentemente aqui pela CAOA-Chery.
O acabamento interno também é semelhante, com exceção de funções típicas de um elétrico, como um simples botão para colocar o carro em Drive, Neutro ou Ré. Não existe câmbio. Porém, com certeza a versão elétrica é bem mais rápida que a convencional. Sua autonomia já permite viagens, ainda mais que tem recarga rápida de 80% em apenas 30 minutos. E isso depende de postos de carga de alta intensidade em locais estratégicos, solução que já se desenvolve rapidamente na China, mas anda bem devagar no Brasil. A primeira iniciativa começou agora com a BMW inaugurando postos de recarga na Via Dutra, permitindo fazer São Paulo-Rio sem problemas de desabastecimento.
Ou seja, para que o carro elétrico seja viável também por aqui, existem dois problemas: preço e estações de recarga. O preço com certeza depende dos chineses, com sua produção em grande escala e sua capacidade de produzir com baixo custo.
E as estações de recarga no Brasil vão também depender da popularização do carro elétrico. À medida que forem aumentando as vendas de carros as estações vão surgindo.
Tudo isso, a longa viagem, conhecer a China, experimentar vários carros elétricos, e não ter passado mal com a comida de lá, valeu a pena.
JS