É possível que, de todos os carros feitos no Brasil, um dos mais importantes historicamente falando seja o FEI X-3, criação de Rigoberto Soler enquanto professor do curso de engenharia mecânica automobilística da FEI, a Faculdade de Engenharia Industrial, localizada em São Bernardo do Campo.
Graças ao X-3, a FEI conseguiu visibilidade em escala nacional, quando o então presidente do Brasil, General Emílio Garrastazu Médici, ficou maravilhado com o que um grupo de estudantes orientados por um professor universitário conseguiu construir. O incrível carro GT, cheio de recursos avançados para sua época, foi um dos destaques do Salão do Automóvel de 1970, o primeiro realizado no Pavilhão de Exposições do Parque do Anhembi.
O tanto que o presidente Médici gostou do projeto foi suficiente para que ele determinasse investimento na FEI e em outros projetos, como o TALAV, que foi um estudo de um trem flutuante de alta velocidade, de interesse do governo federal. Além dos novos projetos que surgiram, a FEI ganhou reconhecimento e seus recém-formados engenheiros eram respeitados na indústria toda.
A história do carro, já contei aqui no AE. Há também no AE uma matéria sobre como é dirigir o X-3. Mas sempre há mais histórias por trás.
Após a restauração do carro no começo dos anos 2000, a FEI o utilizava em diversos eventos de publicidade, pois era inegável o quanto o carro chamava a atenção e trazia retorno de mídia para a faculdade, um marco incrível para um carro de quase 40 anos. Até hoje o X-3 pode se orgulhar de ter sido talvez o único carro da história nacional a participar três vezes do Salão do Automóvel.
O fato é que, a cada evento ou aparição que o carro fazia, uma verdadeira aventura se desenrolava por trás da cortina para ter o carro em cena. Mais ou menos como o nosso amigo MAO fala dos passeis de carros antigos, raramente consegue-se planejar um evento e conseguir ir e voltar sem nenhum problema ou sem nada dar errado. E nestas desventuras é que as melhores histórias nascem.
O FEI X-3 NO GUARUJÁ
Uma das primeiras grandes aparições do Lavínia, apelido oficial do carro em homenagem à esposa do prefeito de São Bernardo que doou o terreno onde a FEI foi fundada, foi no programa “Auto Esporte” da TV Globo. Quando o convite para a matéria chegou a nós, então alunos responsáveis pelos cuidados do carro, todos estavam muito animados para ver o carro na tevê
Para as gravações, o lugar escolhido pelo Diego, o repórter do programa, foi um trecho da Rodovia Anchieta, que liga São Paulo ao litoral, e que estava fechada para obras. O plano era mandar o carro de guincho até a Anchieta, descarregar, fazer as filmagens e voltar para casa. Para dirigir o X-3 nas gravações, nosso amigo Alaor Espósito foi convidado. Ele era piloto de testes da Lobini na época.
Carro preparado, limpinho, em cima da plataforma e a caminho do ponto de encontro. Tudo certo. Chegando no local, descarregamos o carro, o Diego e o Alaor fizeram algumas passagens pelo trecho da serra, mas o repórter queria algo mais ainda. Como o carro tem portas tipo asa de gaivota, ele queria filmar o carro em um lugar que conseguisse pegar na cena algumas gaivotas. Decidimos descer até o Guarujá.
Na hora de colocar o carro em cima da plataforma, logo depois de dar partida no motor, ao pisar na embreagem, um sonoro plac! Lá se foi o garfo da embreagem, partido ao meio. Não iríamos perder a viagem, então mesmo sem o terceiro pedal, colocamos o carro no guincho e fomos para o litoral. Chegando lá daríamos um jeito.
Como o carro tem um enorme V-8 318 de pol³ (5,2 litros), torque não era problema. Então a ideia foi engatar a segunda marcha no carro e dar a partida, assim já saía andando e não precisava trocar de marcha. E foi assim que fizemos. O problema só seria parar, mas tudo bem.
Com o carro fora do guincho, numa travessa da avenida beira-mar na Praia das Pitangueiras, o Alaor conseguiu dar partida engatado e sair andando. Para evitar que ele tivesse que parar repentinamente, cada um de nós, alunos, ficamos parados nas esquinas da quadra para segurar o tráfego e o X-3 passar livremente. Foi um sucesso. Depois de algumas passagens e alguns motoristas revoltados, a equipe de filmagem conseguiu boas tomadas do carro.
Faltava só a cena do carro com a bendita gaivota, que só seria possível se o carro estivesse perto da água. Não tivemos dúvida, carro na areia e as gaivotas sobrevoando. Conseguiram filmar belas imagens. O único problema é ser proibido entrar com o carro na praia, e não demorou para a polícia aparecer. Depois de alguns minutos, o Ricardo Bock, nosso professor-orientador, já tinha resolvido a situação.
Ao fim do dia, todas as cenas feitas, carro no guincho e de volta para a casa. Só tivemos que trocar um garfo de embreagem e tirar alguns quilogramas de areia das caixas de roda. E ninguém foi preso! Sucesso total.
O X-3 NO SHOPPING
Alguns eventos estáticos também faziam parte do cotidiano do X-3, que era usado como chamariz para atrair a atenção de possíveis novos estudantes para a FEI. Isso junto com outros projetos como o FEI Mini Baja e o FEI Milleage, que são carros off-road e para recordes de consumo de combustível, respectivamente, em competições universitárias.
Um destes eventos que o X-3 participou foi um pequeno estande montado pela FEI no átrio central do Shopping Metrópole, em São Bernardo do Campo. Como o lugar é muito movimentado, estandes e eventos só podem ser montados de noite, depois do fechamento do shopping. Até ai tudo bem, lá fomos nós depois das 23h00 para o shopping com o carro na plataforma.
Seria uma tarefa simples, tirar o carro do guincho e colocar no átrio, que era relativamente perto de uma das entradas do shopping. O único problema é que nesta entrada, a porta mais larga estava quebrada e o carro não passava pela outra. A única porta por onde o carro passava era na outra extremidade do shopping. E lá fomos nós.
Desta vez estávamos apenas em dois, eu e o Gabriel, o que foi de grande ajuda, pois o único jeito de chegar com o carro no local indicado era acessando pelo outro lado e passar por dentro do shopping, pelos corredores. Os corredores não só eram estreitos, como estavam cheios de quiosques de vendas pelo caminho, e tínhamos de desviar de todos. Depois fazer um reconhecimento a pé e bolarmos a melhor rota, tiramos o Lavínia do guincho, demos a volta na quadra e o Metrópole foi invadido pelo borbulhar grave e respeitoso do V-8.
Não havia mais que vinte pessoas no shopping todo, então era um silêncio absoluto, e o X-3 podia ser ouvido praticamente no andar todo. Os quatro escapes laterais, dois de cada lado, faziam vibrar as portas de vidro das lojas por onde passava. Pensei que algum alarme seria disparado e logo a polícia apareceria.
Para ajudar, o piso era liso e o carro escorregava bastante. Pelo menos o volante ficava leve, que normalmente em baixa velocidade era bem pesado, não tinha assistência hidráulica alguma. O maior risco eram as vitrines de vidro das lojas, o bico do carro passava sempre muito perto delas. Sem contar que o bico também era uma raridade por ser moldado à mão em alumínio; Imaginem o estrago se errasse uma manobra.
Com o Gabriel ajudando pelo lado de fora, gerenciando os espaços por onde o carro teria que passar, conseguimos cruzar todo o shopping sem nenhum incidente. A única coisa é que o pessoal da limpeza deve ter ficado um pouco chateado com algumas marcas no chão que acabaram ficando nas curvas mais fechadas e tivemos que “manobrar no acelerador”.
Carro no lugar, missão cumprida. Uma semana depois fomos buscar o carro, mas dessa vez já contamos com a porta principal em funcionamento. De fato, estava funcionando, mas estavam fazendo uma manutenção na calçada do lado de fora, e o carro não passaria. De novo, um passeio drive-through pelo shopping, sem nenhum incidente.
O X-3 NO CAMPO DE PROVAS DA GOODYEAR
Por ser um carro 100% nacional feito em 1970, o X-3 recebeu convite para participar de diversos eventos de carros antigos, até mesmo do famoso Encontro de Águas de Lindoia. Um dos eventos que fomos convidados a participar foi um encontro que o Puma Clube organizou em 2005 no campo de provas da Goodyear, na cidade paulista de Americana. Era um evento dinâmico, em um circuito montado para os participantes andarem com seus carros.
Com o carro preparado para o dia do evento, revisado alguns dias antes, a única coisa a fazer era esperar o guincho chegar cedinho na FEI para carregar o carro e seguir rumo à Goodyear. No horário marcado o caminhão chegou, ligamos o carro e rapidamente estava amarrado na plataforma e seguindo viagem. Fomos seguindo o caminhão.
O ritmo na estrada não era dos melhores, e o evento tinha horário certo para começar. No convite haviam informado que todos os carros tinham que chegar cedo para alinhar e começar no tour pela pista. Para não perder o horário de chegada, fomos na frente para marcar nossa presença, enquanto o caminhão chegava e descarregava o carro.
Fomos muito bem recebidos pelo pessoal da Goodyear e recebemos nosso kit de participante, que continha adesivos para colocar nos carros, em função dos patrocinadores do evento. Fomos instruídos que às 10h00 todos os carros tinham que estar prontos e alinhados na entrada da pista para conseguirem cumprir o cronograma. O relógio marcava 9h50 e nada do caminhão chegar, e o motorista não atendia o telefone. Não poderia estar longe, pois nos separamos na estrada a menos de 10 quilômetros da Goodyear.
A chuva estava dando o ar da graça e com a pista já ficando molhada, mais um motivo para que os organizadores seguissem à risca o horário, pois poderia ser que a chuva voltasse forte e acabaria de vez com o evento.
Como nossos eventos com este carro são sempre com emoção, este não seria diferente. O caminhão chegou exatamente as 9h59 na estrada do campo de provas. O motorista havia errado uma saída da estrada e teve que fazer um retorno a mais.
Para não perder tempo nenhum, pois os primeiros carros já estavam entrando na pista, subi no caminhão e já fui ligando o carro, enquanto o Fernando, um amigo da nossa equipe, foi colando alguns adesivos no carro antes mesmo de descer do guincho.
— Não vai dar tempo de colocar tudo, metade da fila já entrou na pista!
— Sobe ai que a gente dá um jeito! — falei para ele, já com o carro em movimento.
O Fernando não teve dúvida: de dentro do carro, esticou o braço para fora com a porta aberta e saiu colando adesivo do jeito que dava onde seu braço alcançava. Só faltava um adesivo, o número de inscrição para a porta do lado direito. E justo esse, na hora que ele tirou o adesivo do papel, bateu um vento e o adesivo dobrou ao meio, colando ele nele mesmo. Sem muita opção, ele conseguiu abrir o adesivo na marra, que acabou rasgando, mas foi assim mesmo parar na porta, com o carro a uns 60 km/h.
Por um suspiro conseguimos alinhar no final da fila e entrar na pista. Como estava tudo molhado, o evento que seria tipo um time attack cronometrado, foi alterado para um passeio sem velocidades excessivas, por conta da segurança de todos os integrantes, uma vez que lá haviam carros modernos de mais de 400 cv e carros antigos de pouco mais de 60 cv.
Falando em segurança, o pessoal do evento havia dito que o uso do cinto de segurança seria obrigatório. E o X-3 não tinha cinto nenhum. Com um pouco de criatividade, um cinto abdominal genérico e dois tie wraps, problema resolvido!
Depois de algumas horas de evento e alguma voltas no traçado, nenhum problema registrado. O carro foi bem o dia todo, sem nenhum susto ou falha. Como não foi feita a cronometragem dos carros e havia troféu para os melhores, o Paulo Loco, um dos organizadores, nos presenteou com um belo troféu, de acordo com ele, “o melhor protótipo nacional verde de 1970” do evento.
Evento com carro antigo é assim, uma emoção atrás da outra.
MB