Dia 14 de maio de 1973. O Centro de Pesquisas da Ford em São Bernardo do Campo, recebeu um grupo de jornalistas especializados para um importante pré-lançamento da marca, o Maverick. Diretores da empresa ansiosos com o evento que marcava a chegada do sucessor do Galaxie. Só que reduziram custos do projeto o quanto puderam. Tentaram até esconder da imprensa que o velho motor (seis cilindros em linha) era o mesmo (década de 30) do Aero-Willys, ou do Jeep, herança da Ford ao comprar a Willys-Overland do Brasil em 1967.
Na apresentação técnica, no momento do motor, um jornalista interrompeu e perguntou: “Não é o mesmo do Aero-Willys?” E o diretor respondeu, meio vacilante: “Não exatamente, usa apenas alguns de seus componentes”. “Não me parece” disse o jornalista e calou o diretor ao puxar inesperadamente da pasta uma ficha técnica do motor Willys, comprovando o óbvio.
À época, poucos jornalistas dominavam o assunto, pois a indústria mal tinha completado quinze anos no país. O atrevido — e que anteviu o fracasso do carro — era Roberto Nasser, que se tornou temido pelas fábricas por suas tiradas inteligentes, questões que deixavam diretores sem bússola e por conhecer o assunto tanto ou mais que um engenheiro, apesar de ser advogado. Foi considerado “persona non grata” por algumas fábricas alérgicas à verdade nua e crua.
Fui grande amigo do Nasser, um dos raros jornalistas afinados com minha postura profissional. Muito complexa, por lidar com um setor composto de poderosas multinacionais, muitas delas fazendo valer — direta ou indiretamente — seu poder econômico. Um enorme vácuo quando seu coração foi implacável e levou-o em novembro de 2018.
Quando a Ford anunciou, no mês passado, fechar fábricas no país, lembrei-me do Nasser. Que, com seu invejável talento para analisar o comportamento do setor, obter informações privilegiadas até no exterior e prever mudanças e rearranjos estratégicos, emplacou várias previsões, sempre negadas pelos executivos mas confirmadas a médio ou longo prazo. A Ford não foi exceção. Veja principais observações em sua coluna publicada há exatos três anos (fevereiro de 2018) no AutoPapo:
“Ford sairá do país ou encolherá ? Desde o ano passado e em especial em 2018, são recorrentes as informações quanto às decisões da Ford para o seu futuro na América Latina. Coluna obteve documentos indicando definição de encolher a empresa. Causa está em cinco anos seguidos de prejuízos, somando US$ 4,2B no período — a grosso modo perder diariamente R$ 10 milhões. E na situação da matriz, com largos investimentos em mudança de tecnologias em seus produtos, sem margem para desviar recursos e suprir filiais dando prejuízo. Em seguida à reunião em Detroit para anúncio do balanço da empresa, Bob Shanks, diretor de finanças, utilizou linguagem florentina para projetar o futuro: ‘o negócio na região (América Latina) não possui uma forte posição competitiva’; enfatizou ‘não ter tido retorno apropriado e de um significativo redesenho no modelo de negócio local, onde jogar e como vencer’. Na prática repetiu as palavras do CEO Jim Hackett há meses. A agência econômica Bloomberg divulgou fato e informações de a Ford ter contatado FCA e Volkswagen sobre a possibilidade de venda.
(…) A meu ver não há dúvidas: a Ford decidiu enxugar a operação na América Latina. Aqui, em 2019, encerrar a fabricação de caminhões e do Fiesta na tradicional fábrica de São Bernardo do Campo, SP, vendendo a grande área à especulação imobiliária; ter apenas um produto, o Active, a ser feito sobre o recém-apresentado Ka FreeStyle encerrando, também o EcoSport; concentrando produção na unidade de Camaçari, BA. Prazo desconhecido, pois há legislação de incentivos envolvida no processo, e a companhia faz lobby para extensão das benesses. Para não deixar sangrar o caixa dos revendedores, promete ampliar a importação de veículos. À época, consultando o brasileiro mais qualificado na empresa, percebi uma crise em comunicação social ao não receber respostas sólidas.
(…) O texto da Bloomberg mostrou, as definições estão em curso, e a falta de convencimento na negativa da Ford adensa a teoria do nada haver a ser dito. Pessoalmente não creio na Companhia deixando Brasil e América Latina. É enorme e promissor mercado. Considero a possibilidade do encolher atividades, porém mantendo o pé na região, esperando a volta do ciclo dos grandes lucros. No tema, liguei para um dos meus aconselhadores pessoais, homem prático, idoso, criador de bois no Goiás. Não entende de firulas da linguagem, mas da vida. Contei o caso didaticamente, empreguei o termo redesenho citado pelo executivo norte-americano e repetido pela Ford no Brasil. Ouviu, falou pausadamente, concluindo com a objetividade do campo goiano: — Conversa para enganar mãe de moça. Este povo vai vazar ou minguar. (RN)”
Uma bola de cristal muito bem fundamentada…
BF
A coluna “Opinião de Boris Feldman” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.
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