Nessa parte final, uma filha fala de seu pai
Agora vamos para uma imersão na visão de uma filha sobre seu pai em várias passagens da rica vida deste grande brasileiro. Os painéis e comentários da Parte 1 desta matéria se incorporam nesta Parte 2, onde alguns aspectos serão aprofundados graças aos comentários da filha primogênita do Márcio Piancastelli, Alessandra Iha Piancastelli Lóss. Pai e filha aparecem na foto de abertura desta parte da matéria em duas épocas diferentes: ela quando criança e no dia do casamento.
Comentários da Alessandra, com minha contribuição nas legendas das fotos.
Do processo criativo e das fontes de inspiração
“Desde bem pequeno era notável como suas ideias eram facilmente transferidas da sua cabeça para um esboço num pedaço de papel. Quando ele tinha apenas dez anos ele já estava criando carros e desenhou algumas visões da ‘cidade do futuro’.”
“Seus conceitos eram avançados, pois ele percebia o mundo à frente de seu tempo e desenhar era a maneira como ele melhor se expressava. Ele gostava especialmente de ‘mobilidade’, o que resultou no design de carros.”
“Ele nasceu em 1936 em uma família católica elitizada de ascendência italiana, o que certamente permitiu-lhe acesso ao conhecimento, onde boa educação, esportes, artes e música eram essenciais.”
“No esporte ele era ‘um zero à esquerda’, mas, por outro lado, ele se formou como músico e tocava três instrumentos: violoncelo, violino e contrabaixo.”
“Era apaixonado por boa música, especialmente jazz, então ele sempre ouvia seus compositores favoritos enquanto desenhava ou jantava, e isso lhe dava muita inspiração. Várias vezes ele me disse como ele conseguia enxergar uma combinação de cores enquanto ouvia, por exemplo, uma composição clássica.”
“Ele era um homem determinado a viver uma vida feliz e encontrava motivação para isso sempre.”
“Uma vez eu voltava de uma longa viagem e ao me ver no aeroporto, assim que me abraçou ele olhou para a sacola azul que eu carregava e me perguntou se ele poderia ficar com ela. Alguns anos depois, a VW lançou uma edição limitada do Gol, apresentada inicialmente em duas cores: branco e um novo azul que foi desenvolvido por causa do olhar atento na sacola.”
“Como a inspiração dele nunca acabava, depois de se aposentar ele redesenhou algumas de suas criações, tanto aquelas que se transformaram em carros reais ou não, como pode ser visto na foto abaixo em alguns desenhos com recriações do VW SP2, feitas em várias épocas.”
“Tudo o que foi descrito até aqui é mostrado na foto seguinte, que mostra o home office do meu pai, que aparece sentado à sua “escrivaninha-prancheta” onde ele soltava a sua criatividade:”
Sobre seu humor
“Esta era uma das suas características mais marcantes, ele era um cara muito engraçado. Ele costumava criar bigodes ou esculturas divertidas com a matéria-prima disponível dentro do estúdio para garantir mais risos e entusiasmo à sua equipe, o que o fez ser mais querido porque ele sempre trazia atitudes positivas para o grupo.”
Destacou-se pelo trabalho em equipe e pelas suas soluções que levaram ao sucesso dos produtos
“Meu pai alcançou uma boa reputação como designer por causa de sua criatividade e por ser aquele que introduzia soluções inovadoras, mas também por causa da maneira com a qual ele costumava trabalhar e tratar seus colegas.”
“Na Ghia, ele despontou pela primeira vez trabalhando em algumas propostas muito bacanas, mesmo sendo um estagiário. Suas criações eram tão avançadas que seus mentores permitiam que ele participasse de algumas reuniões para as avaliações finais.”
“Na Volkswagen ele se tornou o líder do departamento de design devido à sua capacidade de inovar em alguns conceitos que sua equipe o ajudava a desenvolver. No entanto, ele não teve total liberdade em sua criação porque é assim que as coisas funcionavam na indústria.”
“Mesmo assim, há alguns casos, como o “Vamos cortar esse narigão!” com o VW SP2 (descrito na Parte 1 desta matéria), que mostrou claramente que ele tinha um olhar atento e suficiente força para colocar seus preceitos em ação, mesmo que à sorrelfa, como neste épico episódio. Basicamente, ele se destacava por ser aquele que colocava a “cereja em cima do bolo”.”
Pioneirismo “Made in Brazil”
“A indústria automobilística no Brasil era bastante nova e para aqueles poucos que estudariam Desenho ou Design, trabalhar num fabricante de automóveis certamente era uma experiência desejável de se ter.”
“Por exemplo, quando meu pai começou na Willys, em 1964, eles conseguiram desenvolver coisas novas que não eram produzidas nos EUA, mas que tinham que estar de acordo com sua estratégia de negócios da empresa.”
“Como estamos falando de um designer que foi funcionário de algumas das maiores empresas automobilísticas da época, é sabido que ele deveria se concentrar no trabalho exigido por seus chefes para preservar as respectivas identidades corporativas.”
“Parece que as coisas não mudaram muito na indústria automobilística hoje em dia. Ele costumava mencionar muito o “Zeitgeist”, como em cada época estava presente motivando criações similares em todo o mundo.”
“Ele conseguiu captar muita informação no tempo que passou no Ghia Studio e facilmente sentia e compreendia as necessidades e desejos do mercado europeu. Apesar de ter sido limitado por mentores, algumas de suas propostas progrediram até as definições finais, como as para a Borgward.”
“Anos depois, já colocado na VW, os projetos que se tornaram carros reais foram escolhidos a dedo por seus chefes, respeitando os padrões e estratégias da empresa.”
“Eles trabalharam em vários projetos interessantes, mas que nunca foram adiante, sendo que alguns dos que não foram materializados hoje constam do seu acervo.”
“Eu concordo que alguns de seus desenhos mostram uma espécie de tendência “supersônica” (como os que estão no Painel 03 na Parte 1). Apareceram até recentemente nos desenhos que ele criou para o seu netinho, assim como na foto mais acima que mostra foguetes e aviões a jato, criada quando ele tinha apenas 10 anos! Uma tendência que pairou sobre suas criações no decorrer dos anos.”
Alessandra Iha Piancastelli Lóss
Esta matéria, cuja Parte 2 termina aqui, traz o Márcio Piancastelli para um pouco mais perto de todos nós que admiramos sua pessoa e seu trabalho que resultou numa fase importante do design automobilístico brasileiro e que causa admiração também fora de nossas fronteiras. O material que foi oferecido ao leitor ou leitora desta coluna é rico, e a imersão feita pela Alessandra é um complemento sensível e esclarecedor feito por quem conviveu com o Márcio por muito anos.
Relembrando o que eu coloquei no início da Parte 1: “Se existe um assunto do qual eu trato com muito carinho e respeito, este é a herança que Márcio Lima Piancastelli deixou, principalmente no design automobilístico brasileiro.”
Com este trabalho damos mais um passo para a preservação de tudo isso.
AG