Este assunto é citado nos livros geralmente de uma maneira superficial e agora vou desvendar a história desta primeira tentativa de Ferdinand Porsche de materializar seu sonho de um carro popular, de um Volkswagen.
Tive acesso a uma interessante documentação da empresa Zündapp, cujas operações começaram na década de 1930 na cidade alemã de Nuremberg, no norte do estado da Bavária.
Esta documentação traz muitos desenhos, dados técnicos e fotos deste protótipo e inclui uma reportagem do jornal Nürenberger Nachrichten de 18 de fevereiro de 1984, trazendo a matéria de Ralf Borchard com a entrevista de uma testemunha ocular dos acontecimentos ligados ao protótipo da Zündapp, o engenheiro Hans Hoffmann (estava com 76 anos quando da entrevista). Ele trabalhava no departamento de testes e havia sido destacado para este projeto em 1932.
A documentação em tela foi disponibilizada pela entidade Museus da Cidade de Nuremberg, em especial pelo Museu da Cultura da Indústria e foi coligida por Matthias Murko.
A Zündapp e o Volkswagen
Nota de esclarecimento importante: o nome “Volkswagen” aqui se refere ao substantivo em alemão que quer dizer “carro do povo”, e nada tem a ver com o depois criado carro e empresa que adotaram este nome como marca. Lembrando que os substantivos em alemão se escrevem com inicial maiúscula.
Segundo a cultura da empresa Zündapp o termo “Volkswagen” foi usado pela primeira vez pelo Conselheiro Privado Dr. Ing. h.c. Fritz Neumeyer, nascido em 1875 e fundador da Fábrica Zündapp em 1931 (então ainda em Nuremberg — depois, já na década de 1950, a empresa deslocou grande parte de suas operações para a cidade de Munique).
Neumeyer já havia abraçado intensamente a ideia da produção de automóveis num estágio muito precoce no desenvolvimento de suas empresas bávaras. Em 1924 ele quis construir o pequeno carro inglês Rover sob licença em Munique, no bairro Freimann, já pensando na época que o caminho para o “Zündapp carro pequeno para todos” tinha que através da motocicleta “Zündapp para todos”. Todavia, grande inflação impediu a realização deste projeto na época.
Entre 1931 e 1932, Ferdinand Porsche desenvolveu seu projeto chamado Tipo 12, um carro pequeno com chassi de tubo central e motor traseiro. A Zündapp demonstrou interesse e encomendou à Porsche a construção de três veículos de teste. Estes protótipos, de acordo com o projeto original da Porsche, já tinham a forma arredondada inconfundível que mais tarde moldaria a silhueta do futuro Volkswagen.
Hans Hoffmann, que tinha então 24 anos de idade, lembrou: “O trabalho com os protótipos Tipo 12 foi realizado em um galpão especialmente equipado. O público sabia do projeto, mas a Zündapp manteve os resultados tão secretos quanto possível”.
A ideia de construir um carro pequeno além das motocicletas partiu do fundador e então chefe da fábrica Zündapp, Fritz Neumeyer. Um “carro pequeno de qualidade e barato” deveria entrar em produção, como foi chamado em um comunicado à imprensa em maio de 1931. Neumeyer até queria interromper a produção de motocicletas e peças de reposição temporariamente para converter e expandir a fábrica de acordo.
Os planos de construção do Dr. Porsche, de Stuttgart, combinavam exatamente com os planos vislumbrados por Neumeyer. Em setembro de 1931, os dois engenheiros assinaram um contrato, e a construção de três carros de teste começou.
Abaixo segue a evolução dos planos de construção de Porsche que, como veremos adiante, foram um pouco alterados pelos engenheiros da Zündapp.
Finalmente o último croquis para a Zündapp, já com os cuidados do pessoal da aerodinâmica; com o para-brisas inclinado, faróis carenados, e vários bordos de ataque com o ar arredondados:
Estes desenhos mostram o longo caminho que foi percorrido até que, anos depois, se chegou à forma do VW Beetle que nós conhecemos tão bem.
No entanto, a Zündapp queria um capô dianteiro modelado imitando a presença de um radiador como em muitos carros daquela época, de modo que a forma típica do Besouro, como previsto nos desenhos acima, acabou não sendo implementada no protótipo Zündapp. No entanto, isso resultou em um compartimento de bagagem maior. Seguem-se os desenhos alterados conforme o desejo da Zündapp, mas que resultou em algo meio esquisito:
Veremos os detalhes técnicos deste carro mais adiante.
“Montamos o chassi, a transmissão e o motor em Nuremberg de acordo com os planos de Porsche”, disse Hans Hoffmann. “Eu estava exclusivamente ocupado com este objeto de teste”. Porsche já queria construir este carro com um motor boxer de quatro cilindros arrefecido a ar naquela época. Aqui, os técnicos da Zündapp fizeram avançar seus próprios planos: um motor radial de cinco cilindros, de quatro tempos, arrefecido a água que produzia 26 cv a 3.200 rpm acabou sendo usado nos carros de teste.
Com quatro ocupantes, o carro não deveria consumir mais que 8 litros por 100 quilômetros (ou 12,5 quilômetros por litro) a uma velocidade de 60 quilômetros por hora.
As peças individuais fabricadas em Nuremberg tiveram que percorrer um longo caminho antes do primeiro teste de rodagem: a carroceria do sedã de duas portas foi construída pela Porsche em Stuttgart. O motor, o chassi e a transmissão foram levados para lá. Os técnicos da Porsche montaram o carro, que então retornou a Nuremberg de trem (157 km por ferrovia). As últimas peças individuais completaram o veículo. Finalmente, Neumeyer pôde fazer pessoalmente o primeiro teste em um “Volkswagen”, como ele e o Dr. Porsche já chamavam o carro, no depósito em Schwainau.
É claro que Hans Hoffmann havia testado o motor várias vezes no dinamômetro com um colega do setor de desenvolvimento, mas na prática a teoria é outra…
As expectativas que Fritz Neumeyer colocara no “carro pequeno de qualidade” não foram atendidas. O motor radial revelou ser um projeto defeituoso. Hans Hoffmann explica os motivos: “O carburador alimentava os cinco cilindros de maneira muito irregular por meio de um duto em anel, o primeiro cilindro recebia quase todo o combustível, o último nada.”
Além disso, o motor inclinado na parte traseira do carro ocupava muito espaço do interior de quatro lugares.
Os testes com os carros experimentais foram decepcionantes. Os motores radiais instalados na parte traseira, longe da corrente de ar natural de arrefecimento proveniente do movimento do carro, ficavam tão quentes após apenas alguns quilômetros até mesmo o óleo começava a ferver — o arrefecimento era insuficiente. Esta e várias outras falhas poderiam ter sido remediadas com relativamente pouco investimento, No entanto, o Volkswagen da Zündapp nunca entrou em produção em série.
Após cerca de um ano de trabalho de desenvolvimento, Fritz Neumeyer percebeu que o projeto iria além de suas possibilidades financeiras. Ele desistiu da colaboração com Ferdinand Porsche e retornou seu foco para as motocicletas que eram, desde o início, a razão de ser da empresa Zündapp. Note-se que nenhum dos três protótipos sobreviveu à II Guerra Mundial.
Alguns detalhes técnicos do protótipo Zündapp
Já vimos os desenhos de conjunto do carro e do motor, câmbio e radiador de água. Agora vamos detalhar outros componentes, iniciando pelo chassi:
Passando do desenho para a realidade duas fotos deste chassi:
Abaixo o detalhamento da suspensão traseira independente e com braços oscilantes:
Agora algumas fotos de 1932 de um protótipo tiradas no pátio interno da vila da família Porsche (aliás um cenário de muitas fotos e filmes históricos ligados ao trabalho de Porsche — na época era a sede de sua empresa):
Completando as informações sobre o protótipo Zündapp segue uma tabela com seus dados técnicos:
Dados técnicos do Tipo 12 – Zündapp | |
Motor | Radial |
Número de cilindros | 5 |
Diâmetro do cilindro | 70 mm |
Curso do pistão | 62 mm |
Taxa de compressão | 5,3: 1 |
Cilindrada | 1.193 cm³ |
Rotações por minuto – normal | 3.030 rpm a 60 km/h 3ª (direta) |
Potência máxima | 26 cv a 3.600 rpm |
Posição do ventilador | vertical |
Acionamento do disco de comando de válvulas | por engrenagens |
Mancais do virabrequim | 2 |
Material dos pistões | liga leve |
Pinos dos pistões | flutuantes |
Filtro de óleo | Elektron |
Ignição | por bateria, Sistema Bosch |
Ordem de ignição | 1 , 3 , 5, 2 , 4 |
Motor de arranque | Dínamo e motor de arranque combinados Bosch acoplado à ponta do virabrequim |
Dínamo | Dínamo e motor de arranque combinados Bosch |
Bateria | 6 D F 4 g |
Carburador | horizontal (Zenith) Tipo 26 |
Filtro de ar | Elektron |
Alimentação de combustível | por gravidade |
Arrefecimento | bomba d’água |
Embreagem | embreagem monodisco em banho de óleo |
Câmbio | Engrenagens cilíndricas, 3ª direta |
Marchas | 4 marchas à frente e 1 à ré |
Relações das marchas | 3,14:1, 1,74:1, 1,00:1, 0,85:1 |
Velocidade máxima | aprox. 80 km/h |
Transferência de torque | através da escora do eixo traseiro |
Acionamento do eixo traseiro | coroa e pinhão |
Relação do eixo motriz | 6:1 |
Eixo dianteiro | Eixo oscilante, construção especial |
Direção | Direção por sem-fim, construção especial ajustável e com mola |
Posição do volante | à esquerda |
Molas (feixe de molas) | 1 feixe transversal na frente e na traseira respectivamente |
Lubrificação | Tecalemit |
Freio nas quatro rodas | Por cabos ou hidráulico |
Tipo de freio das rodas | Sapatas internas ou correias internas |
Freio de pé atua nas | 4 rodas |
Freio de mão atua nas | 2 rodas traseiras |
Rodas | Rodas de chapa, diâmetro do círculo do parafuso de 130 mm, 4 parafusos, off-set de 36,5 mm |
Pneus | 4,00×18 |
Bitola | dianteira 1.200 mm, traseira 1.200 mm |
Distância entre eixos | 2.500 mm |
Comprimento total | 3.330 mm |
Maior largura do chassi | 1.380 mm |
Maior largura do veículo | (cabriolé) 1.420 mm |
Maior altura do veículo | (cabriolé) 1.500 mm |
Distância ao solo | 200 mm |
Peso do chassi | 340 kg |
Lugares | 4 |
Peso do carro vazio – total | 600 kg |
Peso do carro vazio – frente | 200 kg |
Peso do carro vazio – traseira | 400 kg |
Peso do carro com 4 pessoas | total: 900 kg; frente: 300 kg; traseira: 600 kg |
E o sonho de Porsche não parou por aí
Quando o Fritz Neumeyer da Zündapp desistiu de fabricar o “seu Carro do Povo”, Porsche iniciou o contato com outro fabricante de motos, a NSU, e apresentou o seu projeto do Tipo 12 e disto resultaram protótipos que seguiram o projeto original, sem criar, por exemplo, um capô falso. Como mostra a foto abaixo de um protótipo com carroceria de madeira revestida com couro:
Esta tentativa também não deu certo, igualmente por falta de recursos financeiros, mas esta história vai ficar para uma outra vez.
Fato é que Porsche não desistiu e acabou realizando o seu projeto de um Carro Para o Povo contando com os recursos do governo Nacional-Socialista da Alemanha. Desta epopeia toda resultou o VW Beetle que acabou dominando o mundo.
AG
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