Em julho de 2020 eu recebi um e-mail de Hernán Saavedra Herrera enviando o causo que é apresentado abaixo, e foi assim que ele apresentou a sua história:
“Há algum tempo venho ensaiando enviar para o AE a história de meu primeiro carro. Pelo fato de ser a história de um Fusca, resolvi enviá-la a você. O texto ficou um pouco longo, as lembranças foram surgindo, os detalhes ficando mais precisos, e ocupando mais e mais palavras.”
Meu Fuscão 1971 azul Pavão
Por: Hernán Saavedra Herrera
No início de 1972, eu era um engenheiro recém-formado, louco para começar a trabalhar para ganhar meu próprio dinheirinho e —claro! — comprar meu primeiro carro.
Aprendi a dirigir em 1967 ou 1968 (já não consigo lembrar direito, afinal, tempus fugit!) frequentando uma autoescola no interior de São Paulo, onde cursava engenharia. Paguei as aulas com dinheiro economizado da mesada que meu pai me enviava, e que não era substancial, o que deve ter sido um exercício de economia bastante significativo para mim.
As aulas práticas eram realizadas em Fusquinhas da década de 60, carrinhos que conhecia bem, pois em 1963 meu pai havia comprado um 0-km que eu fazia questão de manter sempre limpinho (para ir e voltar ao trabalho na Refinaria Presidente Bernardes em Cubatão, meu pai tinha um Jeep Willys da Petrobrás com carroceria toda fechada em aço sem forro, verdadeira sucursal do inferno nos dias de verão de Santos, onde morávamos).
Lembro do macete da autoescola para fazer baliza: havia um pequeno adesivo colado na janela lateral traseira direita. Quando se iniciava a baliza, girando o volante todo para a direita dando marcha a ré, e o adesivo ficava alinhado com a baliza traseira, era hora de girar o volante todo para o lado esquerdo e o carro entrava direitinho dentro da vaga.
Carteira de habilitação na mão, era hora de convencer meu pai a me emprestar o Simca Chambord Tufão verde Musgo que ele tinha quase sem uso na garagem, substituto do Fusquinha ’63 (ele continuava a usar o Jeep).
Mas meu pai não confiava que o “pinto calçudo” da casa fosse capaz de usar seu amado carro sem causar sérios danos ao possante, e sempre negava. Um belo dia, ou melhor, noite, ia haver um baile no Ilha Porchat Clube, em São Vicente, e eu e um par de amigos estávamos loucos para convidar umas meninas para ir, mas era necessário um carro, e meus amigos não tinham nenhum disponível, pois os pais deles eram piores que o meu. A solução era o Simca, então lá fui eu falar com o velho. Para minha sorte, meu tio, o irmão mais novo do meu pai, estava de visita, e ao assistir à recusa deste, deu-lhe uma tremenda bronca e não restou alternativa ao meu querido velho a não ser dar um suspiro e entregar-me as chaves do carro. Coloquei seis pessoas dentro do Tufão, subi em cima de meio fio, ralei as calotas, cometi todas as barbeiragens possíveis, mas fui e voltei do baile! A partir daí iniciei minha vida sobre quatro rodas.
Já formado, consegui um emprego numa pequena siderúrgica em São Paulo, como engenheiro de vendas. O escritório central ficava na Barra Funda, e a unidade fabril em São José dos Campos. Durante a entrevista, o gerente da empresa me informou que a condição sine qua non era que eu tivesse um carro próprio, ao que eu respondi que não se preocupasse, porque no primeiro dia de trabalho (dali a duas semanas) eu me faria presente com meu próprio carro. Audácias da juventude, pois eu não tinha nem ideia como faria para comprar um carro nesse curto intervalo de tempo. Dinheiro, claro, eu não tinha!
Voltando a Santos, respirei fundo e fui falar com o velho, e expliquei a situação. Ele me colocou dentro do Simca e fomos visitar algumas lojas de carros usados (naquela época não existiam os seminovos). Numa loja do canal 3, encontramos um Fuscão 1971, com seis meses de uso, baixíssima quilometragem e praticamente perfeito. O único senão era um minúsculo amassado na carroceria, na lateral esquerda, perto do para-lama, nada que impedisse a compra. Meu pai pagou a entrada, e o restante foi financiado em 24 meses em meu nome, com meu pai sendo o avalista. Coisas realmente de pai para filho! Devo dizer que paguei todas as prestações direitinho e fui, pouco a pouco, devolvendo o dinheiro da entrada ao velho.
Dias depois, papelada feita, eu estava de posse de um Fuscão 71 azul Pavão, louco de felicidade, e nos primeiros dias de fevereiro de 1972 subia a Serra do Mar pela Via Anchieta em direção à Barra Funda para me apresentar no meu primeiro emprego.
Devo confessar que odiei esse trabalho! Eu tinha que percorrer São Paulo de uma ponta a outra, cidade que eu conhecia pouco, de terno e gravata, em pleno verão paulistano, levando amostras de fio-máquina, de vergalhões de construção civil, e de peças fundidas, para compradores de indústrias que na maioria das vezes eram muito pouco simpáticos com os vendedores. Aprendi a respeitar a profissão de vendedor, e sempre procurei atender esses profissionais da melhor forma possível, à exceção — que Deus me perdoe — do telemarketing!
Para meus deslocamentos, colocava um Guia Quatro Rodas aberto no banco do passageiro, com a rota previamente escolhida e marcada com papeizinhos nas diversas páginas do Guia. Decorava como me deslocar alguns quarteirões, parava, decorava outro trecho e assim ia. Nunca deixei de atender nenhum compromisso, ainda que de vez em quando me deparasse com a obra do Metrô (Santana-Jabaquara) que bagunçava todo meu itinerário! Esse pessoal de hoje, com GPS, não tem a menor ideia do que era se deslocar por São Paulo nessa época, sem conhecê-la direito!
Pouco mais de dois meses passados, recebo um telegrama (sou do tempo dos telegramas!) da Cosipa, me convocando para admissão na empresa. Eu havia aplicado em algumas empresas e aguardava ansioso o chamado de alguma, já que realmente não estava contente no meu emprego. Na Cosipa eu iria trabalhar na expansão (construção das novas unidades) da siderúrgica, o que estava mais em linha com minha profissão (sou engenheiro civil). Assim, fui falar com o meu chefe direto e com o gerente da empresa (aquele que havia me entrevistado), que não só entenderam como me deram os parabéns pelo novo emprego. Tenho muito boas lembranças do pessoal da Fi-El Fios Elétricos, se por acaso alguém dessa época estiver lendo estas mal traçadas, meu grande abraço.
Serra do Mar abaixo, apresento-me à Cosipa para estágio. Para minha surpresa, o pessoal me preferiu para a área de projetos das novas unidades, que ficava em … São Paulo!
Durante o estágio em Piaçaguera, eu e o Fuscão aprendemos o que era andar na Baixada Santista! Pegávamos a Via Anchieta, depois a Piaçaguera-Guarujá, dividindo as estradas com carros, caminhões, e carretas de toda ordem. A Piaçaguera-Guarujá era uma estrada precária, embora asfaltada. O movimento de caminhões e carretas carregando de tudo, principalmente adubo, era imenso. E no trecho próximo à Cosipa ainda encontrávamos os caminhões que transportavam a escória do alto-forno para a fábrica de cimento. Todos esses materiais são altamente agressivos para o asfalto, pneus, e para as carrocerias dos veículos.
Assim, foi com certo alívio de poupar meu carrinho que subi de novo a Serra para me apresentar à SEP – Superintendência de Engenharia de Projetos, na Rua Dom José de Barros, em São Paulo.
Tive uma vida social intensa em São Paulo, com o Fuscão andando de um lado para o outro comigo e com a paquera que consegui lá. Ela estudava na USP, morava no Jabaquara, tinha uma avó em Santana, e eu morava no Bexiga, num apartamento-república com outros três engenheiros, um da Ford-Philco, outro da Cosipa e um da Telesp. O Fuscão dormia numa garagem alugada num terreno próximo, abrigado em uma coberturinha meio improvisada. Por isso (e por causa da paquera) eu procurava sempre lavá-lo e mantê-lo encerado o mais possível.
Determinada noite, fui visitar meu tio (aquele que fez meu pai me emprestar o Simca), que morava na Brigadeiro esquina com Paulista. Tratando de encontrar vaga (sempre uma dificuldade), consegui uma na Al. Joaquim Eugenio de Lima, por volta das 20 horas. Estava manobrando para entrar na vaga, ao lado de um prédio em construção, quando sinto a minha porta ser aberta. Pensando que era o guardador apressadinho, viro a cabeça e me vejo de frente com o cano de um revólver 38!
Levaram meu relógio, minha carteira com os documentos, inclusive do carro, e o Fuscão! Eram dois homens, um com o revólver, que se sentou do lado do passageiro e outro, aparentemente desarmado, que foi guiando o Fuscão.
Corri até à esquina da Paulista com a Brigadeiro. Sabia que havia sempre um guarda numa casinhola nessa esquina comandando manualmente o sinal, e efetivamente ele estava lá. Subi os poucos degraus para falar com ele, contando o sucedido, quando de repente vejo o Fuscão passar do meu lado, atravessando a Paulista e descendo a Brigadeiro no sentido do Centro.
“São eles”, gritei e saí correndo, atravessando a Paulista como um doido, atrás do carro. Consegui alcançá-los na esquina de baixo, no sinal fechado. Me aproximei do carro por trás e tratei de abrir a tampa do motor. Minha intenção era puxar fora o cabo do distribuidor, mas a tampa estava fechada com chave. Então fiz o que nunca se deve fazer: abri a porta do motorista, dei um berro com o cara, que para minha sorte se jogou por cima do outro ladrão, impedindo-o de usar a arma. Esse segundo ladrão, bastante mais frio, saiu do carro, apontou o revólver contra mim, obrigando-me a abaixar, e forçou o comparsa a voltar ao volante. O coitado do Fuscão saiu à toda, descendo a Brigadeiro cantando pneu! Um cara que estava logo atrás assistiu a tudo dentro de seu carro e me fez entrar, para perseguir os ladrões. Descemos a Brigadeiro, mas nem sinal deles. Então ele me levou à delegacia mais próxima, para apresentar queixa.
Estando na delegacia, eis que chega o guarda da esquina da Paulista, ferido no braço. O que aconteceu: quando eu gritei avisando que o Fuscão estava passando, ele colocou o semáforo no automático, desceu da casinhola, pegou um táxi, e desceu a Brigadeiro atrás dos bandidos.
Eu não os encontrei, mas ele, sim. Perseguiu o Fuscão com o táxi, e os bandidos tentaram subir uma das alças do Minhocão. Ao fazer a curva em alta velocidade, perderam o controle do carro e bateram num poste. O motorista enfiou a cabeça no espelho retrovisor, onde encontrei um chumaço de cabelos preso na moldura do espelho, que quebrou. O outro enfiou a cabeça no para-brisa, que estilhaçou, mas não quebrou. Ao descer, trocou tiros com o guarda, que acertou um projétil na coluna B do carro do lado do motorista, com tanta sorte para os ladrões, que mais uns centímetros para o lado esquerdo, acertaria a cabeça do ladrão que estava ao volante, ou mais uns centímetros para o lado direito, acertaria a cabeça do ladrão com a arma. Mas deu coluna do meio. O ladrão armado teve mais sorte, pois conseguiu acertar o antebraço do guarda, afortunadamente sem atingir o osso, mas fazendo-o perder a força e deixar cair sua arma. Com isso, os dois fugiram.
Esse guarda realmente, foi um verdadeiro herói. Ele agiu sem que eu lhe tivesse feito qualquer pedido (eu queria dele apenas a orientação de como e onde fazer a queixa na delegacia), foi além do cumprimento do seu dever ao perseguir espontaneamente os ladrões. Não fosse por ele, provavelmente eu nunca mais veria meu Fuscão.
Pouco mais tarde, com a ajuda de meus colegas de república, fui ver o carro. Estava enfiado no poste, meio desbeiçado, com um dos para-lamas amassado, o capô idem, a suspensão arriada, os braços da direção de um dos lados, tortos, um pneu arrebentado e o aro amassado, e o para-brisas estilhaçado. A boa notícia: encontrei minha carteira com todos meus documentos no banco traseiro, mas sem o dinheiro.
Consegui, nem lembro como, que um reboque o levasse até a porta de uma concessionária que eu conhecia, perto de onde eu morava. Ele passou a noite lá, esperando a loja abrir. Pela manhã, fui até a concessionária, preenchi a papelada necessária, e com a ajuda do B.O. (boletim de ocorrência) que a delegacia me havia proporcionado, demos a entrada no seguro.
Um mês depois, o carrinho parecia novo de novo. Não havia o menor traço do fatídico incidente! Uma pena que eu não lembre o nome da concessionária para poder agradecer-lhes uma vez mais pelo ótimo trabalho.
Quase um ano depois, sou chamado ao Quartel Geral da PM. Eu não sabia, mas haviam estudado o comportamento do guarda no incidente, e o estavam promovendo a sargento. Pediam que eu testemunhasse quanto aos fatos ocorridos, o que fiz com muita alegria. Houve posteriormente uma cerimônia de homenagem ao agora sargento, com entrega de uma medalha, à qual compareci e quando tive a oportunidade de agradecer-lhe pessoalmente por seu ato heroico.
Com o início das obras do Estágio 2 da Cosipa, o término do projeto, o fora que levei da paquera, e o assalto, achei que minha dose de São Paulo estava completa, e pedi transferência para a obra. Assim, no início de janeiro de 1974 lá estava eu enfrentando novamente a Piaçaguera-Guarujá.
Em 1974 o Corcel (lançado pela Ford em 1968) havia virado uma febre, com a primeira reestilização do modelo promovida pela fábrica. Meses de espera para a compra de um Corcel zero! A febre me pegou também, e eu havia decidido trocar o Fuscão por um Corcel. Fui a uma concessionária e fiz minha inscrição. No início de cada mês, eu (e todo mundo) ia à concessionária perguntar quando “meu” Corcel chegaria. Era sempre no mês que vem! E minha paciência foi esgotando…
A concessionária Ford aonde eu havia feito minha inscrição ficava numa esquina, no início da Av. Ana Costa. Na esquina em frente, havia uma concessionária GM. E na vitrina, um Chevette branco começou a piscar para mim. Curioso, atravessei a rua e fui dar uma olhada. O carrinho era uma graça, e a entrega, imediata. O preço, uma pechincha se comparado com o preço do Corcel. Comprei na hora! Era o início do mês de junho, ano de Copa do Mundo.
Eu já havia prometido vender o Fuscão para o irmão de um amigo meu, que ia se casar e queria um carro bom e não muito caro. O Zé veio, trouxe o dinheiro e levou o Fuscão, o que me deixou com o coração bem leve, porque ele era um mecânico de mão cheia, e o carrinho ia estar em ótimas mãos.
Eu havia alugado um apartamento em Santos e saído da casa dos meus pais. Meu ritmo de vida já começava a incomodá-los, eu percebia isso. Fui mobiliando o apartamento pouco a pouco. Com a Copa se aproximando, resolvi comprar uma televisão. Eu deveria pegá-la num determinado dia antes das 18 horas, hora de fechamento da loja.
Eu estava indo ao trabalho com o Chevette, e nesse dia tratei de sair mais cedo, mas não consegui. Saí no final do expediente, às 17 horas, chuva fina, muito movimento na Anchieta. Na altura do Casqueiro, alguém lá na frente deu uma freada brusca. O movimento repercutiu para trás, aumentando a força das freadas dos carros subsequentes. Quando chegou a minha vez, não havia espaço hábil para frear. Dei um golpe na direção fazendo o carro derrapar de lado, e evitei a batida. Mas os outros quatro carros atrás de mim, não. Engavetamento de cinco carros, sendo meu Chevette novinho, ainda sem placa, o primeiro da fila. Antes de sair do carro, olhei o hodômetro: 1.499 km rodados!!! Bem que minha mãe dizia que carro branco dava azar, era uma superstição que ela tinha.
O Chevette foi para o conserto, teve que trocar toda a lateral direita, inclusive a porta. A pintura em pouco tempo ficou amarelada, então eu tinha um carro metade branco, metade amarelo. Pintava de novo (na garantia do conserto) e ficava amarela de novo. O pessoal da concessionária já estava considerando pintar o carro inteiro para igualar a cor, quando vi um Chevette 75 vermelho sangue em exposição. Negocia daqui, negocia dali, troquei o clara com gema pelo vermelhinho.
Em 1975, as obras da Cosipa estavam em pleno auge. Isso provocou um acréscimo enorme de caminhões na Piaçaguera-Guarujá. Em consequência, a estrada estava praticamente destruída, sendo difícil ver onde havia asfalto, era barro puro. Nosso horário de trabalho também havia ido para o espaço, trabalhávamos 12 a 14 horas por dia, com a obra “virando” as 24 horas diárias.
Todo mundo envolvido com a obra ia por seus próprios meios, não se podia mais depender dos ônibus da empresa. E todo mundo com seus carrinhos novos, trafegando por aquele lamaçal! Eu e mais dois colegas, um deles casado e cujo carro ficava com a esposa, decidimos não usar nossos carros mais para trabalhar. Eu tinha o Chevette, mas o outro carro do rodízio que havíamos estabelecido, era um Opala SS-6 amarelo. Dava dó de ver os carros no fim do dia. Resolvemos então comprar um carro entre os três para essa tarefa, revezando-nos ao volante. Imediatamente lembrei do Fuscão. Liguei para o Zé, que topou vender-me de volta o carrinho, pois já tinha um filho e a esposa esperava pelo segundo. Obviamente, o Fuscão não era mais solução para ele.
Comprado o possante de volta, custo rachado por três, ficamos um ano indo e vindo para cima e para baixo com o Fuscão, que passou a dormir na rua, em frente da casa do motorista da vez. Lá pelas tantas, passamos a observar uma cor estranha nos para-lamas, uns pontos marrons brotando exatamente no eixo longitudinal dos pneus. Em poucas semanas, os pontos se transformaram em linhas, e as linhas em buracos. Os quatro para-lamas estavam se abrindo ao meio, pela ferrugem causada pelo adubo e demais elementos químicos jogados pelos pneus. Começamos a ver que aquele carrinho que havíamos recebido em excelentes condições do Zé, havia se transformado em uma sucata! Sabe como é, carro de muitos é carro de ninguém. Ele não recebia manutenção nem limpeza alguma, limitando-se a ter o nível do óleo e da gasolina completados quando necessário. A gota d’água foi quando a bateria caiu no meio da estrada, devido à corrosão do piso causada pelo vazamento do eletrólito, que ninguém viu.
Nessa altura do campeonato, eu e o outro solteiro do rodízio estávamos casados, e a obra civil quase terminada, com as atividades agora concentradas nas montagens dos galpões e equipamentos. Nosso ritmo havia se reduzido para um quase normal, se é que podemos chamar de normal o ritmo de qualquer obra.
Decidimos, pois, dar o rodízio por encerrado, e vender o Fuscão. Mas eu sentia um enorme peso na consciência por ter deixado meu primeiro carro ter chegado a esse ponto, então tomei a decisão de comprá-lo de volta e reformá-lo.
Nessas alturas, minha mulher estava grávida de nossa primeira filha, e o orçamento doméstico não tinha mais a folga dos tempos de solteiro. Tratei, portanto, de fazer a reforma com o menor custo possível.
Consegui a indicação de uma oficina fundo de quintal BB (boa e barata) em S. Vicente, com uma experiente equipe de funileiros. Acompanhei a desmontagem do Fusca por inteiro, e pude ver o que aquele ano e pouco de estrada haviam causado no coitado: para-lamas inservíveis, chassi com buracos de ferrugem, incluindo o do piso da bateria (agora apoiada num compensado), canaletas de ar apodrecidas. A boa notícia é que o motor estava em boas condições, suspensão e elementos mecânicos também, os para-choques estavam um pouco enferrujados, mas inteiros e sem amassados poderiam ser cromados, instrumentos, painel, bancos e forrações reaproveitáveis.
Os itens mais caros seriam a compra dos quatro para-lamas e a pintura geral, que eu fazia questão que fosse feita conforme minhas especificações: na cravação das estacas metálicas tubulares da obra da Cosipa, usamos uma pintura anticorrosiva que era tão forte e aderente que nem com faca conseguíamos removê-la do metal. Eu queria usar essa pintura em cima do primer, como pintura de acabamento do chassi, no fundo da carroceria nas partes não visíveis, e no fundo dos para-lamas. Nota: a cor da pintura era um preto brilhante.
Com meus contatos na Cosipa, consegui comprar do fornecedor dois galões dessa tinta, o que foi uma especial deferência do fornecedor comigo, já que ela não era vendida ao público por ser de uso industrial. Outra nota: antes que os maledicentes de plantão venham maldar, eu paguei pela tinta!
O problema dos para-lamas foi um pouco mais difícil de resolver. Os novos eram muito caros. Não havia, na época, para-lamas aftermarket (palavra bonita e moderna para peças que não são originais de fábrica) pelo menos até onde pude averiguar. Os usados, em sua enorme maioria, eram de Fusquinhas, peças de Fuscão ainda eram escassas.
A solução veio de um dos funileiros: ele sabia onde fabricavam para-lamas de plástico reforçado com fibra de vidro. Bastava informar o modelo do Fusca e o ano, e as peças compatíveis eram feitas sob medida. Fui com o funileiro lá nos cafundós de São Vicente, vi tudo o que eles tinham pronto, aprovei o acabamento do plástico, acertei o preço, e em duas semanas eles me entregaram as peças. Não lembro exatamente quanto custaram, mas era algo entre um terço e metade do valor dos para-lamas novos na concessionária.
Troquei os amortecedores por novos, estes sim comprados originais. Quando o Fuscão ficasse pronto, eu ia trocar todos os pneus. Sapatos novos para o menino ficar lindo e bem calçado!
Fui muito chato nessa reforma. Não deixava que nenhuma peça fosse terminada e pintada com primer sem que eu desse meu ok nas soldas. Comprei duas canaletas de ar fechadas, sem as saídas do ar quente, estas aftermarket. Além de não serem necessários no clima do sudeste, os furos eram o ponto fraco delas quanto à ferrugem.
Demorou um pouco, mas o Fuscão ficou pronto e lindo. Recuperou sua fisionomia da juventude (nessa altura já era um senhor de meia idade), sua carroceria havia ficado perfeitamente alinhada (um risco quando se cortam as canaletas), com as portas fechando com suavidade. Para não dizer que tudo ficou perfeito, notei que a aderência da pintura de acabamento não era a ideal no plástico dos para-lamas, mesmo com (ou talvez devido a) o primer, o que exigia muito cuidado com a manutenção dessa parte específica da pintura. Mas só por cima, porque por baixo, a tinta “bate-estaca” dava conta do recado.
Minha volta com o Fuscão à Cosipa foi uma glória, todo mundo queria ver o “Fusca de plástico”. E meus receios com a estrada, graças àquela pintura especial no chassi e às peças de fibra, foram reduzidos a quase zero.
Em1977, aceitei um emprego no Rio de Janeiro. Vim para cá em setembro (e fiquei definitivamente) com o Fuscão, enquanto minha mulher e minha primeira filha permaneciam em Santos, até que eu conseguisse alugar um apartamento e lhes desse condições de vir com a mudança. Um detalhe: embora eu tenha conhecido minha primeira esposa em Santos, ela é carioca da Tijuca. Ficou feliz de voltar ao Rio para junto de sua família.
No Rio, ficou difícil manter dois carros, pois o apartamento que aluguei mal tinha espaço na garagem para um, e esse um era o Chevette.
Acabei vendendo o Fuscão para um colega recém-divorciado, que havia deixado o carro que tinha com a ex. Ele ficou com o carro por quase três anos. Nessas alturas, o Fuscão estava indo para seus dez anos de idade, já era um senhor, mas com a aparência de um jovem senhor. A reforma foi muito bem feita, o tempo se encarregou de dar esse veredicto. Meu colega acabou vendendo o carro para o porteiro de seu prédio, e depois que ele se mudou, perdi de vez o rastro de meu Fuscão 1971 azul Pavão, o Fusca de plástico.
O Hernán se apresenta:
Um pouco sobre mim — sou boliviano de nascimento, vim morar no Brasil, mais precisamente em Santos, aos seis anos de idade. Meu pai foi um dos engenheiros estrangeiros contratados pela Petrobrás para dar início às operações da empresa, na qual permaneceu por mais de trinta anos, quando se aposentou.
Sou engenheiro civil, apaixonado por carros. Casei-me duas vezes, minhas duas esposas são cariocas. Tenho quatro filhos, um deles também engenheiro.
O texto conta o início dos anos 70 (formei-me em dez/71) é a história do meu primeiro carro.
Termina aqui o causo do Henán, a quem agradeço a iniciativa de tê-lo enviado.
Fica aqui o convite para que você, que também tem o seu causo com um VW antigo, envie seu causo para que possamos avaliar a sua apresentação aqui nesta coluna; o e-mail para contato é alexander.gromow@autoentusiastas.com.br
AG
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