Ainda sob choque e inconformado com o falecimento, ontem, do amigo Roberto Nasser — essa dor vai demorar muito a desvanecer — logo veio-me à mente o seu melhor conto publicado aqui no AE, em minha opinião. O melhor exemplo da sua escrita mágica que nos conduz ao enlevo. Foi no dia 30/09/2015. Lembro-me, como se fosse hoje, o que ria sozinho enquanto editava a matéria, e tenho certeza de que o leitor ou leitora terá experiência igual ao lê-la.
Com saudade.
Bob Sharp
CHOCOLATE, ALFACE…
Por Roberto Nasser
Escolhi divas do jazz, remake do Sinatra e a lady Alberta Hunter como fundo musical. Muito gelo no whisky, pistache e rabanetes.
Lua pintando o mar na sexta-feira, mas meu programa era procurar canhoto de cheque na velha cômoda, exigências de comprovação de pagamento antigo. Exumei uma porcariada, incluindo uma caixinha: Lucas Original Electric Parts, peças para resolver defeitos bobos, imobilizadores de carro britânico antigo, como meu MGC conversível: rotor, condensador, platinados e velas. Separei.
Fim da primeira gaveta, nada do demandado canhoto, mas surge um envelopinho. Letra feminina, impositiva, anotou: Godofredo de Bulhões. Sou eu. Dentro, pequeno cartão com duas palavras, afirmativas: “Quero você”.
Ótimas lembranças começando com uma entrevista sobre vinhos e culinária. A dona da letra era a agitada fotógrafa que, gentil, apanhou-me em insólito Mustang conversível, prata, motor seis-cilindros e três marchas. Nada mais inadequado na violência social do Rio de Janeiro.
A moça conduzia o automóvel (como se convive com especificações tão ruins: motor seis-cilindros e câmbio de três velocidades?) e no caminho explicou a reportagem. “Como uma pessoa comum harmonizaria comida e vinho”. Queria sugestões da minha feição Cinderela, organizado apreciador de vinhos, daí irmos à Pedra de Guaratiba para ter intimidade com pratos simples à base de frutos do mar.
Para os fins, escolha adequada: a carta de vinhos tangenciava a pobreza. Restaurante minimamente arrumado, mas de cuidada limpeza, sem cheiro de peixe. Eu forneceria as sugestões aos leitores, pelo visto sem muita noção. Paguei pelo pré-julgamento. A dona, servindo, recomendou a cavaquinha espiritossantense com arroz com banana da terra e mariscos — cavaquinha é para quem entende de mar e cozinha — só existe na curta plataforma continental do pequeno estado. Entrada: ostras frescas. Santas mãos.
De vinhos, a Carta não servia sequer para bilhete. Mas havia Anna de Codorniù, cava espanhola indevidamente listada como champagne. Salvou a tarde divertida e o início de intimidades.
Ela deixou-me em casa ao final da tarde. Beijinhos, se cuida, apareça… — o conhecido estelionato social.
Meses após, em minha vida de Gata Borralheira, palestrante e consultor em informática, falando num fórum para executivos engravatados, móvel figura chamou atenção, clicando o evento. Era ela: cabelos como saídos do banho, jeans, blusa quase-grife. Um colete-de-fotógrafo mascarava a boa distribuição de massas e volumes. Quadris com quase uma polegada a mais, ancas ultrapassando suavemente o limite da calcinha. Polivalente.
Fim da minha fala, pessoas se aproximam, e a moça me entrega o envelope. Sorri e desaparece.
Com a declaração “quero você”, tão objetiva e clara, senti novamente a difícil verdade: homens não comem, são comidos. Romance, transa, não partem da vontade do macho, mas da fêmea, sinalizando com seus hormônios e dando impressão de seduzida.
Preâmbulos, afinidades de pele, cheiros e calores… Tudo rolou fácil e bom.
A moça era interessada, participante, de sensualidade assumida. Recém passara os 30 anos, a grande barreira feminina para tomar, dar e gozar sem pudor. Nua, nela tudo se expunha acintosamente, no limite do desafio à gravidade.
Foi uma complementação sentimental com intensidade física, tesão. Divertido. Durou, envolveu, gratificou. Porém, rompeu-se: ela voltava ao interior para assistir pais idosos. Vimo-nos algumas vezes, mas as visitas de final de semana foram se espaçando e se acabaram. De vez em quando pensava nela.
A retomada
O pequeno cartão me provocou, e daí a ações rápidas. Dá tempo? 21h. Noites de sexta-feira são flexíveis. O coração acelerou — há certamente um circuito ligando o coração aos países baixos. Liguei. Estará? Casou? Me esqueceu?
Atendem:
— Ana?
— Não, é a empregada. Da. Ana saiu.
— E o marido dela ? perguntei para definir.
— Ela não é casada, veio a resposta que eu queria ouvir.
— Ela viajou ou volta hoje?
— Volta, deve estar chegando para o jantar.
Deu.
Adiei a atividade de busca e dediquei-me ao novo desafio. São 4 horas de viagem, melhor sair na madrugada, chegar ao alvorecer. Longo banho e curta dormida. Acordei para a operação reconquista. Peguei a sacola, presente dela: roupa leve, uma garrafa de Prosecco para comemorar. E também uma revista PC Tech, com texto meu defendendo a inclusão digital dos idosos, com chamada e retratinho na capa.
Desci à garagem, passei pelo confiável plastimóvel e fui a meu MG. Com boné Kangol – mandatório à equitação clássica e conversíveis antigos — coloquei a caixinha Lucas Spare Parts no porta-luvas. No ritual da partida, virei a ignição e ouvi os tec-tec-tec da bomba elétrica de combustível enchendo os carburadores SU. Ao parar, dando sinal das cubas dos carburadores estarem cheias e vedadas, acionei o arranque, sem acelerar, para o óleo circular. O MG ronronou em inglês. God save the Queen.
Firmei a sacola entre o tanque extra de combustível — trato o MGC com gasolina de avião — e a caixa-de-socorro-para-antigomobilista-solitário: as ferramentas originais, lanterna, luvas, funil, flanela, correias, mangueiras, parafusos e porcas em Polegada Imperial, insólita medida da Velha Ilha.
Início da estrada, baixei a capota. Com os vidros suspensos, liguei o aquecedor. São 2h00 da madrugada de sábado.
Acendo os faróis-de-milha Lucas, 11″ de diâmetro com tensor anti-vibrações. Há anos trazidos da Inglaterra, eram o máximo. Hoje são mero aditivo, distantes da mais modesta tecnologia em iluminação, porém adequados ao carrinho inglês.
Raras ultrapassagens com o MGC, série limitada de 1969. Elegante, o roadster traz motor de seis cilindros, sete mancais, 3 litros e 145 cavalos. O pouco peso permite acelerações fortes até os 200 km/h. Creio o único no País, ex de diplomata inglês, com o volante à direita.
O motor gira tranquilo, os equipamentos elétricos Lucas funcionam bem — algo raro. Dizem os críticos, ingleses gostam de cerveja quente porque usam geladeiras Lucas…
- Longa reta, ótima para seguir velhos manuais — leve uma das marchas à faixa vermelha, para expurgar depósitos, lacas, vernizes… porcariada acumulada nas entranhas do motor. Da quinta velocidade trago à terceira, e levo, como a quarta, a 5.500 rpm. Em quinta, o velho MG satisfeito marca 190 km/h. Solto o acelerador até baixar e cruzar a 130 km/h. O carro parece sorrir. Minha alma também.
A vida
A manhã e eu chegamos à cidade às 6h. No Mercado Municipal pego um alentado buquê de flores do campo, colorido, vistoso, oloroso.
Em frente à casa conhecida — sob a grande amendoeira, antes generosa sombra para meu carro — há um picape mal parado, gasto, arranhado, sujo de barro e bosta de boi.
Junto ao buquê, está a PC Tech. Na lateral da casa, o Mustang, bem pior. Toco a campainha e imagino o despertar dela, a dúvida de quem seria, a surpresa, as flores… o agradável caminho de volta.
Ruídos na fechadura e, — não era ela. Surge um sujeito grande, peludo, de short sob espessa meia-lua de barriga, barba de cinco dias, perguntando com gentileza de primata: — Que qui é, pô?
Nada mais me ocorreu: — O seu Zé Florista mandou p’ra Dona Ana.” O orangotango esganou o buquê pelo laço e as flores quase choraram.
Voltei ao carro, andar tático-político: nem tão rápido parecendo fuga, nem tão devagar sugerindo provocação. Afinal, um entregador de flores jamais usaria um boné Kangol, nem um brilhante MG, de rodas raiadas cromadas contrastando com a pintura Tartan Red.
Saí. Pelo espelho, percebi o ogro peludo me olhando, ridículo com as flores, com a certeza de que entregador não anda em carro histórico.
Sábado, pouco mais de 6h30, testosterona nas orelhas, a 200 km de casa, frustrado, tinha uma dúvida acadêmica: e se ela me descobrisse na revista e ensaiasse um retorno? Como seria isto pós-orangotango?
Apontei o MG para o Norte, dei o gás exigido pela testosterona, botei os cavalos PSI* a suar, e fui tomar café com minha idosa e surpresa tia.
Na estrada, aflorou detestável frase de mal disfarçado machismo:
— Qual mulher não comeu uma barra de chocolate por ansiedade; um alface por vaidade; e um cafajeste por saudade?
*Neste AUTOentusiastas de amplo leque de leitores e leitoras, PSI deve ser esclarecido. Não é abreviatura de Psicologia; nem a de Para Sua Informação; ou o PSI for Windows, sistema de troca de mensagens; nem como poderia imaginar o interesse técnico da maioria dos leitores, a medida de pressão de libras por polegada quadrada. Porém os com vezo por equinos saberão, trata-se de Puro Sangue Inglês, raça apurada por séculos, de animais altos, velozes, elegantes. No caso, tracionando o MGC.
RN