E lá fomos nós, dois jornalistas brasileiros irresponsáveis participar, em 1999, do mais famoso rali em estrada do mundo, a Mille Miglia. Quem convidou o Nasser e a mim foi o Classic Center da Mercedes. Iríamos dirigir um sedã 180 D (foto de abertura), exatamente o mesmo carro campeão da categoria Diesel em 1955 (13 mil km no hodômetro), numa das últimas Mille Miglia, ainda como prova de velocidade. Ela foi abolida em 1957 devido a dois acidentes fatais e voltou em 1977 como prova de regularidade, só admitindo modelos idênticos aos que competiram entre 1927 e 1957. Nas mesmas estradas e circuito da prova original.
A prova larga de Brescia, no norte da Itália, vai a Roma pelo lado do Mar Adriático e volta ao ponto de partida pelo outro lado, o do Mar Tirreno, num total de 1.600 quilômetros— daí o nome Mil Milhas em italiano. A Mercedes sempre inscrevia diversos carros de sua coleção e apoiava outros da marca pilotados por gente famosa. E convidava cada ano uma dupla de jornalistas ligados ao antigomobilismo.
Mas a “cereja do bolo” era o Mercedes 300 SLR, campeão da prova em 1955 (Fangio chegou em segundo com um SLR idêntico), com Stirling Moss ao volante e o jornalista inglês Denis Jenkinson como copiloto e navegador. O carro era a maior atração no rali e sua esposa ocupava o banco do passageiro. Outros ilustres da equipe eram o americano Roger Penske, Pablito Picasso (com o Asa de Gaivota do avô…), o alemão Jochen Mass (ex-piloto de F-1), Herr Sixt (da locadora internacional) e outros do naipe.
O Mercedes SLR de Moss ficou famoso pelo número 722, que correspondia ao momento de sua largada (7h22), regra da Mille Miglia. Faz lembrar a versão roadster da 300 SL (Asa de Gaivota) mas sob o capô estava um 8-cilindros em linha de 3 litros (o motor 2,5-litros W 196 de F-1 aumentado) com 302 cv.
Lembrei-me de uma visita de um grupo de jornalistas brasileiros ao Classic Center da Mercedes em Fellbach (bairro de Stuttgart). Quando o diretor ligou o SLR, um jornalista do grupo (Mário Pati) chorou de emoção. Pati era ligadíssimo em competições e — coincidência — foi o diretor de prova da minha primeira corrida, num DKW-Vemag em Interlagos em 1966. Mario, hoje com 93 anos, conhecia esse trabalho como ninguém: foi diretor de prova de dez Grandes Prêmios do Brasil de F-1.
A prova, apesar das médias baixas, era emocionante. O roteiro cortava dezenas de cidades italianas, algumas literalmente pelo centro histórico, aberto apenas para os competidores, como Siena. Milhares de fanáticos postados nas estradas admiravam, gritavam e acenavam para os carros. Em muitas cidades, motos dos carabinieri, a polícia militar italiana, abriam caminho para nós.
Nossa largada foi logo depois do carro de Moss e rodávamos várias vezes próximos do “722”. Em algumas ruas de acesso ao centro das cidades, o trânsito congestionava e foi aí que o Nasser e eu, bem atrás do inglês, percebemos uma cena inusitada: a embreagem do SLR, um carro de competição, era do tipo “tudo ou nada” e não fora projetada para enfrentar trânsito lento! Moss ficava aflito com o castigo para o disco de embreagem ao tentar manter o carro na fila rodando superdevagar, às vezes a 5 km/h patinando a embreagem.. Pois seu amor pelo 300 SLR era tão grande que ele (e a esposa) saíam do carro e o empurravam para evitar “queimar” o disco! Uma cena inacreditável.
Em compensação, meses depois, nos EUA, lembrei-me de uma observação que Enzo Ferrari fez a respeito do Stirling Moss: se tivesse um pouco mais de razão e menos emoção, ele teria com certeza conquistado vários títulos (nunca foi campeão da F-1…).
Eu estava na pista de Laguna Seca (Califórnia) com meu GT Malzoni numa prova de antigos e Moss pilotando um carro inglês (acho que um Triumph TR6 2,5-L de seis cilindros em linha)). Apesar da mesma nacionalidade, ele não tinha a metade do apego que tinha pelo Mercedes. Nasser (lá, também…) me chamou atenção para Moss pisando fundo e sem dó daquela raridade britânica dos anos 60. Pisou tanto que, no final do retão (uma descida forte antes de uma curva apertadíssima para a esquerda) o carro da frente freou cedo demais e ele deu-lhe uma exemplar chapuletada na traseira… Fim de corrida para ambos…
Vídeo
BF.
* Stirling Moss faleceu neste domingo de Páscoa, dia 12, em Londres. Tinha 90 anos.