Existem ícones em todos os campos da cultura mundial, referências no assunto, nomes de destaque. Na nossa literatura, temos Machado de Assis. Na Física, temos Albert Einstein e Stephen Hawking. No rock, os Beatles. No automobilismo, um deles é Enzo Ferrari. Seu nome se confunde com parte da história da Fórmula 1, e porque não dizer, do próprio automóvel.
A história da marca já se transformou em uma espécie de lenda, com Enzo sendo responsável pela criação de uma marca que hoje é símbolo do carro esporte e sucesso financeiro. Muito deste status se deve à adoração quase que fanática dos italianos nacionalistas, que colocaram Ferrari em um pedestal sagrado. Não é à toa que o chamam de o Papa do Norte (Maranello e Modena ficam no norte da Itália).
Muitos conhecem a origem da marca do cavallino rampante. Enzo era um jovem modenense que se associou à Alfa Romeo depois de não conseguir um sonhado emprego na Fiat. Como piloto de corrida, teve um pequeno destaque no meio local que colaborou com que entrasse na Alfa Romeo, e, com o tempo, assumiu a representação da marca nas competições com sua equipe própria, graças ao seu dom de gerenciar negócios e, principalmente, pessoas. Esta característica falava mais alto que sua habilidade ao volante. Isto tudo, bem antes de fabricar automóveis que levariam seu nome.
No começo da história da equipe, Enzo se desdobrava para cuidar dos carros, conseguir suporte da Alfa Romeo para ter peças de reposição, novos modelos que eram projetados e fabricados unicamente na sede da empresa, gerenciar seus pilotos de egos tão grandes quanto suas famas, e ainda por cima, vender modelos de rua da Alfa Romeo como parte do negócio. Eventualmente, pilotava um carro da equipe em corridas.
Talvez o maior desafio fosse conciliar seus pilotos de ponta. Se hoje já não é simples controlar os ímpetos de jovens pilotos que querem ser o melhores, em um mundo totalmente amarrado por regras de conduta, imaginem nos anos 20 e 30 quando o esporte estava ainda querendo sair do amadorismo. Nomes como Tazio Nuvolari, Giuseppe Campari, Louis Chiron e Achille Varzi.
Nuvolari era tido por muitos como o maior piloto de todos os tempos da Itália, e talvez da Europa, dependendo a quem se pergunta. Pilotava como um louco, talvez por não pensar nas consequências de um acidente, que certamente poderia ser fatal na época. Campari estava com Enzo e a Alfa Romeo há tempos. Ele havia iniciado na Alfa como funcionário, testando carros na fábrica. Além de piloto, arriscava tons de cantor de ópera.
A ligação de Enzo com a Alfa era regida pelos altos e baixos da empresa no meio do automobilismo. Em tempos, a marca não apoiava as competições, deixando Ferrari se virar com o que conseguia de projetos passados e carros desatualizados. A ascensão de Mussolini ao poder estava cada vez mais impactando na indústria italiana, pois esta tinha demanda de fornecer equipamentos militares para o governo, cada vez mais.
Enzo tinha um parceiro na equipe Ferrari, criada por ele em 1929. Atuando como presidente da Escuderia desde 1932, Conde Carlo Trossi mantinha uma posição mais figurativa que prática. Enzo tinha total controle do que ocorria na equipe, mas era interessante para Ferrari ter uma pessoa de confiança que pudesse representa-lo em alguns eventos. Era também o ano de nascimento de Dino Ferrari, o primeiro filho de Enzo.
Trossi era um piloto italiano vindo de uma família tradicional bem abastada, levava até o título de conde no nome. Sendo uma pessoa influente, poderia ajudar nos negócios da Ferrari.
O maior objetivo de Enzo eram as corridas de Grande Prêmio, que representavam o ápice do automobilismo europeu. Era o equivalente da Fórmula-1 da época. Além do maior prestigio, os prêmios em dinheiro também eram mais generosos. Isto não excluía provas locais italianas, onde a competição era menos severa e os carros da Escuderia também conseguiam se destacar. As provas de GP já tinham certas regras, como limitação nos motores. Em outras provas, chamadas de Fórmula Libre, eram abertas praticamente a qualquer automóvel. Também as provas de resistência eram notórias pela Itália, como a Mille Miglia, Targa Florio, e a nova prova em Le Mans, na França.
Estava ficando cada vez mais complicado para a Ferrari se manter competitiva com a inconstância do suporte da Alfa Romeo.
ENQUANTO ISSO, NOS ESTADOS UNIDOS
A Europa vivia um crescente destaque nas provas de Grande Prêmio, com competidores de diversos países. Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, o automobilismo também estava em ascensão. Um dos nomes de destaque era a Duesenberg, criada pelos irmãos August e Frederick Duesenberg.
Por alguns anos, os carros da Duesenberg dominaram as 500 Milhas de Indianápolis, dividindo as vitórias com os bólidos de Harry Miller. A sofisticação do Duesenberg era notória, mesmo se fosse comparado com carros europeus.
Em determinado ponto da história, August deixou a empresa após a marca ter sido comprada pela Cord, para se dedicar aos carros de corrida numa divisão chamada Duesenberg Brothers, que ficava do outro lado da rua de frente para a fábrica de carros de passeio. Ele e Fred trabalhavam juntos nos carros de corrida, mas Fred também mantinha-se responsável pelos carros de passeio da marca original, agora sob regência da Cord.
A criação de carros destinados às pistas levou August a trabalhar em parceria com Fred Clemons, um jovem construtor de modelos de competição independente. Clemons forneceu carros de teste para os irmãos Chevrolet e também para Henry Ford, além de fabricar seus próprios motores, geralmente de quatro cilindros.
No fim dos anos 20, as 500 Milhas de Indianápolis eram o centro das atenções do automobilismo norte americano. Fred e August estavam criando alguns carros para a corrida, com base no chassi criado por Duesenberg e com motores Clemons.
Diferente do praticado na Europa, os carros norte americanos para as corridas como as 500 Milhas, eram construídos com carrocerias do tipo monoposto, ou seja, para apenas um ocupante e rodas descobertas. Na Europa, o comum era levar dois ocupantes no carro, piloto e mecânico. Eles montaram sete carros nesta condição, equipados com motor Clemons de quatro cilindros e 1,5-litros.
ALFA ROMEO ENCERRA O SUPORTE À FERRARI
Com as recorrentes cobranças do governo italiano para que a indústria dedicasse cada vez mais recursos para a fabricação de itens militares, a Alfa Romeo já vinha dando sinais de que o programa de competições estava por um fio. Em 1932, o fio rompeu-se. Foi anunciado que a fábrica não mais investiria em automobilismo e o suporte a Enzo Ferrari estava terminado.
Ferrari e Trossi precisavam de uma solução para este desastre. Como uma equipe de competições poderia sobreviver sem carros e peças novos? Reutilizar sempre os mesmos carros significa ficar parado no tempo enquanto os concorrentes evoluem. É um atestado de óbito certo para qualquer equipe.
Cogitaram comprar carros da Maserati, cada vez mais fortes nas pistas da Europa, para conseguirem ser competitivos sem o apoio da Alfa. Não seria uma negociação fácil, uma vez que Maserati e Alfa eram grandes rivais, e por um bom tempo Enzo era sinônimo de Alfa Romeo nas pistas.
Trossi cogitou trazer algum carro de fora da Itália, como uma forma de trazer novidades. Dentre as opções, a MG inglesa foi considerada, mesmo não sendo especialista em carros de Grande Premio, mas seus pequenos carros esporte eram populares na sua terra natal.
Outra possibilidade seria um carro americano. Era sabido no Velho Continente que os americanos estavam fazendo carros muito eficientes para as provas locais de alta velocidade, como Indianápolis. Algumas provas na Europa se assemelhavam ao autódromo das 500 Milhas, como o oval de Monza.
Pelos contatos da alta sociedade que Carlo Trossi dispunha, ele chegou até August Duesenberg, passando por conhecidos da Champion, fabricante de velas de ignição. Os modelos que a Duesenberg Brothers construía eram de interesse de Trossi. Monopostos esguios que poderiam atingir grandes velocidades.
Um dos sete carros feitos em 1927 por Duesenberg e Clemons foi encomendado com um motor de oito cilindros em linha de 4,25-litros. Não era um carro novo, mas era bem moderno se comparado com os rivais europeus.
O Duesenberg-Clemons foi enviado para a Itália e entregue para a Escuderia Ferrari, aos cuidados de Carlo Trossi, quem o pilotaria. O carro foi pintado de vermelho sangue, mesma cor dos Alfa Romeo da equipe, e recebeu o famoso escudo amarelo com o cavalo preto. Foi um dos primeiros carros da Escuderia a levar o brasão da equipe de Enzo Ferrari.
O ACIDENTE DE MONZA
Na época, duas grandes provas eram disputadas no Autódromo Internacional de Monza. A primeira, o Grande Prêmio da Itália, era um evento internacional, com adesão de pilotos e equipes de toda a Europa. Era um dos principais eventos do ano. O segundo, chamado de Grande Prêmio de Monza, era um evento menor, com participação de equipes italianas e alguns poucos estrangeiros.
Em 1933, por conta de obras no circuito, os dois eventos aconteceram no mesmo dia. Na parte da manhã, o GP da Itália foi disputado e vencido por Luigi Fagioli, piloto da Escuderia Ferrari, com um Alfa Romeo Tipo B, derrotando Nuvolari que corria de Maserati.
Na parte da tarde, o GP de Monza seria disputado, apenas no trecho do circuito oval, com suas grandes curvas inclinadas de alta velocidade. A prova tinha o formato de três baterias curtas classificatórias e uma final. Os quatro primeiros de cada bateria formariam o grid de largada da final.
Conde Trossi iria representar a Escuderia Ferrari com seu Duesenberg importado, juntamente com Giuseppe Campari, de Alfa Romeo Tipo B.
Na primeira bateria, o Duesenberg começou bem, avançando para os primeiros lugares, em disputa acirrada com o Bugatti de Stanislas Czaykowski, um rico conde polonês, mas nascido na Holanda. Na oitava volta de um total de quatorze, o motor Clemons não aguentou e quebrou um pistão, rompendo um dos oito cilindros. Stanislas foi o vencedor.
No começo da segunda bateria, composta por pilotos diferentes da primeira, logo na primeira passagem pela curva sul, um grave acidente ocorreu. Campari no Alfa Romeo da Escuderia Ferrari e Mario Borzacchini da Oficina Maserati lideravam a prova quando Campari perdeu o controle ao tentar desviar de uma poça de óleo, supostamente do motor quebrado do Duesenberg de Trossi.
O Alfa Romeo chocou-se contra o muro de proteção do lado de fora da curva, e acabou caindo fora da pista da parte mais alta. Campari morreu instantaneamente pois o carro caiu sobre ele. Borzacchini tentou desviar de Campari e também perdeu o controle de seu 8C3000, também saindo da pista pelo lado de fora. Ele foi arremessado contra as árvores que circulavam a pista, sofrendo diversos ferimentos que o levaram a falecer pouco tempo depois de chegar ao hospital. Seu Maserati quase nada sofreu. Outros carros foram envolvidos, mas sem gravidade.
Muita controvérsia surgiu deste acidente trágico. A poça de óleo que teria causado o acidente havia sido identificada antes da largada, a organização da corrida tentou cobri-la com areia, mas mesmo assim, a largada foi dada.
Algumas pesquisas, muito bem fundamentadas, mostram que o motor do carro de Trossi, mesmo tento perdido um cilindro, não teria derramado tanto óleo na pista, pois o volume restante em seu cárter mostrava que não vazou em grande quantidade, senão estaria praticamente vazio. Não havia nenhuma avaria na parte inferior do bloco que mostrasse algum vazamento de óleo. Possivelmente como não foi observado nenhuma outra justificativa, a culpa recaiu sobre o Duesenberg.
No dia do acidente, o clima estava frio, muito húmido e levemente chuvoso. De modo geral, os carros tinham pequenos vazamentos de óleo, graxa das juntas de suspensão e chassi, bem diferente das modernas formas de vedação de hoje me dia. A tecnologia de pneus da época e as condições do piso do circuito de Monza não eram nada favoráveis para a segurança dos pilotos, e os carros já passavam dos 200 km/h. É bem mais provável que a combinação de todos estes fatores tenha causado o acidente, e não apenas o motor Clemons do Duesenberg.
Trossi nunca mais disputou uma prova com o carro, e acabou vendendo-o para Whitney Straight, um nova-iorquino envolvido no automobilismo europeu de primeira linha e na aviação. Ele também era genro de Woolf Barnato, um dos grandes nomes da Bentley, que já falamos aqui no AE.
Além do fim da linha para o Duesenberg na Escuderia Ferrari, o próprio Conde Trossi deixaria seu posto de presidente da equipe em 1935 para seguir sua vida empreendedora no automobilismo, tentando criar seu próprio carro, o Trossi-Monaco, história que ainda contarem por aqui.
Depois de Whitney, o Duesenberg passou por alguns donos, até chegar ao acervo do Museu de Brooksland, onde reside hoje, pintado de vermelho mas sem o logo da Escuderia Ferrari. Está como disputou suas últimas corridas.
A ideia de importar um carro com excelentes referências dos Estados Unidos, fabricado por quem estava vencendo as 500 Milhas de Indianápolis, soava como um ótimo negócio. Talvez se não fosse pelo trágico desfecho de Monza, o Duesenberg-Clemons poderia ter se tornado um carro vencedor nas mãos de Enzo Ferrari, que na época sofria com os altos e baixos da direção da Alfa Romeo.
Enzo vinha lidando com a morte desde seus primeiros anos no automobilismo, e a perda de Campari foi um de seus grandes baques. Há quem diga que daí em diante, Ferrari começou a se afastar emocionalmente de seus pilotos, pois as perdas eram dolorosas.
MB