Para completar a trinca dos principais modelos do DTM dos anos 90, falamos agora do Mercedes-Benz Classe C. Com a mudança do regulamento da categoria para 1993, os antigos Mercedes 190E Cosworth não eram mais competitivos frente os recém-desenvolvidos Alfa Romeo, cheios de sofisticados sistemas eletrônicos e tração integral.
Historicamente, o Deutsche Tourenwagen Meisterschaft (DTM, campeonato alemão de carros de turismo) foi dominado por três rivais, a Mercedes, BMW e Audi. A Ford teve sua parcela de sucesso no fim dos anos 80 com o Sierra Cosworth, mas os alemães eram maioria indiscutível. A Audi, campeã em 1990 e 1991 com o Quattro V-8, deixou a categoria ao final da temporada de 1992, ano do primeiro título da Mercedes.
Mesmo não sendo campeã até 1992, a Mercedes tinha grande representação no grid das temporadas anteriores, sempre disputando o título até o final. O modelo 190E Evo II equipado com motor Cosworth de quatro cilindros e 2,5-litros era o carro usado pela Daimler-Benz há algumas temporadas, recebendo pequenas atualizações a cada ano para se manter competitiva.
O 190E foi por alguns anos o arquirrival do primeiro BMW M3, geração E30, tanto na rua como nas pistas. Era um carro leve, com motor potente e boa dirigibilidade. Estava já na configuração Evolution 2, ou apenas EVO 2. Era o último Mercedes de corrida de turismo que ainda se assemelhava mais a um carro de rua do que a um protótipo de pista.
A versão mais antiga dele e menos potente (2.3-16v Cosworth) ficou famosa em 1984 quando em seu lançamento, diversos pilotos de F-1 participaram de uma corrida de demonstração no então novo traçado curto de Nürburgring. Quem ganhou foi um tal de Ayrton, que contamos aqui esta história.
No DTM, o EVO 2 ainda era um carro rápido e capaz de vencer corridas, mas já carregava o peso de sua idade. Novos competidores com carros mais recentes já incomodariam o Mercedes, mesmo o EVO 2 tendo um excelente motor de 395 cv girando a quase 10.000 rpm e recursos como câmbio de seis marchas, direção hidráulica e freios servoassistidos, não tão comuns em carros de corrida na época.
TEMPORADA DE 1993, NOVOS RIVAIS
A introdução da regulamentação do chamado Grupo 1 permitiu a participação de carros muito sofisticados, como o Alfa Romeo 155 V6 Ti, o que rapidamente colocou a Mercedes-Benz em um patamar defasado em relação aos italianos.
Talvez por não acreditar muito no potencial da Alfa em criar um carro de corrida que pudesse rivalizar com os alemães dentro de seu próprio campeonato, muitos, Mercedes inclusive, não investiram em um novo carro para 1993. O problema é que a Alfa Corse surpreendeu a todos e levou o título.
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Algo tinha que ser feito, rapidamente, para que 1994 não fosse uma reprise de 1993 e os italianos dominassem a categoria com o 155.
O NOVO CLASSE C W202, DAS RUAS PARA AS PISTAS
Com o lançamento do primeiro Classe C, conhecido como projeto W202, em 1993, a Mercedes tinha uma boa base para a criação de seu novo representante no DTM. Pelo regulamento, o monobloco tinha que ser original de um modelo de fabricação corrente, e o novo W202 se encaixava perfeitamente.
Com a sessão dianteira do carro de rua removida e substituída por um subchassi tubular, o novo modelo de pista teria um alojamento diferenciado para o motor, bem mais baixo e recuado. O motor escolhido por Bernd Ramler, responsável pelos motores de corrida da AMG e Erhard Melcher, engenheiro e um dos criadores da AMG, foi um novo V-6, baseado no V-8 dos carros maiores da marca. Este V-8, conhecido como modelo M119, tinha 4,2 litros de cilindrada e um ângulo entre bancadas de 90°, exatamente como Ramler gostaria.
O motor de corrida, por regulamento, tinha que compartilhar o mesma ângulo entre bancadas e o mesmo espaçamento entre a linha de centro dos cilindros de um motor de produção, podendo ter dois cilindros removidos em relação ao bloco de série. Assim, o V-8 poderia ser transformado em um V-6.
Com muitas melhorias e elementos exclusivos para um motor de corrida, o V-6 de 2,5 litros passava facilmente de 10.000 rpm. Gerando mais de 400 cv de potência, o compacto motor trabalhava junto com uma caixa sequencial de seis marchas montada no eixo traseiro, para melhor distribuição de peso.
O subchassi dianteiro era removível, permitindo que o motor junto com toda a estrutura dianteira fosse removida rapidamente. O regulamento permitia que os carros passassem por manutenção entre uma bateria e outra (cada fim de semana de corrida era composto de duas baterias com intervalo de meia hora entre elas) e esta facilidade proporcionava uma troca completa de motor em torno de dez minutos.
Ao contrário do rival italiano, o Mercedes não dispunha da tração integral. A tração traseira, única opção dos modelos de produção, era o que dava à Mercedes uma pequena vantagem sobre a Alfa em termos de peso. O valor mínimo para a Mercedes era de 1.000 kg, enquanto que quem utilizasse a tração integral deveria ter um carro pesando no mínimo 1.040 kg.
A suspensão tinha que seguir o mesmo tipo usado no carro de produção. Desta forma, a dianteira tinha que ser com duplos braços de controle e a traseira, multibraço. Mas, não impedia que a geometria fosse alterada e integrado um sistema de alavancas para posicionar os amortecedores no chassi, conhecido como pull-rod, por ser acionado por um braço independente e não diretamente perto das rodas.
ELETRÔNICA EMBARCADA, MELHOR QUE DA F-1
Com liberdade de uso de sistemas eletrônicos, a Mercedes aplicou na suspensão uma barra antirrolagem ativa, que variava sua rigidez ao longo do traçado, porém com amortecedores convencionais, não eletrônicos nem variáveis.
Controle de tração e freios antitravamento também foram usados, sendo até mais “comuns” que os recursos usados na suspensão. Nos freios, as pinças eram arrefecidas à agua, algo pouco usual até mesmo hoje.
Um dos truques mais interessantes do Classe C era a distribuição de peso variável. Como assim, distribuição de peso que varia? Isso mesmo. O carro tinha alguns lastros móveis montados sobre trilhos nas soleiras, de roda a roda, no sentido longitudinal, que se deslocavam em função do traçado para melhor alocar a carga nas rodas, em aceleração e frenagem. Os lastros eram movimentados por um compacto sistema de atuadores hidráulicos.
Estes sistemas ainda eram novidade, precisavam de programação manual para cada pista. Assim como a famosa suspensão ativa usada pela Williams na Fórmula 1, os engenheiros usavam os dados coletados na pista no primeiro treino para programar o carro, assim o computador poderia reproduzir os parâmetros ao longo das voltas na corrida.
Pelo regulamento, recursos aerodinâmicos eram permitidos nos carros quase que sem restrições. A única imposição é que todos eles deveriam estar localizados abaixo da linha de centro da roda, exceto o aerofólio traseiro. Isto era feito para que os carros mantivessem a aparência dos carros de produção, e não virassem protótipos cheios de dutos, aletas e asas auxiliares.
A Mercedes desenvolveu diversos elementos no Classe C, inclusive um sistema de aletas que abriam e fechavam por atuadores para melhor direcionar o ar no difusor dianteiro e nas ventilações dos freios e radiadores. Isto modificava a quantidade de força vertical descendente (downforce) para cada trecho da pista.
Se compararmos o Mercedes com o Williams que deu a Nigel Mansell seu título mundial, podemos dizer que o DTM era mais sofisticado. A Williams utilizava da suspensão ativa para atuar na aerodinâmica do carro, enquanto que o Mercedes tinha sistemas ativos nas duas áreas, fora o controle de distribuição de peso.
RETOMADA DO CAMPEONATO
Finalmente com um novo carro capaz de brigar de igual para igual com a Alfa Romeo em 1994, a Mercedes entregou seu novo Classe C para seis pilotos, sendo quatro da equipe oficial AMG e dois da Zakspeed, equipe particular mas com apoio total da fábrica. Bernd Schneider, Roland Asch, Klaus Ludwig e Ellen Lohr defenderiam a AMG-Mercedes Team, enquanto que Kurt Thiim e Jörg van Ommen correriam pela Zakspeed.
A disputa contra a Alfa Corse foi intensa, mas os alemães conseguiram superá-la. Com doze vitórias contra oito da Mercedes, a Alfa perdeu o campeonato pela falta de constância e regularidade. Klaus Ludwig foi o campeão, seguido por Jörg van Ommen, e só depois vieram os dois pilotos principais da Alfa.
Em 1995, a Alfa se manteve como o principal rival da Mercedes. O Classe C havia demonstrado forte desempenho no ano anterior, mas a maior quantidade de vitórias havia sido da Alfa Corse, o que indicava que ainda havia o que ser melhorado.
Pequenos ajustes e melhorias foram incorporados ao W202. Tudo que era possível de ser acrescentado como melhoria era testado. Dario Franchitti, um dos pilotos da Mercedes em 1995, cita que a equipe chegou a estar uma asa retrátil que, durante as retas, ficava recolhida para dar maior velocidade ao carro, e nas curvas, ela surgia de dentro da parte inferior da porta traseira para aumentar o downforce. Não foi muito bem sucedido, mas até isto tentaram.
A Mercedes dominou a temporada. Neste ano, dois campeonatos paralelos coexistiam: o DTM e o ITC. O último, International Touring Car Series, contava com a participação de mais alguns pilotos em provas fora da Alemanha, no caso na Inglaterra, Portugal, Itália, França e Finlândia. O DTM contabilizava pontos das provas disputadas nos circuitos alemães.
No DTM, a Mercedes venceu nove das quatorze provas, contra apenas três vitórias da Alfa Corse e duas da Opel com o seu novo Calibra 4×4. Já na versão internacional, foram oito vitórias em dez provas. A Alfa Romeo venceu apenas duas etapas. Bernd Schneider foi campeão nas duas categorias com o Classe C, com Jörg van Ommen sendo vice-campeão no DTM e Jan Magnussen no ITC, ambos pilotando o mesmo Mercedes V-6.
Em 1996, último ano do DTM desta geração, agora chamado unicamente de ITC por incorporar as provas fora da Alemanha (Brasil, inclusive) em um único campeonato, teve uma grande força da Opel. A disputa foi muito equilibrada durante o ano todo, mas ao final, a Mercedes não conseguiu conter o Calibra de Manuel Reuter. Schneider foi vice-campeão, mesmo com uma vitória a mais, mas a regularidade de Reuter deu a ele mais pontos ao longo do ano.
Como já contamos, a temporada de 1997 foi cancelada por conta da desistência da Opel e da Alfa. O custo para manter os carros mais sofisticados do mundo era estratosférico, e o retorno para as empresas era baixo. A FIA aparentemente não queria que o DTM/ITC fosse mais popular que a Fórmula 1, mesmo com um público cada vez maior, e o trabalho de promoção que faziam não agradava aos fabricantes. Com isso, apenas a Mercedes, que sempre esteve ligada diretamente aos organizadores, foi a única a mostrar interesse em correr em 1997, mas um único fabricante não faria um campeonato, e assim o DTM teve que aguardar até o ano 2000 para retornar.
MB