O segredo de qualquer carro de corrida (e de passeio) para ter boa aderência, contornar curvas com velocidade e segurança é conseguir ter o máximo de contato dos pneus com o solo. Se a borracha não tem um bom contato com o asfalto, ele não é capaz de gerar aderência. Mas então, cara pálida, o título deste post já está equivocado, certo? Não, pois como uma sábia resposta à muitas perguntas já diria, depende.
Quando vemos corridas do passado, em especial nos anos 60 e 70 em provas de turismo, é bem comum ver carros fazendo curvas com uma roda do ar, mesmo sem ter tocado em nada, nem passado por cima da zebra. Mas, por que isso acontecia e hoje é tido como um erro?
A física continua a mesma, o que mudou é a construção dos pneus e a forma conceitual de projetar a suspensão.
Pneu x solo
Para entendermos melhor a lógica usada pelos projetistas do passado e dos tempos atuais, vamos entender um pouco como funciona o pneu.
Quando um carro está trafegando em linha reta, o sentido de movimento está alinhado com a linha de centro do pneu. Quer dizer que o pneu está indo em linha reta. Quando viramos o volante e fazemos uma curva, surge uma força lateral e o sentido de movimento não segue mais a mesma direção do pneu, esta fica defasada de um certo ângulo.
Este ângulo é chamado comumente de slip angle, ou ângulo de escorregamento do pneu. É como se a base do pneu em contato com o solo estivesse torcida, pois o pneu ainda quer seguir em linha reta, mas a direção está forçando-o a ir para o lado. Este efeito é o que faz com que o carro vire para o lado.
Numa curva, ocorre também um fenômeno chamado transferência de carga. Quando o carro está parado, ou em linha reta em velocidade constante, o seu peso é distribuído entre as quatro rodas. Na hora da curva, o peso que estava mais ou menos bem distribuído nas quatro rodas é transferido mais para o lado de fora da curva, ou seja, as duas rodas de fora recebem uma carga maior, enquanto que as duas rodas de dentro perdem um pouco desta carga que foi para o outro lado.
Quanto maior é a força vertical no pneu, mais ele é pressionado contra o solo e melhor é a capacidade de gerar a força lateral, que é o que faz o carro mudar de direção.
No gráfico acima, para um mesmo pneu, é possível gerar mais força lateral conforme se aumenta a carga. Cada curva representa um carregamento vertical (força do pneu conta o piso), e quanto mais para cima essa curva, mais força o pneu consegue gerar e fazer o carro virar.
Roda no ar, na frente ou atrás
No passado, era comum ver os Alfa Romeo com a roda dianteira de dentro da curva fora do chão. E não era pouco. O carro rolava a carroceria de modo que só a roda da frente levantava. Isso era proposital, não um problema de excesso de rolagem.
Não apenas Alfas, mas boa parte dos carros de turismo andavam assim. Nos fórmulas era um pouco diferente, a concepção do carro é outra, os pneus usados são outros, então mantinham mais as quatro rodas no chão. Nos turismos, a carroceria se movimenta de outra maneira, e a suspensão trabalha diferente.
Mesmo nos carros de tração dianteira, este efeito de levantar uma roda acontecia, mas, era a roda traseira que saída do chão. O motivo era o mesmo, só que como a tração de um era no eixo dianteiro e outro no eixo traseiro, cada um levantava uma roda.
E qual o motivo? Naquele tempo, os carros escorregavam bastante nas curvas. Era uma pilotagem diferente, e a aderência que os pneus conseguiam gerar era outra, inferior a um pneu moderno. Vale lembrar que o pneu slick, liso, sem sulcos, é relativamente moderno.
A carcaça dos pneus nos anos 60 tinha outra estrutura e resistência. Para uma maior geração de força lateral era preciso de bastante carga sobre o pneu, e a forma que encontravam para isso era transferir o máximo de peso para as rodas externas, ao ponto de levantar completamente a roda do ar, assim, toda a carga daquela roda migraria para as outras.
Pegando o exemplo dos Alfas GTA que visualmente era gritante o quanto a roda saía do chão, podemos ver que a carroceria rola para o lado da curva, mas a frente fica mais alta que a traseira. Isto se dá porque eixo de rolagem da carroceria faz com que a frente levante mais que a traseira. Desta forma, as duas rodas traseiras estão com bom contato com piso para dar mais tração na aceleração, e a roda dianteira de fora da curva está apoiada o suficiente para direcionar o carro.
No caso do Mini Cooper da foto abaixo, o que acontece é a mesma coisa, só que invertido, pois a tração é no eixo dianteiro, e as rodas da frente que precisam ter o máximo de contato com o piso para, além de fazer o carro mudar de trajetória, ter boa tração quando o piloto acelerar na saída da curva.
Novos pneus, novos conceitos
Com a evolução dos pneus, o nível de aderência aumentou ao longo dos anos. Os pilotos e seu estilo de pilotagem tiveram que se adaptar, pois deixar o carro escorregar passou de aliado a inimigo. Quando o carro não escorrega, aproveita mais da aderência dos pneus e consegue fazer curvas mais rápido, algo que antes havia um limite, e “de lado” se andava mais rápido.
Tecnicamente falando, antes, os projetistas e pilotos levantavam uma roda no ar para colocar o máximo de carga possível sobre os pneus “mais importantes” do lado de fora, para tentar chegar no ponto mais alto daquelas curvas que falamos no começo, que é onde a maior força lateral é gerada. E, mesmo assim, ultrapassavam este ponto escorregando com o carro, e ainda eram rápidos.
Hoje, os pneus são projetados para gerar o máximo de força lateral de acordo com a distribuição de peso e transferência de carga dos carros. Obviamente ainda vale a máxima que quanto mais carga no pneu, melhor, mas agora maneiras de controlar a suspensão e também com a aerodinâmica, é possível colocar boa quantidade de carga vertical em todos os quatro pneus.
Sem escorregar, os pneus modernos com construções mais evoluídas e compostos de borrachas mais aderentes geram muito mais força lateral, e mantendo os quatro em contato com o piso, os carros são mais eficientes nas curvas. Os projetos evoluíram ao ponto que podemos dizer que não é mais preciso fazer esse malabarismo todo de transferência extrema de peso de um lado para o outro para tentar extrair o máximo possível do pneu. Com os quatro firmes no chão, sem escorregar, se vai bem mais rápido.
O vídeo abaixo tem algumas boas cenas que mostram em câmera lenta como os carros de corrida modernos, no caso, os DTM, fazem curvas com as quatro rodas muito bem apoiadas no piso.
Certa vez, o grande Bird Clemente contou ao Arnaldo Keller numa entrevista publicada no portal Maxicar como era a pilotagem em seu tempo. Ele descreveu muito bem a experiência, e também como os tempos mudaram:
“Antes de existirem os pneus Slick, largos, chapados e com a borracha pastosa, o trabalho dos pilotos era guiar, guiar e guiar… O envolvimento com o carro era muito maior, e as tendências de traseira ou dianteira eram amplificadas, os carros escorregavam, os pilotos se destacavam e andar de lado a 180 ou 200 km/h era necessário. Powerslide era um privilegio uma glória de poucos, hoje se tornou um erro do piloto, mas cada vez que acontece é um espetáculo que todos querem ver porem, a tecnologia não permite mais. Era uma luta de mão limpa. Você estava só dentro do carro e não existia a telemetria que revela a privacidade da coragem, habilidade e disposição para se arriscar de cada um. Que saudades…”
Mais lento, talvez fosse, mas era lindo de se ver.
MB