A primeira vez que eu li este causo do Paulo Levi foi no dia 27 de janeiro de 2012. O Paulo o havia publicado no seu blog, ADVERDRIVING, no dia 20 de janeiro daquele ano, no contexto do Dia Nacional do Fusca. Foi o amigo Romeu Nardini, do Clube do Lafer MP, que estava me ajudando no garimpo de causos, que tinha me dado a dica do causo do Paulo, foi assim que se fechou o circuito que agora desemboca nesta publicação.
MEU FUSCA, PRIMEIRO E ÚNICO
Por Paulo Levi
Hoje é o Dia Nacional do Fusca – e eu de mãos abanando, sem nenhuma historinha de Fusca pra contar. Tento justificar a mancada pensando que todas as histórias de Fusca no universo já foram contadas, de uma maneira ou de outra. E além do mais, eu só tive um mísero Fusca na vida. Nem posso dizer de boca cheia que ele era meu, já que eu o comprei em sociedade com um colega nos tempos em que estudava na Suíça.
Mas, pensando bem, até que dá pra espremer uma historinha de Fusca dessa minha experiência. Então, aqui está ela.
O Fusca que eu tive provavelmente nem se reconheceria por esse nome, já que era um legítimo Volkswagen Sedan fabricado em Wolfsburg — um Käfer (Fusca), portanto. Mas antes que alguém imagine que ele era uma preciosidade tratada a Apfelstrudel (bolo de maçã em pedaços com “massa podre”), é bom esclarecer que esse carro era um alquebrado modelo 1957 (ou 1958, não tenho certeza). Seu hodômetro já devia ter virado no mínimo umas duas vezes. Quase não restava biscoito nos seus pneus, só uma das bananinhas ainda encontrava forças para se levantar, e a pintura cor de café com leite parecia ter sido aplicada com uma brocha. Que aquilo ainda se movesse era um tributo à genialidade de Ferdinand Porsche, criador do carro que mais aguenta desaforo em todo o mundo.
Apesar de suas mazelas, era um carrinho brioso e cumpridor. A faculdade ficava num vilarejo afastado, e para ir à cidade mais próxima era preciso pegar um ônibus que só passava de 45 em 45 minutos, e geralmente ia lotado.
O velho Fusca me libertou desse incômodo, e eu lhe era grato por isso. Principalmente no inverno, quando eu podia curtir o calorzinho que emanava do seu rudimentar sistema de calefação em vez de amargar uma longa e tremebunda espera no ponto de ônibus.
Mas havia (sempre há…) um senão: as rígidas normas da faculdade, que proibiam os alunos de terem automóveis*. O que quer dizer que eu e o meu sócio Steve poderíamos ter problemas caso fôssemos apanhados in flagrante delicto. Por isso, o Fusca era mantido a uma distância segura da faculdade, num terreno pouco visível graças à topografia acidentada da região. Como uma precaução adicional, eu sempre levava comigo um narigão postiço acoplado a um óculo de mentirinha para ser usado nas áreas mais próximas ao campus.
A sociedade com Steve funcionava às mil maravilhas. Cada um de nós tinha uma chave do carro, e para usá-lo bastava que um avisasse o outro com um mínimo de antecedência.
Certo dia, fui de Fusca até a cidade. Na hora de voltar, uma surpresa: o carro não estava mais onde eu o havia estacionado. Fiquei transtornado e também perplexo. Quem é que roubaria um “pois é” daqueles, ainda por cima na Suíça?
Passada a reação inicial de pânico, deduzi que aquilo só podia ser obra do Steve. Como poderia ter feito uma coisa dessas, rasgando o nosso acordo de cavalheiros e deixando um amigo na mão, ou pior, a pé? Bufando de raiva, peguei o ônibus (lotado, é claro) de volta para a faculdade. E assim que cheguei, fui tirar satisfações.
Encontrei o Steve muito tranquilo e sorridente, como se nada tivesse acontecido. Achou graça da minha mal disfarçada fúria. “Sim”, admitiu candidamente, “fui eu que peguei o Fusca. Vinha andando pela rua quando vi o carro ali estacionado, e como a Susan estava comigo, resolvemos dar uma volta com ele. Não vai me dizer que você levou a mal, né?”
Contei até dez, voltei a respirar normalmente e entendi que os meus dias como coproprietário do Fusca estavam contados. O namoro entre Steve e Susan estava em fase ascendente, e todo mundo sabe que quem namora quer carro. Para não passar por outro susto daqueles, e também para não perder o amigo, disse a Steve que concordava em vender minha parte na sociedade desde que recebesse o valor correspondente ao que havia desembolsado, menos um deságio razoável por conta do uso que já havia feito do carro.
Steve topou na hora e o Fusca passou a ser só dele. O namoro com Susan engrenou de vez. E eu voltei a andar de ônibus.
A história podia ter acabado por aí, mas algumas semanas depois aconteceu um fato inesperado: um colega nosso se envolveu em um acidente de trânsito, também ao volante de um carro não autorizado, e isso levou a administração da faculdade a lançar uma grande blitz para identificar e punir os infratores. Todos os estudantes que estavam nessa situação, incluindo Steve, tiveram que vender os seus carros às pressas. Juro que não “ziquei” meu amigo, mas confesso que me senti bastante aliviado por não ser mais seu sócio àquela altura do campeonato.
Nunca mais vi aquele Fusca cor de café com leite. e nem mesmo tenho uma foto dele para postar aqui. É pena, já que foi o meu primeiro Fusca e também o último. Pelo menos sobraram essas recordações tiradas lá do fundo do baú para impedir que essa data comemorativa passe em brancas nuvens. Feliz aniversário, velho Käfer, onde quer que você esteja.
Vamos conhecer o Paulo Levi
O Paulo é brasileiro e paulistano. Estudou na Suíça entre 1968 e 1970. Foram os primeiros dois anos de faculdade. Esta ficava num vilarejo do Cantão de Ticino chamado Vezia, a alguns quilômetros de Lugano — foi nesta época que o causo relatado nesta coluna ocorreu.
Ele é um publicitário de sucesso, hoje aposentado, e está com 68 anos, foram 30 anos de carreira em agências de comunicação. Sobre isto ele descreveu: “Atuei como vice-presidente de Planejamento nas agências Lew’Lara, Young & Rubicam e Euro RSCG. Além disso, fui diretor de Planejamento na F/Nazca Saatchi & Saatchi.”
Na área automobilística, ele trabalhou (sempre em agências) para as marcas Fiat, Toyota, Ford e Kia Motors. Atuando como consultor, participou da concorrência pela conta publicitária da Chery Motors que resultou na conquista dessa conta pela agência Z515.
(*) Proibição de se ter carro, mas por quê?
Ao ler o causo do Paulo eu fiquei encafifado com o seguinte trecho:
Mas havia (sempre há…) um senão: as rígidas normas da faculdade, que proibiam os alunos de terem automóveis.
Aproveitei um contato recente com o Paulo para esclarecer isto e ele explicou: “A proibição se devia à convicção da proprietária/diretora da escola, o Fleming College, Mrs. Fleming, de que os estudantes (majoritariamente americanos) não deveriam ostentar para não ficarem com imagem de ‘ugly Americans‘** (americanos feios) perante a comunidade local. Os estudantes do primeiro ano eram proibidos de ter carros; já os do segundo ano podiam tê-los, desde que fossem devidamente modestos (Fuscas, Fiats modelos de entrada, etc.).
O mais divertido é que no meu segundo ano aconteceu uma rebelião de estudantes (bem coisa da era de Aquário…), e a Mrs. Fleming foi destituída pelo board da faculdade. Aí, liberou geral no front automobilístico: surgiram Alfas, BMWs, uns oito Porsche 356, três ou quatro 911 e até um Sunbeam Tiger…, mas essa já é outra história.”
(**) – Atrás da expressão “ugly Americans” se esconde um misto de coisas que eram uma pecha de estudantes americanos abonados que esbanjavam dinheiro, ostentando muito, e que perturbavam com isto a comunidade, e a paz e harmonia do local.
AG