Qual a relação entre uma mineradora e uma fábrica de automóveis?
Aparentemente, nenhuma: uma precisa de barragens para funcionar, outra produz automóveis para justificar existência, porém ambas recorrem ao procedimento da autocertificação. Ou seja, apresentam ao governo o atestado de empresas especializadas ou delas próprias de que cumprem as exigências da legislação.
No recente desastre da barragem de Brumadinho, ficou evidenciado que:
1 – a legislação atinente à segurança das barragens e níveis de risco é falha;
2 – os certificados que atestam sua estabilidade por empresas especializadas não são confiáveis;
3 –as empresas especializadas que certificam as barragens podem atender a outras demandas da mineradora, criando vínculos comerciais entre elas.
Engenheiros da empresa alemã TÜV SÜD, encarregada de certificar a segurança da barragem de Brumadinho, afirmaram que foram pressionados pelos funcionários da Vale, pouco antes do rompimento: “Vão ou não vão assinar estes certificados?”
As fábricas de automóveis aqui instaladas também devem satisfação ao governo brasileiro quanto ao cumprimento da legislação especifica como exigências de segurança, consumo, emissões, e outras. Como o governo não tem condições (mas poderia…) de verificá-las por seus próprios órgãos, sujeita-se então a aceitar a comprovação através de certificados emitidos pelas próprias fábricas ou por empresas especializadas homologadas. É a autocertificação, que dá margem a vários problemas potenciais.
Para começo de conversa, nossa legislação é falha, pois está sempre defasada em relação ao Primeiro Mundo. Aliás, nem precisa cruzar o Equador: leis argentinas de segurança veicular são mais atualizadas e rigorosas do que as nossas.
Além disso, nossas exigências de segurança veicular não seguem um único padrão: por incrível que pareça, o Brasil não formulou suas próprias regras e concede aos fabricantes duas opções.
Como assim?
No Brasil, a fábrica pode decidir entre seguir antiga legislação americana ou europeia. Fácil de explicar: à época em que a lei foi elaborada só tínhamos empresas da Europa ou dos EUA. Então, nossa legislação não é própria, ela diz apenas que cada modelo deve seguir as exigências de seu país de origem.
A consequência desta falta de padronização é que nossos carros costumam apresentar maus resultados, por exemplo, ao serem submetidos aos crash tests do Latin NCAP. Essa entidade uruguaia independente realiza testes de impacto com nossos carros e nem todos são aprovados tomando por base critérios dos países centrais. Um exemplo típico foi o da proteção contra impactos laterais: alguns de nossos compactos (Peugeot 208, Ford Ka, Chevrolet Ônix) foram mal nos testes do Latin NCAP. Depois de divulgados os resultados, seus fabricantes tomaram medidas para reforçar sua estrutura lateral de modo enquadrá-la no padrão europeu.
É isso mesmo: quem determina os padrões de proteção aos ocupantes de nossos carros é uma entidade uruguaia. Que faz os testes de acordo com suas próprias regras e não as da legislação brasileira…
Outro problema é que a lei, quando existe, não é cumprida: o Código de Trânsito Brasileiro, por exemplo, foi aprovado e publicado há 21 anos, mas está longe de ser implantado em sua plenitude.
A segurança de uma barragem é de exclusiva responsabilidade da mineradora. A do automóvel, por outro lado, não depende só da fábrica: o veículo pode contar com sofisticados dispositivos de segurança, mas 90% dos acidentes, segundo as estatísticas, são provocados pelos motoristas. Além disso, nenhum item de segurança garante incolumidade dos ocupantes em caso de acidente, especialmente naqueles mais severos que tanto se vê.
Já o rompimento de uma barragem sempre significará desastres de proporções descomunais que não se restringem às pessoas, mas ao meio ambiente, fato público e notório
A tragédia de Brumadinho comoveu o Brasil e o mundo. Mas, a cada dia 100 pessoas perdem a vida em acidentes de trânsito no país, número que parece não impressionar ninguém e tampouco gerar protestos.
Atribuir somente à autocertificação a responsabilidade de acidentes em barragens e automóveis é tapar o sol com a peneira. Entretanto, este sistema faz lembrar a história de se entregar o galinheiro aos cuidados da raposa…
BF