O carro flex. que pode funcionar com gasolina, álcool ou mistura dos dois combustíveis em qualquer proporção, no mesmo tanque do veículo, surgiu nos Estados Unidos, em 1996 e no Brasil, em 2003. Nos dois casos, o álcool tem por objetivo ser uma alternativa à gasolina. Só que a similaridade de objetivos termina aqui.
Nos EUA foi uma questão de segurança nacional. Lá o derivado do petróleo dominante é a gasolina, e para produzi-la o petróleo era, em grande parte, importado do Oriente Médio, região sabidamente instável politicamente, e sujeito ao humor dos dirigentes dos países exportadores de petróleo, capazes de a qualquer momento embargar o fornecimento do precioso líquido., como ocorreu em 1980.
Para piorar, a dependência desse petróleo vinha crescendo e já havia chegado a 60% das necessidades do país.
A solução mais viável naquele quadro era encontrar uma alternativa à gasolina, começando pelo álcool metílico, ou metanol, logo passando ao álcool etílico, ou etanol, devido à toxidade daquele. Como os EUA são grandes produtores de milho, poderia ser produzida substancial quantidade de álcool etílico em relativamente pouco tempo.
Um acordo com os produtores de milho do Meio-Oeste foi feito, foi criada a Coalizão Americana para o Etanol (American Coalition for Ethanol),, incentivos foram criados, estava resolvido o problema. Boa parte da frota de automóveis e picapes teria álcool para rodar, desse modo atingindo o objetivo de importar menos petróleo do Oriente Médio. Para isso a indústria automobilística americana se prontificou a produzir, sem nenhuma dificuldade, motores que funcionassem com álcool em vez de gasolina.
Mas…
E se o consumidor não encontrasse álcool nos postos da sua região? Simples, era só criar o automóvel que tivesse a flexibilidade de poder funcionar tanto com álcool quanto com gasolina, e nenhum motorista ficaria privado de usar seu carro caso não pudesse abastecê-lo com álcool. Um verdadeiro Ovo de Colombo. Assim foi que em 1996 chegava ao mercado americano o Ford Taurus flex fuel (foto de abertura), logo seguido de outros modelos e marcas.
Como a conhecida dificuldade de evaporação do álcool etílico comparado com a gasolina (calor latente de evaporação pelo menos 80% mais alto) implicaria dificuldade ou mesmo impossibilidade de partida do motor em baixas temperaturas ambientes, a indústria automobilística logo concluiu que misturando o álcool com 15% de gasolina não haveria esse problema. Ficou então definido pelo governo que o álcool anidro (anhydrous ethanol) conteria 15% da gasolina, oficializando-se o combustível E85, o combustível ara veículos automotores flexíveis.
Ambas soluções brilhantes diante de uma necessidade específica, o carro flex e o álcool com 15% de gasolina.
E no Brasil?
No governo Ernesto Geisel foi criado, em 1975, o Programa Nacional do Álcool (Proálcool), destinado a movimentar carros com motores á álcool, que logo surgiram em 1979, primeiro o Fiat 147 1300 e logo em seguida o Passat 1500.
O motivo da criação do Proálcool não foi ameaça à segurança nacional, como nos EUA, mas financeiro. Em 1973 o países exportadores de petróleo elevaram brutalmente o preço do barril (159 litros), que em três meses passou de 2 dólares para 12 dólares, nada menos que 500%. Na época o Brasil só produzia 20% do petróleo que necessitava e o maior gasto com importação de petróleo pesaria muito nas contas externas,
Para resolver, o Proálcool, que incluiu estímulos fiscais para a indústria sucroalcooleira. Só que o derivado de petróleo dominante aqui era o diesel, por conta do nosso perfil de transporte de carga e de passageiros ser a diesel, no que a gasolina era excedente fazia tempo (não se podia produzir apenas diesel, a produção de gasolina ocorre mesmo que não se quisesse).
Deixar de importar petróleo para reduzir o gasto com importação de petróleo, nem pensar, pois o país literalmente pararia; a importação de petróleo teve que continuar. Ao mesmo tempo, o governo, pelo Conselho Nacional do Petróleo, limitou o uso dos automóveis proibindo a venda de gasolina nos postos das 20h00 às 6h00 nos dia úteis e dia todo nos fins de semana. Se a gasolina já era excedente, com o menor uso dos automóveis é fácil deduzir que o volume desse excedente aumentou.
Chegamos então ao absurdo de criar um combustível alternativo a outro que era excedente e provocar uma disruptura na indústria automobilística, que precisou incluir o carro a álcool no seu mix de produção. Isso sem contar os problemas iniciais desses carros, como dificuldade de partida a frio em temperatura ambiente inferior a 18 ºC e ataque químico a determinadas ligas de alumínio usadas nos carburadores e bombas de combustível.
Mas tudo isso foi resolvido em relativamente pouco tempo e o carro a álcool se tornou uma realidade, passando a ser maioria. O Escort XR3 passou a ser disponível apenas com motor a álcool, por exemplo. Em 1988 87% dos licenciamentos de automóveis chegou a ser de carros a álcool (Fonte: Anfavea)
Ia tudo muito bem, mas…
Além da gasolina excelente,, que se dizia exportada para compensar o gasto com importação de petróleo, no último trimestre de 1988 — coincidentemente quando o Proálcool foi extinto — aconteceu o inesperado: faltou álcool em várias regiões do país. Desnecessário dizer o problema que isso criou.
A falta não foi da cana-de-açúcar, mas a indústria sucroalcooleira ter alternado a produção para açúcar, commodity que passou a valer mais do que álcool nos mercados de exportação.
Com isso a produção de carros a gasolina começou a aumentar — falta de confiança é algo sério — e, para piorar, o preço internacional do petróleo iniciou vertiginosa queda, tornando o álcool inviável do ponto de vista custo por quilômetro comparado com o a gasolina. Foi comum proprietários fazerem conversão de seus carros a álcool para gasolina.
O carro a álcool praticamente saiu de cena. Em 2003 foram licenciados 33.034 carros a álcool ante 1.046.474 a gasolina (fonte: Anfavea), irrisórios 3,1 %. E, muito importante, não porque o carro a álcool, fosse ruim, pelo contrário.
Veio a solução…. para a indústria sucroalcooleira
Ela se chama carro flex. Uma vergonha. Em vez de essa indústria vir a público e garantir que nunca mais faltaria álcool, que o consumidor teria segurança para voltar a comprar carros a álcool, ela incentivou a indústria a produzir o carro flexível em combustível.
Seria falsidade essa afirmação, embora intuitiva, não fosse a União da Agroindústria Canavieira do Estado de São Paulo (UNICA) ter coassinado o anúncio, na mídia impressa, do lançamento do Gol 1,6 Total Flex em 20 de março de 2003, dia em que fabricante alemã completou 50 anos de fundação da sua filial brasileira.
“Carro a álcool não dá mais, o consumidor brasileiro não confia mais no álcool. O negócio é a indústria automobilística daqui fazer como os Estados Unidos, o carro flex, assim o consumidor brasileiro não ficará impedido de abastecer seu carro caso falte álcool. Com isso passaremos produzir e vender álcool como no velhos tempos.”
A citação acima é minha imaginação para representar a ideia do carro flex no Brasil. A quem mais ele interessaria? À indústria automobilística local é que não, para ela tanto faz produzir carro a gasolina ou flex. Até pelo contrário, só complica e leva a maiores gastos com desenvolvimento de motores e com homologação de versões a álcool.
O resultado disso tudo é o carro flex ter sepultado a ideia do carro só a álcool, que seria imbatível em potência e consumo (a indústria automobilística sabe disso). E se o carro à álcool já foi aceito e aprovado pelo consumidor brasileiro na década de 1980 e parte da de 1990, com as novas tecnologias como injeção direta e turbocarregamento, seria ainda mais apreciado. E a tecnologia poderia perfeitamente incluir uma estratégia no módulo de gerenciamento do motor que o permitisse funcionar com gasolina, com menos potência, é evidente, mas sem ocasionar qualquer dano ao motor.
Com motores de combustível único seria possível otimizá-los para essa combustível, o que não acontece hoje, Motores a gasolina poderiam ficar com taxa de compressão mais adequada, como 11:1 a 11,5:1, e os a álcool, com 14:1 a 15:1, aproveitando melhor a energia do álcool sem preocupação com detonação.
Quando na Autoesporte testei um Omega GLS 2-litros a álcool com gasolina e o carro rodou muito bem, embora não fosse previsto para isso. Ele já tinha o novíssimo gerenciamento de motor Bosch Motronic, então a estratégica citada acima é perfeitamente viável.
Duas vantagens
As duas vantagens do carro flex são seu caráter “gersonflex”, termo que cunhei quando o Gol Total Flex foi lançado, alusivo ao famoso jogador de futebol Gerson de Oliveira Nunes, que protagonizava o anúncio do cigarro Vila Rica dizendo “Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Por isso fumo Vila Rica. O “gersonflex” permite escolher o combustível que resulte em menor custo por quilômetro. Além disso, no caso o frentista erre o combustível fornecido nada de mal acontecerá, pois ao contrário do carro “inflex” o flex continua rodando normalmente. E só.
BS