Como sempre foi, o mercado brasileiro de automóveis é uma montanha russa, cheio de “sobe e desce”. Tudo depende de como a economia caminha. Lá pelos idos de 1964, logo que o governo militar assumiu o comando do país, e em meio à crise político-financeira que perdurava em seguida à renúncia do presidente Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961, as vendas de nossa indústria de carros despencaram, e a ajuda do governo federal era fundamental para que se mantivesse a produção das fábricas de automóveis e, principalmente, os empregos
Nesse mesmo ano, mais para o final, foi criado um programa para acelerar as vendas de nossos carros, e o governo federal da época destinou uma verba, através da Caixa Econômica Federal, com subsídios nos juros e correção monetária, para que a população adquirisse carros 0-km. Mas havia um senão neste programa: Os tais carros deveriam ser absolutamente básicos, a indústria automobilística faria a sua parte criando veículos bem mais baratos, ideais para entrarem no programa do governo.
Assim, todas as marcas que tinham operação industrial no Brasil se apressaram para criar verdadeiros monstrengos, carros de sua linha de produção normal subtraídos de tudo aquilo que pudesse gerar custo e fosse dispensável para que o carro andasse. Opções de cores? Normalmente duas ou três, e sempre aquelas com a tinta mais barata possível. Frisos e detalhes estéticos? Nenhum, pois eles só serviam de enfeite, assim como os cromados, que eram puro luxo dispensável.
Por dentro, a mesma receita: Revestimento de bancos? Só aqueles que permitiam à motorista e passageiros se sentarem, sem conforto. O mesmo pode ser dito de outros detalhes como tampa de porta-luvas, instrumentos de bordo adicionais, acabamentos internos, forração de porta-malas, de teto, entre outros. Tudo era luxo, então tudo caía fora. Essas alterações fizeram do Fusca 1200, DKW-Vemag Vemaguet, Simca Chambord e Renault Gordini carros horrorosos, batizados com nomes ainda piores: Pé-de-Boi, Pracinha, Profissional e Teimoso, respectivamente.
A proposta era a de que o indivíduo comprasse o tal modelo básico (ou praticamente incompleto) com o incentivo do governo, e aos poucos fosse comprando o que faltava. No final, depois de um tempo e mais dinheiro gasto com equipamentos, tinha-se o modelo comum, “completo”. Claro que até nos dias atuais, ninguém se interessa em comprar um carro pelado e feio, em que pese o fato de ele ser 0-km.
Apesar dos subsídios nos juros e no longo prazo de pagamento (48 meses) dado pela Caixa Econômica Federal, poucos foram os consumidores que se interessaram em adquirir esses carros baratos e completamente despojados. Se o objetivo do programa era fomentar a venda de carros 0-km, isso de fato não aconteceu. Pelo menos não do jeito esperado.
Devemos lembrar que os carros não são apenas um meio de locomoção, mas também um status em nossa sociedade. Aqueles que compravam um automóvel destes pelado por questões de economia, estavam dando à sociedade e a si próprio uma espécie de “atestado de pobreza”. Ninguém queria ser apontado na rua como aquele que só teve dinheiro pra comprar o carro que faltavam peças. O consumidor da época preferia adquirir um carro usado com alguns anos, mas completo, bonito e com cromados.
Fusca Pé-de-Boi
O besouro da VW perdia frisos, cromados, emblemas, e era oferecido em duas cores (cinza claro e azul claro, sempre com pintura sólida). Nos para-choques, apenas a lâmina pintada de branco, sem os complementos garras e tubos que eram tradicionais. As calotas existiam, mas também eram brancas, assim como os aros dos faróis. Dentro da cabine, as laterais das portas eram simples chapas de Eucatex, com o trinco e o levantador manual do vidro, e os bancos eram o que havia de mais simples, sem qualquer conformação que acomodasse dignamente os ocupantes. Tudo no formato “menos é mais”.
A instrumentação consistia apenas no velocímetro. Marcador de combustível? Também foi retirado, voltando o sistema de torneira de gasolina localizada na parede que divide o habitáculo do porta-malas, operada com o pé direito, utilizado no Fusca nacional até 1960. Eram três posições, aberto, fechado e reserva, esta correspondente a 5 litros, o suficiente para rodar cerca de 50 quilômetros e encontrar um posto.
Não havia Indicadores de direção, as famosas setas semafóricas na coluna central ou piscas Se fosse virar à direita ou esquerda, a indicação era feita com a mão pelo próprio motorista. Ele foi, inclusive, o carro de uso civil mais despojado já fabricado pela VW em toda sua história mundial. Uma temeridade!
DKW-Vemag Pracinha
O DKW-Vemag era oferecido apenas na versão perua, batizada de Pracinha, pois dessa forma se economizavam as portas traseiras do modelo sedã. Aparentemente, o carro não era tão despojado quanto o Fusca, pois já contava com retrovisor externo, os para-choques eram pintados na cor da carroceria, e as calotas tinham uma discutível cor preta. Mas no interior, os bancos já tinham molas, as laterais de porta eram de melhor acabamento e por aí vai. Havia também duas opções de cores: bege e azul claro.
A Pracinha, nome que se referia aos táxis, ou “carros de praça”, pecava em aspectos técnicos: Do modelo comum eram retirados a roda-livre (que permitia que o veículo se comportasse como se estivesse em ponto-morto nas desacelerações, para economizar combustível), e também a bomba dosadora Lubrimat, que enviava óleo armazenado num pequeno reservatório para o carburador, de forma automática, onde ocorria a mistura com a gasolina em proporção de 40:1 a 100:1, dependendo da rotação e da aceleração — motores dois-tempos, como era o do DKW, não têm circulação de óleo, o princípio da lubrificação é o da perda total.
Sem esses itens, o carro perdia muito de suas qualidades técnicas, e ainda obrigava ao motorista abastecer com gasolina e óleo em uma proporção correta (40 partes de gasolina para 1 parte de óleo), sob o risco de seu motor se danificar caso houvesse erro nos cálculos dos litros de combustível para a quantidade de lubrificante. Era um trabalho que deveria ser feito pelo próprio motorista a cada reabastecimento.
Simca Profissional
Dos modelos simplificados oferecidos em nosso mercado, o Simca Profissional foi o menos afetado. Mesmo assim, possuía pontos esteticamente discutíveis, como os detalhes cromados que se tornavam cinzas ou pretos, dando um aspecto pesado ao design do carro. Por dentro, chamava a atenção os bancos inteiriços revestidos com tecido liso, e as forrações de portas feitas em uma espécie de papelão reforçado e pintado.
A versão Profissional, que também se referia aos táxis, já havia sido lançada em 1963, mas com o nome de Alvorada. O propósito era o mesmo: Um carro básico e destinado aos taxistas, mas mantinham-se alguns detalhes cromados pela carroceria, e o interior era mais caprichado, contando inclusive com bancos espumados.
Mas a marca francesa se superou com o Profissional, onde foi retirado até a tampa do porta-luvas, espaço destinado à um rádio, revestimentos internos do porta-malas (que era “na lata”) e outros detalhes julgados desnecessários. Um carro espartano ao extremo.
Renault Teimoso
No Teimoso a Willys “caprichou”. Tirou tudo o que podia tirar do Renault Gordini e até o que não podia. Já imaginaram um carro que, para economizar, não tinha nem as duas lanternas traseiras? Pois no Teimoso era exatamente assim: ee não tinha nenhuma lanterna, apenas uma pequena luz vermelha no centro da saia traseira. Ela servia como iluminação da placa de licença, lanterna de posição e luz de freio (primeira foto do texto).
A luz de seta? Nem o lugar da lâmpada, nem os comandos internos. A sinalização era por conta da mão do motorista, muito inconveniente, principalmente nos dias de chuva e, por que não, perigoso. Da mesma forma, a luz de posição dianteira, ou lanterna, não estava disponível: Ou era o farol aceso, ou nada. Além disso, calotas, polainas dos para-choques, retrovisor externo e qualquer glamour da carroceria também era suprimido. Ao menos existiam três opções de pintura, sendo duas delas “exclusivas” dentro do universo dos carros despojados da época: cinza, preto e marrom.
Por dentro, ainda mais economias, afinal os bancos eram apenas uma armação metálica com almofadas amarradas no assento e encosto, as laterais de porta eram chapas lisas, sem detalhes, o porta-malas também perdia seus acabamentos e ele não possuía nem mesmo o forro de teto. Imaginem o barulho das chuvas fortes caindo no teto do carrinho, e o quanto aquilo esquentava sob o sol. Mais parecia um carro de uso militar, tamanho o nível de despojamento, pobreza de equipamentos e acabamentos ausentes.
Examinando tudo isso, fica fácil entender o motivo do tal programa de incentivos do governo não ter dado certo. Ninguém queria esses carros feios e inacabados, feitos exclusivamente para se adequarem ao programa governamental de incentivo — que ainda assim durou do final de 1964, quase 1965, até o final de 1966.
Mas restou a experiência de que carros de uso civil devem ser, no mínimo, acabados, ou até bonitos e completos. Veículos práticos e unicamente funcionais podem ficar no uso militar, servindo apenas como ferramenta de trabalho, e não como meio de transporte ou lazer. Como a frase do sogro do nosso saudoso amigo Josias Silveira, dita para ele nos anos 60: “Um Jjpe jamais se transformará em um Galaxie”. O “Jipe” é um veículo perfeito ao uso que se destina, e o “Galaxie” é um carro de requinte e luxo. Por isso, um nunca vai se transformar no outro, sendo que cada um guarda suas indiscutíveis qualidades.
DM
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