Uma das vertentes da história da Kombi é que ela tenha se originado no Plattenwagen (carro-plataforma). Vamos ver como e por quê. para entender como surgiu a Kombi
Em 1945 a fábrica estava na lista de edificações condenadas à demolição, além do fato de ter alas inteiras destruídas e muitas vezes calcinadas pelas bombas de fósforo que ardiam até por uma semana. As fotos abaixo mostram aspectos da destruição:
Na foto abaixo, uma visão de como a fábrica estava na década de 1960 depois de boa parte da restauração estar concluída:
Em 11 de abril de 1945, as tropas americanas, as primeiras a chegar a Fallesleben, logo liberaram a fábrica da Volkswagen e a “Cidade do carro KdF” não demorou a ser rebatizada Wolfsburg pelo alemães. Cerca de 7.700 trabalhadores forçados comemoraram sua libertação na fábrica. Nas oito semanas que se seguiram, os americanos tomaram decisões inovadoras para o futuro das pessoas, da cidade e da fábrica.
Esta breve permanência das forças armadas dos EUA estabeleceu as bases para a democracia pós-III Reich, liberdade e reconstrução na região. Em maio, veículos voltaram a ser construídos na fábrica da Volkswagen usando componentes restantes. A produção recomeçou pelo Kübelwagen, fabricado especialmente para os militares dos EUA, agora chamado de “Volkswagen Jeep”. A ocupação americana terminou no início de junho de 1945, quando a região passou a fazer parte da zona de ocupação britânica.
Havia uma grande falta de veículos de transporte para as forças de ocupação e os primeiros britânicos que chegaram à Wolfsburg em junho de 1945 se dedicaram ao reparo de motores tanto de equipamento inglês quanto de Jeeps americanos. Eles instalaram oficinas que consertavam carros também, mas não pensavam em fabricar carros novos.
Num golpe de sorte para a história da Volkswagen e consequentemente do Fusca, em agosto de 1945 chega à Wolfsburg o jovem major Ivan Hirst, 29 anos, para ocupar o cargo de Oficial-Residente Sênior na Fábrica Volkswagen. Ele pertencia ao grupo de Engenheiros Eletricistas e Mecânicos Reais (REME, a sigla em inglês) da 43ª Divisão de Infantaria, de Wessex.
Ele acabou mudando radicalmente o destino da fábrica. Ele gostava da tecnologia alemã e decidiu retomar a fabricação de veículos. Os livros contam que o major Hirst se apaixonou à primeira vista pelo Volkswagen. Tinha um bom relacionamento com o coronel Charles Radclyffe, que era o chefe do Ramo de Engenharia Mecânica, Divisão da Indústria sediado em Minden, seu superior imediato na hierarquia das Forças de Ocupação Britânicas. Hirst era muito proativo — não tinha problemas em encontrar soluções criativas e costumava “alargar as fronteiras” das regras.
Para contornar o problema de falta de recursos, Hirst deu um jeito de conseguir uma encomenda de “mais de” 20.000 veículos. O respectivo contrato foi assinado em 17 de setembro de 1945, um mês depois de sua chegada à Wolfsburg! Veja a carta de encomenda abaixo:
A fábrica estava para ser demolida., como dito no começo. Relembrando um pouco da História, a fábrica da Volkswagen tinha sido encampada pela Luftwaffe (Força Aérea Alemã) para o esforço de guerra e passou a produzir componentes de aviões e a temida bomba voadora V1, além de outros itens bélicos como minas terrestres, tornando-a um alvo estratégico para os Aliados. Mesmo com a fábrica condenada à demolição o determinado Hirst mandou começar a limpeza do entulho da fábrica. Para tanto ele convocou um destacamento de transporte do exército britânico para ajudar nos trabalhos de recuperação da fábrica.
Até uma linha férrea provisória foi instalada pelos ingleses para ajudar nos trabalhos de remoção de entulho. Tratava-se de uma miniferrovia que tinha sido usada na construção das Autobahnen (Autoestradas Federais) e que foi trazida pelo destacamento motomecanizado de transporte para dentro da fábrica para agilizar os trabalhos:.
O Batalhão motomecanizado trabalhou não só na retirada de entulho como no fechamento das crateras das bombas dos aliados que caíram na faixa de terra que fica entre a fábrica e o Mitteland Kanal. Com o tempo eles foram ajudando até no transporte interno que era muito deficiente por falta de equipamento de transporte adequado — transformando se em parte ativa das rotinas de fabricação. Eles também ajudaram no transporte de volta das máquinas que tinham sido retiradas da fábrica para abrigos seguros em subterrâneos da região quando a situação começou a ficar difícil para os alemães próximo ao fim da guerra — recompondo assim o parque de máquinas da fábrica.
A produção precária de carros tinha sido iniciada, com algumas alas ainda sem teto e os funcionários trabalhando a céu aberto. E no dia 14 de outubro de 1946 foi produzido o 10.000º Fusca no pós-guerra, mas as condições de trabalho e moradia também eram muito precárias.
Porém. as condições eram difíceis para os funcionários que aproveitaram a ocasião para fazer um protesto que foi registrado em foto. O décimo-milésimo carro foi coberto de cartazes de protesto, como o que está bem no centro que diz: 10.000 carros e nada no estômago, quem pode aguentar isto? Em alemão é uma quadrinha: “10.000 Wagen nichts im Magen, wer kann das vertragen?”.
As condições de moradia também eram muito difíceis. Num país que tem inverno rigoroso os funcionários viviam em casas precárias que foram construídas como moradias provisórias enquanto as definitivas, de alvenaria, não estivessem prontas, coisa que demorou a ser colocada à disposição para todos os trabalhadores.
O batalhão de transporte passou a ser uma peça vital para a fábrica que começava a produzir veículos no pós-guerra e que carecia de equipamento de transporte interno, lacuna que eles fechavam também. Enquanto isto a fabricação seguia do jeito que dava para fazer.
Mas o esquema de remoção de tropas de ocupação para seus respectivos países levou à retirada deste batalhão de transporte no fim de 1946, ameaçando estabelecer o caos na mobilidade interna da fábrica.
Sem transporte a fábrica pararia. Não havia recursos para compra de equipamento, então da necessidade surgiu uma solução que era para ser temporária, criada por Rudolf Riegel: o Plattenwagen — carro-plataforma, literalmente.
O carro-plataforma era um chassi de longarinas longitudinais apoiado sobre eixos de Fusca, suportando uma plataforma de carga, com um banco para motorista e passageiro colocado sobre o motor traseiro, inicialmente sem proteção contra intempéries. Tinha até indicadores direção tipo bananinhas. Depois este veículo recebeu uma cobertura para motorista e passageiro. Em regra ele trabalhava em conjunto com as empilhadeiras. No Brasil também foram usados veículos semelhantes que já faziam parte das rotinas de fabricação de vários componentes, rotinas estas que eram aplicadas na Alemanha e acabaram sendo introduzidas aqui também.
Eu tinha há muitos anos a foto da Fábrica Anchieta da Volkswagen abaixo, mas num dado momento vi que nela aparecia um dos primeiros Plattenwagen que foram introduzidos nas rotinas de fabricação no Brasil:
Na Fábrica Anchieta surgiram vários Plattenwagens e outros veículos especialmente dedicados a tarefas específicas usando os componentes mecânicos disponíveis e a criatividade do pessoal, como mostram as fotos abaixo:
Com esta descrição mostrei como surgiu o Plattenwagen num cenário de absoluta necessidade de meios de transporte interno da fábrica de Wolfsburg, num período que a própria produção ainda ocorria de uma maneira precária. Mas, os Plattenwagens que vieram para ser uma solução temporária se estabeleceram como ferramentas de trabalho importantes que foram detalhadas nas rotinas de fabricação.
Ben Pon, Plattenwagen e Kombi
Esta história começa no início de 1947, quando o holandês e homem de negócios Ben Pon entrou em contato com os ingleses e a fábrica da Volkswagen. Ele era um tradicional revendedor de carros em seu país. O pai dele já era um comerciante de veículos Ford e Opel e Ben Pon e seu Irmão expandiram os negócios da família.
Ben Pon costumava dizer que se a Segunda Guerra Mundial não tivesse eclodido e a fábrica tivesse seguido os planos de produção, já em 1939 ele teria vendido estes carros na Holanda.
Como foi dito acima, no início de 1947, ele conduziu conversas com os ingleses em Wolfsburg, e nesta ocasião ele aproveitou para visitar a produção. Quando ele viu um Plattenwagen em ação. imediatamente ficou impressionado com as suas qualidades.
De volta à Holanda, ele se esforçou em obter, junto às autoridades holandesas, a liberação de tráfego para aquele veículo primitivo, porém muito prático sob seu ponto de vista.
Ele estava convencido de que este veículo de transporte era exatamente o que uma Holanda fortemente afetada pela guerra precisava, pelo menos até que outros veículos mais adequados estivessem à disposição em volume suficiente. Mas as autoridades holandesas negaram definitivamente a liberação para o tráfego daquela construção especial de Wolfsburg. Especialmente por razões de segurança, em que o motorista de um veículo de transporte deve estar à frente da carga, pois de outra forma esta poderia obstruir a visão do motorista, uma decisão sensata.
No entanto, Ben Pon não desistiu de suas ideias quanto a um veículo de transporte que ele pudesse oferecer a seus clientes.
Em 23 de abril de 1947 Pon esteve novamente com os britânicos, desta vez na sede em Minden, negociando inicialmente com o coronel Radclyffe a exportação de Volkswagens para a Holanda. Os britânicos tinham que conseguir mercados para vender Fuscas e levantar recursos. A ideia era deixar a fábrica o mais autossuficiente possível quando as forças de ocupação voltassem para as suas bases.
O mapa abaixo mostra a posição relativa da Holanda de Ben Pon e a Alemanha. Entre Wolfsburg, A e Minden, B, no mapa, a distância rodoviária é de 160 quilômetros. Minden era onde ficava o Quartel-General das Forças de Ocupação Britânicas.
Mas, naquele tempo, o mundo era diferente e esta era a distribuição das forças de ocupação na Alemanha. Em azul a área sob comando dos britânicos que englobava Wolfsburg que ficava quase na fronteira com a zona de ocupação soviética, a 40 quilômetros.
A conversa tratou também de um veículo de transporte leve, para o qual agora Ben Pon tinha ajustado as características construtivas às exigências das autoridades de trânsito holandesas. Com base no conhecimento que ele tinha dos veículos Volkswagen, em especial do Plattenwagen, ele fez um croqui em sua agenda invertendo a posição do motorista do Plattenwagen, transladando o banco para a frente do veículo, o motorista sentado sobre o eixo dianteiro. Uma linha envolvendo o conjunto formou o esboço da carroceria. Pode-se dizer que foi uma adaptação lógica do Plattenwagen para as condições de um veículo que pudesse trafegar pelas via públicas com segurança, e, no caso, até com uma cobertura. Foi algo do tipo: “É algo assim que eu preciso para oferecer a meus clientes”.
Com essa sugestão para a Volkswagen, Ben Pon “acabou se apoderando”, sem saber, da patente de Ferdinand Porsche para um pequeno veículo de transporte baseado em componentes Volkswagen, homologada pelo Registro Suíço de Patentes em 15 de fevereiro de 1941 sob o número 213531 classe 126b, como citado anteriormente na minha matéria Revelação: Ferdinand Porsche patenteou a Kombi .
Nada se sabe sobre a ocorrência de um conflito de interesses entre a empresa Porsche (detentora da patente), a Volkswagen e Ben Pon. Pode ter sido assim porque a esta altura na empresa Porsche também havia problemas.
Talvez o foco da empresa Porsche tivesse sido, em primeiro lugar, a sobrevivência do seu escritório de design, e talvez, em segundo lugar, a produção de um carro esportivo baseado no Volkswagen, e que usava componentes deste devidamente elevados ao padrão Porsche, o que de fato acabou acontecendo em 1948 com Tipo 356/1.
Mesmo que as partes lembrassem da “Patente da Kombi de Porsche”, não parecia oportuno, portanto, arranjar um assunto “explosivo” que pudesse atrapalhar quaisquer perspectivas futuras de cooperação da empresa Porsche com a fábrica da Volkswagen e com Ben Pon, que era revendedor Volkswagen e Porsche na Holanda, e que além disso iniciou a exportação de Volkswagens para os Estados Unidos.
A solicitação de um veículo de transporte leve que Ben Pon fez à Volkswagen acabou por agilizar o desenvolvimento da Kombi, mesmo porque a proposta dele chegou exatamente quando fabricantes concorrentes estavam tratando de projetos semelhantes. O que mostrava que não somente havia um grande mercado carente de tais veículos, mas, também, que a solicitação estava vindo no tempo certo.
Em 1949, quando a Kombi ainda não estava pronta, já havia concorrentes com seus novos projetos no mercado. Como foi o caso da perua DKW F89 L, que tinha motor dianteiro deixando o acesso livre ao salão pela porta traseira sem o obstáculo do motor como no caso da Kombi.
Outro concorrente que apareceu antes da Kombi foi o Tempo Matador, entre 1949 e 1952. Utilizava o motor VW arrefecido a ar com transeixo ZF, dianteiros. Mas logo que a produção da Kombi da VW se firmou o fornecimento de motores para a Tempo foi cortado e a Tempo teve que procurar outro motor.
Assim como em toda a Europa, na Alemanha muitos transportes ainda eram feitos por carroça puxada a cavalo ou pelos famosos triciclos motorizados da Tempo, da Goliath e de outros fabricantes, cujos projetos eram da década de 1930, que, portanto, já não satisfaziam o mercado do pós-guerra. Com isto havia uma grande carência por veículos leves de quatro rodas para transporte, mercado que a Kombi da VW iria disputar.
O projeto da Kombi toma corpo
A evolução do projeto da Kombi depois do primeiro contato de Ben Pon em 1947 seguiu um ritmo ditado pela evolução da Volkswagen em direção à sua devolução para a Alemanha Ocidental pelos Aliados, o que ocorreu finalmente em 6 de setembro de 1949.
Antes disto. a entrada de Heinrich Nordhoff na VW em 1º de janeiro de 1948 e a evolução do setor de projeto de carros especiais (Sonderwagenbau) com pessoas que vieram do ramo de transporte (em parte da Opel empresa onde Nordhoff trabalhou até a guerra começar) favoreceram a concretização do projeto da Kombi. Para Nordhoff esse projeto era “seu”, ele o tratou com prioridade absoluta, tanto que ela saiu em tempo recorde.
Finalmente a primeira Kombi — na verdade um furgão — foi fabricada no dia 8 de março de 1950, iniciando uma carreira vencedora que só iria terminar, em termos de fabricação, em 18 de dezembro de 2013 — no Brasil, seu último reduto, mas ela permanecerá “viva” enquanto existirem colecionadores e apaixonados por ela lutando por sua preservação.
Durante o lançamento da Kombi para a imprensa Nordhoff não citou nenhuma vez o nome de Ben Pon, tampouco de Porsche — afinal, era “seu projeto”, como vimos antes. Ben Pon era um comerciante que procurava um veículo de transporte leve para atender à sua clientela e lucrar com isso e simplesmente explicitou o que necessitava. Atribuir a ele a “invenção” da Kombi é, à luz da história real da Kombi, algo que se distancia da realidade.
Fato é que muitos contribuíram para o surgimento da VW Kombi, e neste contexto eu repito que não fora a Segunda Guerra Mundial, Porsche teria tido o tempo para tocar adiante as suas ideias, que foram até patenteadas, e teria chegado a um veículo de transporte tão bom ou até melhor que a Kombi, que acabou por ser produzida.
Independente disto, a “Velha Senhora”, como a Kombi é carinhosamente chamada, continua a despertar paixões no mundo todo!
AG
Os seguintes livros foram consultados:
-Der VW Bulli – Die Transporter-Legende für Leute und Lasten
O VW Bulli (apelido da T1) – A lenda das vans – para pessoas e cargas
Bernd Wiersch (Tenho um exemplar autografado pelo autor)
-Die Käfer-Chronik – Die Geschichte einer Autolegende
A crônica do Fusca – A história de uma lenda automotiva
Bernd Wiersh (Também tenho um exemplar autografado pelo autor)
-Der Käfer – Ferdinand Porsche und die Entwicklung des Volkswagens
O Fusca – Ferdinand Porsche e a evolução do Volkswagen
Chris Barber
-VW Transporter and Microbus
Vincent Molenaar & Alexander Prinz (Participei deste livro com o envio de fotos de Kombis brasileiras)
-Volkswagen Beetle – The rise from the ashes of war
VW Fusca – A ascensão das cinzas da guerra
Simon Parkinson
-Changing Lanes under British Command – The transformation of a Factory into a commercial enterprise 1945-1949
Mudando de pista sob o comando britânico – a transformação de uma fábrica em uma empresa comercial 1945-1949
Markus Lupa
Também foram feitas consultas na Internet, em especial na Wikipédia. O trabalho de compilação e redação deste trabalho segue o que havia sido feito no preparo da minha palestra KOMBI – Sua Real Origem que tive a oportunidade de proferir em várias ocasiões.
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