Se me perguntassem qual meu Ferrari favorito uns vinte dias atrás, a resposta seria instantânea e bem objetiva: F40.
Não digo que esta resposta tenha mudado, mas, se a pergunta fosse reformulada para qual Ferrari, de qualquer um da história, fosse o escolhido para estar estacionado na sua garagem, a resposta não seria tão simples.
O F40 é um marco, uma criação dos anos 80 que revolucionou o conceito do que hoje consideramos um supercarro. Já existiam carros de alto desempenho, mas com o pacote minimalista como do Ferrari eram muito raros. Tecnologicamente falando, o maior avanço do carro era a construção similar a um carro de corrida, com um mix de materiais exóticos como alumínio, Kevlar e fibra de carbono.
O motor era parecido com o do seu antecessor, o 288 GTO. Um V-8 biturbo de 478 cv. Para a época, era uma potência respeitável. E também conseguir ultrapassar a marca das 200 mph (322 km/h) sendo um carro de rua, era outro grande feito.
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O carisma do carro, ainda com a aura do Commendatore ditando o padrão de qualidade de seus automóveis, era algo fora do comum, e ainda é. A perspicácia de conseguir convencer o mundo de que seu supercarro era melhor que os demais (vide os Lamborghinis e Porsches da época) por não ter nada dentro, nem uma maçaneta interna na porta, mostrava o quanto um novo Ferrari era especial e como conseguiam vender sonhos, não só carros.
A criação do engenheiro Nicola Materazzi, que já havia feito o 288 GTO e ainda teria no currículo o Bugatti EB110, levou para um novo patamar o que se via como o carro definitivo, o máximo em esportividade e experiência ao volante. E, particularmente falando, a beleza da simplicidade das formas do F40 o colocam no topo do meu ranking. Ponto para a Pininfarina.
Somando todos os méritos e características do F40, este facilmente seria o meu escolhido para a pergunta “qual seu Ferrari favorito?”. Mas, novamente, se a pergunta fosse “qual Ferrari teria na garagem?” a questão começa a enroscar.
Recentemente peguei de um amigo uma coleção de miniaturas que foi vendida por aqui no formato de fascículos disponíveis por assinatura ou que podiam ser comprados em banca de jornal. Estas coleções geralmente trazem uma relação entre custo e benefício favorável. Não são miniaturas caras e oferecem uma boa qualidade.
Ao catalogar todas elas (a coleção completa tem oitenta modelos), peguei uma a uma para verificar se havia algum detalhe relevante como riscos ou qualquer outro defeito (todas perfeitas), fotografar e posteriormente publicar no meu site. E é impossível interagir com cada peça sem se atentar ao modelo, lembrar um pouco de sua história, ou mesmo pesquisar um pouco mais para se aprofundar e também imaginar como seria guiar cada uma delas. E ai que a posição consolidada do F40 como o Ferrari perfeito começou a ser ameaçada.
O F40 deve ser excelente, se usado em um ambiente apropriado. Rodar nas nossas vergonhosas vias públicas, é praticamente inviável. O Bob teve o prazer de testar um Ferrari destes no passado, e o reencontrou muitos anos depois. Andar apenas em boas rodovias como a Bandeirantes ou a Castello Branco não seria muito produtivo, por mais tentador que seja, mas seria o lugar adequado.
O Bob conta que foi dirigir o F40: em teste quando ele era editor técnico da Quatro Rodas:
“Conheci o F40 quando a Fiat convidou a imprensa para conhecê-lo na fábrica em Betim,, isso em 1991. Eu estava na revista Oficina Mecânica. Todos os jornalistas andaram de passageiro no carro na pequena pista de testes da fábrica. Foi frustrante não podermos dirigi-lo. Em junho do ano seguinte entrei para a Quatro Rodas e convenci o diretor de redação Carlos Costa a pedirmos o F40 para teste em ambiente controlado, a pista de testes da então Freios Varga (atualmente da TRW), em Limeira, SP. A Fiat concordou e o carro nos foi entregue nessa pista, que consiste de duas retas de 1.800 metros unidas por curvas nas extremidades, metade da faixa de rolamento nelas com superelevação de 30%. Ali fizemos todas as medições de desempenho, inclusive frenagem. Foi uma experiência inesquecível. O F40 é um carro de competição Grupo C, esporte-protótipo na íntegra homologado para rodar em vias públicas, com o único (e indispensável) mimo do ar-condicionado. Bancos-concha, cinto de quatro pontos, interior minimalista onde que se olhe e toque, sem vidros da janela de descer (material transparente, salvo o para-brisa, de acrílico, com pequena portinhola corrediça) e acionamento interno da fechadura das portas por cordinha. Nada de porta-luvas ou qualquer outro porta-objetos. Alavanca do câmbio de cinco marchas com a indefectível grelha de metal e com esfera como pomo. Sobretudo leve para seu porte de 4.358 mm de comprimento: 1.235 kg. Seu entre-eixos é de 2.450 mm (o mesmo do Porsche 911 atual). Com o V-8 biturbo de 478 cv a 7.000 rpm e 58,8 m·kgf a 4.000 rpm, um peso-potência de 2,58 kg/cv só tem um significado: desempenho exuberante. Aceleração de 0 a 100 km/h em 4,1 segundos e velocidade máxima de 324 km/h. Dirigi-lo, começando pela primeira “perna-de-cachorro”, fora do “H”, para o lado e para trás, em que é desnecessário procurar o canal de 2ª-3ª, bastando um movimento da alavanca reto e em frente, com uma embreagem bem pesada (30 kg!), e uma direção e freios desassistidos, é o pináculo do dirigir para quem é autoentusiasta. Os pedais com grandes sapatas de alumínio e o do acelerador pivotando no assoalho foram a origem da expressão “punta-tacco telepático” que o leitor ou leitora costuma ler nos textos do AE. Sentir no corpo toda a brutal aceleração e a não menos brutal aceleração lateral de 1,06 G produzida com o auxílio dos pneus Pirelli P-Zero 245/40ZR17 e 335/35ZR17, ficaram para sempre na minha memória. O mais notável, uma neutralidade de comportamento nas curvas admirável (as fiz na faixa interna sem superelevação intencionalmente para esse propósito) combinada com uma notável resposta de direção. Nas retas da pista andar a 200 km/h é como estar num carro normal a 100 km/h. Depois de todas as medições no campo de provas o F40 foi levado para o Aeroporto de Viracopos para testá-lo em velocidade máxima na pista de taxiamento de 2.700 metros. Não cheguei aos 324 km/h — precisaria ter 4.00 metros — e atingi só 302,3 km/h na média de duas passagens em sentidos diferentes. Havia vento de 1,5 m/s (ou 5.4 km/h). Essa prova final serviu para notar sua absoluta estabilidade direcional.”
Ao pegar a miniatura do Ferrari 599 GTB Fiorano, lembrei de quando tive a oportunidade de andar em um. É um modelo moderno, lançado em meados dos anos 2000, infinitamente mais prático que o F40. A fama dos Ferraris antigos de serem problemáticos e pouco confiáveis estaria sanada. As condições de uso de um 599 são totalmente diferentes. O motor com gerenciamento eletrônico moderno seria muito mais amigável para manter o carro funcionando “redondinho” por bastante tempo.
Outro ponto é que o Fiorano tem um V-12 de aspiração natural. Nada soa melhor do que um V-12 italiano. E com mais de 600 cv, este Ferrari consegue acompanhar o F40. A velocidade máxima é a mesma, mas isto é totalmente irrelevante, pois esta condição não é usada nunca. O Fiorano, entretanto, é muito mais amigável no uso urbano. Não sofre com baixas rotações e tráfego urbano da mesma forma que o supercarro dos anos 80, e possui todos os confortos de um modelo moderno, como ar-condicionado, sistema de som de alta qualidade, bancos elétricos e tudo mais. Até podia ser comprado com uma caixa manual de seis marchas, algo raro nos dias de hoje. Incrível.
O porém, é que mesmo com a opção de uma alavanca de troca de marchas junto com uma linda grelha cromada no console central, o 599 não traz a mesma sensação do prazer em dirigir que um carro analógico, como o F40. A eletrônica embarcada, o peso de quase 1.800 kg e a conceituação do carro fazem do GTB um excelente Grand Tour, mas não um excelente carro esporte.
Se o problema é a troca de experiências entre o carro e o motorista, mantendo o padrão do 599 GTB, uma opção mais rústica seria seu ancestral, o 365 GTB/4 conhecido mundialmente como Daytona. Com a mesma configuração, motor V-12 dianteiro, carroceria maior no estilo GT, o Daytona traria a conexão com a máquina por não sofrer nenhuma interferência dos Gremlins eletrônicos de hoje em dia.
Um ponto histórico a favor do Daytona é o fato do grande jornalista Brock Yates ter usado um Daytona azul para cruzar os Estados Unidos no lendário Cannonball Run nos anos 70, uma corrida por princípios, contra os limites de velocidade que estavam sendo impostos nas rodovias. E ter um Daytona azul na garagem, até mesmo com as mesmas decorações do carro usado por Yates e Dan Gurney, seria incrível.
O GTB/4 é veloz e, como comprovado por Yates, historicamente impactante, afinal, foi um carro usado por transgressores rebeldes que lutam contra o sistema. Ao meu ver, muito bonito (outro ponto para Pininfarina), e o V-12 Colombo com seis Webers e troca de marchas manual soa como o canto dos anjos. Qual o lado negativo? Difícil achar um, mas manter um carro desses rodando bem ao longo do tempo é bem trabalhoso. Mas, todo carro antigo é.
Para escolher um só modelo dentre todas as opções, e não apenas para um Ferrari, mas qualquer carro, é uma questão de equilíbrio entre os prós e contras. Deve-se abrir mão de alguns pontos em favor de outros. O difícil é saber o que aceitar da lista do que não se gosta e o que abrir mão do que se prefere. Não se pode ter tudo, não é mesmo?
Voltando aos GTs, um 250 GTO talvez fosse uma boa opção. É um carro icônico, controverso, usa o motor Colombo similar (porém menor) ao do Daytona, dominou as pistas na Europa por anos e ainda é um belo desenho de Sergio Scaglietti. Hoje, valem zilhões de dólares. Infelizmente cairia no mesmo problema do F40. É um carro para usar na pista, ou em estradas abertas, não para viver no trânsito.
Uma alternativa menos hardcore que o GTO, mas ainda da mesma geração, é o 250 GT Berlinetta. Refinado, com belas linhas e feito para uso civil em vias públicas, o Berlinetta traz a praticidade de um carro de rua com a mecânica derivada dos Ferraris de pista. Steve McQueen teve um modelo Lusso, e não era vermelho. Sabendo do gosto refinado de McQueen, quem circulava por Los Angeles com exóticos como o Jaguar XK-SS, o 250 GT deveria ser um bom automóvel. Só isso já mostra as qualidades do carro. Mas, de novo, seria viável tentar conviver com um hoje em dia? Provavelmente não.
E por que não pensar em algo diferente, se não vamos encontrar mesmo uma opção problem-free? O Ferrari 375 representa a era das barchettas italianas. Pequenos esportivos de dois lugares, sem teto, com motor dianteiro e tração traseira. Pequenos, só por fora, pois no caso do 375, o motor era enorme. O V-12 já chegava a 5 litros de cilindrada e beirava 350 cv. Isto tudo em meados dos anos 50. Esta geração remete aos gloriosos e bravos pilotos que corriam por estradas e pequenas ruas em provas urbanas e cruzando países. Corridas como Carrera Panamericana, Mille Miglia e mesmo Le Mans faziam parte destes desafios lendários. Só não seria muito prático.
Voltamos à estaca zero. Praticidade ou velocidade? Confiabilidade ou prazer em dirigir? De qualquer jeito, uma escolha desta se baseia no equilíbrio. Quais problemas aceitamos para ter as qualidades desejadas?
Já conclui que não adianta muito tentar nomear um só para ser O Escolhido. Dentre tantas opções, vários modelos atraem a atenção, cada um com sua qualidade ou peculiaridade. Os motivos para não serem escolhidos talvez fossem mais decisivos, pois se formos pensar nos pontos positivos, fica difícil escolher um só.
Dividindo a escolha por épocas, acho que da era clássica seria o 375, depois viria o Daytona pelo anos 70. O F40 obviamente estaria na sequência, e como o modelo moderno, o 599 Fiorano.
Depois de tudo isso, o meu modelo favorito mudou? Não. F40 ainda é o rei. Não é o mais práticos, tampouco o mais potente, mas é incrível. São as imperfeições que fazem dele um carro verdadeiro, honesto. Os carros modernos usam da tecnologia para tentar chegar à perfeição, e é justamente isto que mata o que poderia ser um excelente carro, como um ser sem sentimento.
Melhor ficar com o modelo que peca nos detalhes que não tentou esconder, mas se destacou nos que realmente importam.
MB