Eu ficaria rico se ganhasse 1 real a cada vez que ouço alguém dizendo que os jovens hoje não querem mais saber de dirigir, indicando que o fim do automóvel no Brasil está próximo. A previsão fica ainda mais catastrófica quando outra pessoa completa a conversa dizendo que a venda dos carros com motor a combustão em breve será proibida.
Sinto informar aos alarmistas, mas a situação não é bem assim. Pelo menos não no Brasil. Não estou dizendo que o futuro do carro não esteja ameaçado nos mercados mais desenvolvidos. Porém, quando se fala do mercado nacional, há cinco motivos que comprovam que o nosso cenário é bem diferente.
Muita gente ainda sem carro
Vamos começar pelo mais óbvio: no Brasil muita gente ainda não tem um automóvel – e gostaria de ter. Basta comparar com outros países para entender a diferença. Nos Estados Unidos, há 1,2 habitante para cada carro em circulação. Ou seja, na média, quase todo mundo lá tem seu automóvel. Na Europa, as nações mais desenvolvidas não estão muito longe: a Alemanha tem 1,7 habitante/carro. Enquanto isso, a taxa brasileira é de 4,7. É quase um veículo disponível para cada 5 pessoas. Em resumo, ainda há muito espaço para se vender carro por aqui.
Aliás, mesmo na Europa as vendas não estão caindo. Pelo contrário: segundo dados da consultoria Jato, as vendas não param de crescer ano a ano desde 2013, com 12,3 milhões de unidades, até as 15,8 milhões de 2019.
Carro com imagem positiva
O segundo motivo é a relação positiva que o brasileiro médio tem com o automóvel. Quando eu dirigia a revista Quatro Rodas há quatro anos, havia uma grande preocupação com o possível fim do interesse do público pelo carro ou que o automóvel fosse visto como vilão. Fizemos, então, uma pesquisa para medir a intensidade dessa relação.
O resultado foi surpreendente: 73% concordavam com a afirmação de que automóvel significa liberdade e 57% de que carro é uma paixão. Nas frases negativas, 82% discordavam de que nunca mais andariam de carro se pudessem abrir mão.
É importante ressaltar que a pesquisa não foi feita com fãs e sim com o público em geral, pois foi ponderada para representar o perfil da população. Com margem de erro de 1,6 ponto percentual, era mais precisa do que qualquer pesquisa eleitoral.
Transporte público deficiente
Para abrir mão do automóvel, é necessário substituir a capacidade de mobilidade que ele proporciona por outro modal. É aí que deveria entrar o transporte público. Mas todos nós sabemos que, em geral, ele está longe de ser de boa qualidade.
Veja o caso do metrô da cidade São Paulo. Apesar de ser uma referência de qualidade no país, é insuficiente para as necessidades dos paulistanos. São apenas 101 km de extensão e 89 estações, muito pouco comparado a Londres (400 km e 270 estações) ou Nova York (369 km e 468 estações). Para piorar as coisas, as nossas cidades foram planejadas para priorizar o automóvel, deixando o ônibus em segundo plano e a circulação de bicicletas e pedestres em terceiro.
Tudo isso ajuda a explicar por que vemos brasileiros voltando da viagem à Europa impressionados por conseguir fazer todos seus programas usando apenas o metrô, mas que nunca puseram o pé em um transporte coletivo na sua própria cidade.
O status do automóvel
O exemplo acima acaba nos levando ao quarto motivo: o automóvel no Brasil ainda é uma ferramenta de status social. Aos olhos da população, quem usa transporte público é pobre. É por isso que é uma prática comum os restaurantes deixarem a vaga da frente reservada para um carrão bacana. Se for Ferrari ou Porsche, pode ter certeza que serão ostentados como se fosse um troféu.
Mesmo em comunidades mais pobres, quem tem um automóvel em bom estado é visto pelos vizinhos como alguém que subiu na vida, já que se trata quase de um artigo de luxo. Lembra daquela taxa de 5 habitantes para cada carro?
Percepção distorcida
Por último e mais importante, há uma certa percepção distorcida da realidade brasileira, porque tomadores de decisão e formadores de opinião vivem numa bolha socioeconômica. Dentro dessa bolha, os filhos de executivos e de jornalistas realmente têm cada vez menos interesse em dirigir ao completar 18 anos.
Como a maioria vive e trabalha em regiões nobres das cidades, eles têm melhor oferta de transporte público ou podem fazer uso constante de motoristas de aplicativos, já que as distâncias percorridas são pequenas. Mas experimente morar na periferia ou na cidade vizinha e pedir Uber todos os dias para ver o estrago que isso faz em qualquer orçamento.
Para dificultar a vida dos jovens em geral, a primeira carteira de motorista também pesa muito no bolso. Seu preço é tão indigesto que, numa pesquisa feita com 147 países, o Brasil ficou com a 8ª habilitação mais cara do mundo, com um valor de 213 libras (R$ 1.470).
Quem trabalha no segmento automobilístico também é bombardeado todos os dias com informações vindas de países onde a situação do automóvel é bem mais crítica (foto de abertura). De um lado, os diretores das fábricas locais precisam muitas vezes seguir estratégias definidas pelas matrizes no Japão, EUA ou Europa, onde o mercado é muito diferente do nosso. Do outro, jornalistas e consultores repassam a seus leitores e clientes as tendências que surgem no exterior e nem sempre são aplicáveis ao Brasil.
Então quer dizer que nada mudou para o carro nos últimos anos? Também não é assim. O setor passa por intensas transformações, assim como outros segmentos da indústria brasileira, impulsionadas principalmente pela digitalização e conectividade. Portanto, é óbvio que está havendo uma mudança na relação do consumidor com o automóvel, mas nada que se compare a tudo o que lemos e ouvimos por aí. Afinal, para o bem ou para o mal, o Brasil está longe de ser Japão, Europa ou EUA.
ZC