Este causo faz parte do meu livro “EU AMO FUSCA II – Uma coletânea de causos de felizes proprietários de Fusca” (publicado em 2004) e foi enviado pelo amigo Samuel Correa Bueno. Ele aparece na foto de abertura com o Roger, Fusca 1977, branco Polar, que é dele desde 1990. Ele o ganhou de seu pai quando completou 18 anos. Com o Samuel o Roger já virou duas vezes o hodômetro e deve estar com 382.772 quilômetros rodados (pois o hodômetro está marcando 82.772) — e seu motor foi retificado em 1997. Durante todo este tempo a funilaria do assoalho foi feita duas vezes. Uma vez ainda na década de 1990, muito malfeita, e em 2010 o trabalho foi refeito. E a pintura ainda é original. O causo do Samuel mostra na prática como uma antiga propaganda da Volkswagen* tinha razão; o título do causo é o mote da propaganda, como veremos adiante.
Qual a posição social do dono deste carro?
Por: Samuel Correa Bueno
Em casa o Fusca já era uma tradição. Tivemos o “vermelhinho” que ajudou meus pais a não se molharem nas idas e vindas à igreja e ao mercado, depois veio o Herbie, um branquinho que foi roubado.
Eu tinha acabado de entrar na faculdade e completado 18 anos, quando fui aprender a dirigir num Fusca da autoescola. Na época toda autoescola possuía um Fusca. Tive a imensa felicidade de ter um instrutor lendário, daqueles que garantem serem primos distantes do Papa, que deram instrução de pilotagem na Esquadrilha da fumaça e que possuíam um Simca Chambord na juventude. Graças a este instrutor fui conhecendo os segredos daquele carro de mecânica simples, de comportamento honesto e de reações extremamente previsíveis.
Após a “formatura” da autoescola, levei a família algumas vezes a passear no carro da família, um Brasília na época. Apesar das semelhanças, algo me fazia sentir saudades do Fusca. Um dia meu pai, talvez por medo de que eu destruísse o pobre Brasília, trouxe a boa nova, “Vou comprar um Fusca para você!”. Depois de uma rápida procura, escolhemos um que não estava um primor de conservação, banco inteiro só o do motorista, a chave de ignição estava prendendo e a porta do passageiro insistia em se manter aberta — quase matando um ciclista uma vez — e o motor exalava um estranho cheiro de óleo quando funcionava. Mas ao dar uma volta de testes com o carrinho senti o conforto que se tem depois de passar pelo vestibular e ler Clarice Lispector: voltar a ler a cartilha com que se foi alfabetizado. Tudo no lugar em que deveria estar. Tudo muito simples, direto e caseiro como “a” de abelha ou “u” de unha. O senhor que nos vendeu o carro era dono de um estacionamento e, ficamos sabendo isso muito tempo depois, que ele tinha recebido diagnóstico de câncer. Vendeu toda a sua frota. Quando nos entregou o Fusca ele apertou minha mão e com os olhos muito tristes me disse: “Que você tenha momentos felizes neste carro”.
Senti uma profunda sinceridade nisso. Este senhor morreu meses depois.
E aquele Fusca foi para casa.
E com ele passei a ir à faculdade, faculdade pública e curso de tempo integral, o que faz com que a maioria dos estudantes more em repúblicas e vá a escola de ônibus ou de bicicleta. O meu Fusca era o único carro no pátio, rodeado por bicicletas e “mobiletes”. Eu tinha o privilégio de ser o único que podia se dar ao luxo de chegar seco na época de chuva. Era eu quem dava caronas para a turma.
Ter um Fusca nestes dias era ter um carro. Eu era o rico da turma. Eu tinha um carro, eu tinha um Fusca!
Quatro anos se passaram e o dia da formatura chegou. Nesse dia os papéis se inverteram. Os pais vieram de suas cidades para prestigiar a formatura dos filhos e o pátio da faculdade ficou repleto de carros grandes, novos, cheirosos, brilhantes rodeando o pequeno e inofensivo Fusca.
Nunca cheguei a ficar envergonhado de ter o Fusca, mas talvez passasse pela cabeça de alguns pais a errônea imagem de “coitado, ele tem um Fusca”. Eu me orgulhava de mostrar o carro que me levou à escola e que aguentou enchentes e sol, me levou direitinho para a escola, mesmo quando tive uma aguda crise de labirintite e tudo parecia rodar. O dia da formatura chegou e o Fusca se formou comigo.
Canudo na mão e alguns serviços a se prestar. O Fusca agora era meu ganha-pão. Peguei alguns serviços a prestar e o dinheiro que ia entrando ia para tirar as imperfeições do carro. Funilaria, bancos, motor — lembra-se daquele estranho cheiro de óleo?
Um dia, uma empresa que funcionava na minha cidade foi comprada por outra, multinacional. Acontece que o sistema computadorizado emitia recibos de pagamentos (holerites), com o nome antigo da empresa e deveria ser atualizado. O responsável pelo sistema estava viajando para outro estado e só poderia fazer a alteração quinze ou vinte dias depois do pagamento. Por razões que desconheço, a empresa se negou a pagar os salários utilizando os recibos antigos e os funcionários exigiam seus pagamentos. O clima foi ficando crítico e uma greve era iminente. O responsável pelo sistema então me ligou numa quente tarde de quarta-feira e me passou todas as instruções para resolver o problema.
Liguei então para a empresa e comuniquei que estaria indo lá, fazer a manutenção.
Fui na mesma tarde. Entrei no pátio da empresa. Não havia guarita de guarda e fui entrando. Parei na única vaga que havia e desci do carro.
Nisso um guarda surgiu há uns quinhentos metros gritando e gesticulando,“ Não pode parar aí, aí é vaga da diretoria “. Pedi desculpas e expliquei por que eu estava ali. Um sorriso então surgiu no seu rosto, “Sem você não teremos pagamento este mês!”. O guarda cuidou pessoalmente do meu carro. De dentro da empresa ouvi outro guarda passar pelo primeiro e estranhar, “De quem é esse Fusca?” — “É do moço que veio consertar nosso holerite” — respondeu o outro.
Vários anos se passaram e finalmente tive a chance de dar aula numa faculdade particular que há algum tempo eu sondava com currículos, conversas e autopropaganda. A chance surgiu e o mesmo Fusca do tempo de graduação me acompanhava. Cheguei a ter outro carro, mas nunca vendi o Fusca. Muitas vezes ouvi que deveria trocar de carro, mas eu não via racionalidade nos argumentos.
Cheguei para dar aula e dada a classe social da maioria dos alunos o Fusca era de longe o carro mais velho a passar pelo portão. E o que é pior, em vez de tomar o caminho do estacionamento dos alunos ele foi parar no estacionamento dos professores, que empáfia! Desci do carro e, como naquela quente tarde de anos antes o guarda veio gesticulando, “Essa vaga é para professores”.
Não bastou minha palavra, eu tive que mostrar documentos e a situação se repetiu por semanas e até hoje quando algum guarda novo começa a trabalhar na escola, me para e pede explicações! Por outro lado, sou conhecido como o “Professor do Fusquinha” e mesmo que eu esqueça uma lanterna ligada, todos os funcionários conseguem me encontrar para avisar, ao contrário dos outros professores que possuem carros rigorosamente iguais, sem personalidade.
“Qual a classe social do dono deste carro?” Perguntava a propaganda da VW de 1967, mostrando que na época tanto pessoas com maior poder aquisitivo quanto o mais humilde poderiam adquirir um Fusca, que ele rompia as barreiras sociais assim como rompia as estradas de terra e mal pavimentadas da época. Para mim o Fusca “Roger” — como foi batizado por uma amiga da faculdade, em homenagem ao baterista do conjunto musical inglês Queen que tem uma música “I´m in love with my car” (eu estou enamorado de meu carro) — representou símbolo de riqueza na época em que eu mal tinha dinheiro para pôr gasolina. Hoje, que tenho um bom emprego, é meu hobby e meu orgulho, mas para os espectadores representa que eu ainda não ganhei dinheiro suficiente para trocar de carro — que irônico.
São 12 anos juntos, mais de 80.000 quilômetros rodados. Muitas peças substituídas pelas originais, poucas panes na rua. Apenas um pneu furado. Foi a bordo de “Roger” que pedi minha namorada, agora noiva, em namoro, que fomos viajar pela primeira vez e que fomos escolher nossa casa e decidir coisas sobre o casamento que se aproxima. Hoje a posição social do dono daquele Fusca é de alguém que pode ter um carro que gosta, gastar um pouco mais com sua manutenção em retribuição as inúmeras horas de voltar à cartilha e ter a certeza de que “a” ainda é de abelha e “u” de unha.
Quem é Samuel Correa Bueno
Samuel Correa Bueno tem 49 anos, nasceu e vive em Rio Claro, SP, é formado em Física pela Unesp e Mestre em Ciências Aplicadas pela USP. Atualmente cursa doutorado em Tecnologia na Unicamp e é diretor de informática da Unesp. É casado e tem duas filhas. Ainda tem o “Roger” mas ele perdeu status de principal carro da família há alguns anos. É sócio do Clube do Fusca de Poços de Caldas.
(*) – Abaixo a propaganda cujo mote inspirou o Samuel a escrever o seu causo:
Segue o texto desta propaganda que é uma obra-prima:
Qual é a posição social do dono deste carro?
É melhor não arriscar nenhum palpite.
Você pode pensar que o dono é um bancário e depois descobrir que é um banqueiro…
Ou pensar que o dono é um estudante, e depois descobrir que é o próprio reitor da Universidade…
O Volkswagen é assim mesmo.
Ele nada revela sobre seu dono. Ou melhor, quase nada.
Porque alguns traços de caráter são revelados automaticamente pelo próprio fato de o dono ter um VW.
Por exemplo, o senso prático.
Quem tem Volkswagen resolve o problema do transporte da maneira mais racional.
É senso de economia.
Quem tem VW, faz economia em cada quilômetro.
E faz economia também na hora de vender, pois o VW é o carro que melhor compensa o dinheiro investido na hora de comprá-lo.
Adivinhar a posição social do dono de um Volkswagen é difícil.
Mas é fácil conhecer alguns traços muito importantes de seu caráter.
Você por acaso tem VW (Fusca)?
Parabéns.
Independentemente de sua posição social.”
AG
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