Um par de meses atrás, enquanto fazia caminhada com meu marido, encontramos um queridíssimo amigo. Imediatamente, notei que estava num carro diferente. Ele tinha um Mercedes esportivo (não lembro exatamente do modelo, mas certamente era cupê
) e estava num Porsche Boxster 718 S. Papo vai, papo vem, claro que logo comentei sobre a troca. Ele, que é uma das pessoas mais diretas que conheço — e por diretas entenda-se algo assim como um míssil Tomahawk, e com a mesma precisão — disse: “Eu vou morrer, então, quis me dar esse gosto.” E me comentou que teve de esperar mais do que o normal para receber o carro, todo customizado, como é praxe da Porsche. “Acho que você podia ir atrás disso, Norinha. Vejo uma pauta aí”, me disse.
Estranhei a primeira frase, pois apesar desse jeito direto dele, que eu pessoalmente adoro, pois também sou um pouco assim, não fazia sentido. É uma pessoa na faixa dos 70 anos, supersaudável física e mentalmente, extremamente ativo, dono da própria empresa depois de ter trabalhado (e muito) em diversas multinacionais… sei lá, não entendi. E guardei naquela gaveta mental que tenho de pautas a segunda parte do comentário sobre a demora para receber o carro.
Fiquei cismada com a frase do meu amigo, pois sei do gosto dele por carros rápidos, embora não seja profissional da velocidade e confesso que cultivo uma certa inveja mais ou menos secreta (bem, até quem sabe, ele ler esta coluna) pelo fato de ele já ter andado num carro de Fórmula Indy dentro de um circuito. Mas ele nunca havia dito algo assim. E, claro, fiquei preocupada que pudesse ser algo relativo à saúde.
No mesmo dia, conversando reservadamente com a esposa dele, também uma amiga muito, muito querida, soube que ele iria fazer uma cirurgia cardíaca extremamente complicada. Uma não, uma série de procedimentos. Sem entrar aqui em detalhes sobre as cirurgias nem sobre o que aconteceu a seguir, ele não comentou nada e nós também não.
Aí entendemos a compra do carro. Assim que ele soube do risco, decidiu se dar um gosto que, pensou, poderia ser um dos últimos.
Os convidamos para jantar um par de dias depois, ridiculamente longe os quatro, na varanda de casa, em tempos de covid pois a última coisa que queríamos era que ele corresse qualquer risco antes de uma cirurgia dessa complexidade e meu marido e eu fizemos de conta que não sabíamos nada. O pretexto foi que eu havia feito empanadas argentinas, mas o real motivo era espairecer, jogar conversa fora e passar uma noite agradável antes de ele encarar o hospital.
Resumindo a história: as cirurgias (foto de abertura, apenas ilustrativa) correram superbem, ele está ótimo e continua curtindo o carro.
Do comentário que me fez ficou uma pauta que demorei a ir atrás pois estava mais preocupada com a saúde dele do que com as sugestões que é, ao mesmo tempo, um ensinamento: com a pandemia, muitas pessoas fizeram como meu amigo: começaram a se dar alguns gostos. Na impossibilidade de viajar, com fronteiras fechadas, restrições de companhias aéreas, limitações de lotação de hotéis, museus fechados e outros obstáculos, algumas indulgências foram cortadas da lista daqueles que, pela idade ou pelo poder aquisitivo, poderiam fazer isso.
Beber e comer bem também passaram a ter limitações. Restaurantes parcial ou totalmente fechados — ok, muita gente começou a experimentar fazer pratos em casa, mas fora os pães e outras coisas, ninguém que já não soubesse cozinhar bem vira um masterchef da noite para o dia — então, como realmente comer realmente bem em casa, nível restaurante com estrelas Michelin?
Bons vinhos? Ok, mas quanto se pode beber? Depois de um ano de confinamento, até isso começa a ficar meio repetitivo (não para mim, vamos esclarecer). Ver filmes? Mesmo os mais fãs tem um limite imposto pela redução na produção cinematográfica.
O comentário me pareceu lógico, mas claro que fui checar. Falei com a Porsche e, sim, houve aumento na procura por carros, e significativo, e algum aumento na demora. É claro que a fábrica vende mais do que veículos. Vende sonhos. Muita gente, como meu amigo, resolveu concretizar seus sonhos, pelos mais diversos motivos. Pela proximidade de uma cirurgia complexa ou apenas pela própria pandemia (foto de abertura), que nos fez encarar o confinamento e a própria finitude da vida de outra forma. Pode ser uma espécie de gripe mais agressiva, mas podemos ir parar numa UTI a qualquer momento e não sair mais dela. Ou morrer por falta de atendimento hospitalar, em decorrência do vírus ou de um infarto para o qual não tivemos UTI disponível. Então, vamos usufruir de algumas coisas enquanto podemos.
“Com a pandemia, o setor automobilístico em geral caiu, mas alguns modelos de luxo tiveram aumento de vendas”, explica Rodrigo Soares, gerente de Relações Públicas e Imprensa da Porsche Brasil. É claro que a Porsche trabalha no nicho do nicho do nicho, um segmento de pessoas que querem exclusividade, esportividade, emoção, e não apenas um carro para ir de um lugar a outro. Tanto que sua maior ferramenta de vendas é o que eles chamam de Driving Experience, uma espécie de mergulho na marca. Se as fábricas permitem dirigir os carros antes de comprá-los, a Porsche permite dirigi-los numa pista de corrida, como Interlagos, Velo Città, Curvello ou o sutódromo de Goiânia. E vários modelos. Mas não é apenas isso. É todo um pacote de experiências sobre o que é ter um carro da marca — tanto é que a taxa de conversão, isto é, de pessoas que participam do evento e compram um carro Porsche pela primeira vez é de 8% a 10% — bem alta para veículos que custam o que custam estes.
Ao encomendar um veículo absolutamente tudo pode ser escolhido — até a cor do cinto de segurança. Por isso a espera normal é de 3 a 4 meses, mas, de fato, ultimamente as esperas tem ultrapassado um pouco esses prazos, pois cada país tem uma cota trimestral de produtos à qual tem direito dentro da fábrica da Alemanha e pode ser necessário entrar na cota do período seguinte. Eventualmente, há alguma folga que pode ser preenchida, mas nunca há garantia, pois todos os países tem mais demanda do que cota.
O ano passado foi quase todo de pandemia e, no entanto, a Porsche teve aumento de 35% nas vendas de carros no Brasil — de onde eu deduzo que mais gente deve ter feito como meu amigo. Foram 2.487 veículos ante 1.849 em 2019. O carro-chefe (OK, o trocadilho é ruim, mas não resisti) continua sendo o modelo 911, do qual foram vendidas 774 unidades – uma elevação de 225% quando comparado com o ano anterior. O segundo mais vendido foi o suve Cayenne, com 649 unidades, mas com um aumento consideravelmente menor, de 13%. O Boxster 718 foi o modelo que registrou a segunda maior alta, em porcentagem, com 39% de aumento e ficou com o quarto lugar entre os modelos mais vendidos, com 310 unidades.
Mas não é apenas nesse segmento de alto luxo que isto é perceptível. Em outra escala, notei isso conversando com outras pessoas. Nem todos podem comprar um Boxster apenas porque gostariam de ter um, mas encontrei outros casos. Gente que trocou de carro apenas porque queria aquele modelo — mesmo que fosse um simples, há muito tempo almejado. Amigos meus que tinham o sonho de comprar um carro antigo (“antigo não, vintage”), alguns para reformar, o fizeram. Pessoas que, agora, com mais tempo dentro de casa e poucas ou nenhuma opção para sair ou viajar, usam a garagem para montar e desmontar carros e motos e realizar o sonho de ter o veículo que queriam. Ficou-me a lição: dê-se os gostos que puder, enquanto puder — obviamente, sem prejudicar ninguém.
Mudando de assunto: por acaso, faz um par de dias assisti parte do Campeonato Mundial de Rali (WRC), exatamente a etapa da Finlândia. Gostei de ver a rota do Círculo Polar Ártico onde estive faz já três anos, nesta mesma época e vendo paisagens muito parecidas — ou seja, neve, pinheiros, neve, pinheiros, neve, pinheiros, neve, pinheiros… Vi que como parte do regulamento os pilotos tem de carregar duas pás, entre outras coisas e lembrei que nós mesmos tínhamos uma pá no porta-malas do carro alugado e não raro cruzávamos com carros usando as mesmas pás para se desatolar pois qualquer escorregada fora do asfalto era encalhar na neve, na certa. E sinto saudades daquela viagem linda, andando a 100 km/h por essas estradas cobertas de neve. Rio quando lembro que na mesma Rovaniemi por onde passa o ralli paramos num lugar na saída do hotel porque não conseguíamos ver onde estava a rua e onde estava a calçada – situação que se repetiu por várias vezes. Que país lindo!
NG