A história é implacável, e não esquece fatos memoráveis como esse: a mundialmente poderosa Ferrari e seus carros esporte foram humilhados pela Ford, americana especialista em veículos familiares. Tudo começou lá pelo início dos anos 1960, quando Henry Ford II, neto do criador de uma das maiores fabricantes de carros do mundo, achou que aquele era o momento de investir no mercado europeu do pós-guerra. Para isso, queria uma marca de muito prestígio para alavancar as vendas de seus familiares para o consumidor do Velho Continente. Além disso, era meta abafar o sucesso do Corvette, da arquirrival General Motos.
Como tinha uma relação de amizade com Enzo Ferrari, o todo-poderoso da marca italiana, Ford II entrou em negociação com Enzo para adquirir o controle acionário da Ferrari e, dessa forma, usufruir do prestígio mundial dos carros italianos, conseguir novas tecnologias de ponta para seus carros e, ao mesmo tempo, obter o respeito do consumidor europeu, que se curvava diante do tal Cavalinho Rampante. Tudo certo, valores acordados, detalhes contratuais resolvidos pelos advogados, bastava apenas a assinatura de Enzo Ferrari para o negócio ser concretizado.
Mas, como todo bom italiano temperamental, de última hora Enzo disse que não venderia sua marca, pois acreditava que, assim, perderia o controle daquela indústria que criou e fez vitoriosa durante anos. A venda da Ferrari para a Ford estava cancelada! Esse fato deixou Henry Ford II possesso, muito irritado, pois já havia toda uma estratégia de marketing criada em torno desse negócio. Estávamos no início dos anos 1960 e Ford II não se deu por vencido: virou uma questão pessoal ter um carro que pudesse bater os poderosos Ferrari nas pistas de corrida e a GM no grande público.
Só para que se tenha uma ideia, a corridas de longa duração mais famosa e importante do mundo era (e continua a ser) a 24 Horas de Le Mans, na França, a qual a Ferrari havia vencido em 1954, 1958 e seis vezes consecutivas, 1960 a 1965. uma supremacia que parecia inabalável.
Construir um carro que batesse os Ferrari nas pistas da noite para o dia era praticamente impossível, tamanha a experiência e o know-how que a marca italiana havia adquirido nas competições. Nos EUA, os americanos eram bons de fazer carros de uso diário para a família, mas estavam longe dos esportivos de corrida. Isso era coisa de europeu. Henry Ford II tentou inicialmente com Colin Chapman, mago das tecnologias de carros de competição e dono da Lotus. Poderia ele, a pedido da Ford,, construir um carro especialmente projetado para as provas de longa duração da época?
Chapman, muito envolvido com sua recém-criada equipe de Fórmula 1, negou por não dispor de tempo para atender os anseios da Ford. Aí foi a vez da marca inglesa Lola Cars, famosa na Europa por fazer bons carros de corrida. Coincidência ou não, em 1962 a Lola tinha terminado um projeto revolucionário: um de seus jovens projetistas, o inglês Eric Broadley, havia concebido um carro cujo chassi, em vez do tradicional tubular da época, consistia num monobloco de alumínio, uma espécie de caixote de liga leve estruturalmente rígido e com pouca torção de sua carroceria.
Além disso, o câmbio era disposto atrás do eixo traseiro e o motor entre os eixos, ficando atrás do piloto. Uma configuração que, na época, era bem inovadora, depois se estendendo a maioria dos carros de corrida destinados à esse fim. Pois bem, esse carro, que era para ser o novo veículo de competição da Lola, acabou tendo seu projeto vendido para a Ford, rebatizado de GT40 — Grand Touring de 40 polegadas (1.016 mm) de altura. Comprando um projeto pronto, a Ford economizou mais de US$ 1,7 milhão da época e,, principalmente, bastante tempo.
Inicialmente, foi adotado na mecânica do carro um V-8 que vinha do sedã Fairlane, de bloco em alumínio e 4.2 litros. O transeixo italiano, Colotti, com câmbio manual de quatro marchas. Vale ressaltar que as primeiras unidades do GT40 foram construídas na Inglaterra pela Lola, sob encomenda da Ford e seguindo as especificações da marca americana. Depois de muitos testes e solucionados alguns problemas, o famoso Ford GT40, que tinha a pretensão de bater os Ferrari, estreou nas competições, mas sempre com resultados tímidos.
Depois dessa, Ford II optou por trazer para o time de desenvolvimento do carro ninguém menos que Carroll Shelby, um dos grandes pilotos americanos do final dos anos 1950/início dos anos1960, reverenciado mundialmente por suas qualidades de piloto e, principalmente, por conhecer profundamente os automóveis e seu funcionamento. Isso sem falar no projeto Shelby Cobra, de sua execução, e a experiência na Le Mans de 1959, da qual saiu-se vencedor com um Aston Martin DBR 1 em dupla com o inglês Roy Salvadori.
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Ele opinou, modificou e melhorou diversos pontos do projeto do Ford GT40, inclusive adotando um novo motor V-8 de 7 litros (427 pol³) oriundo do Galaxie e que Carroll utilizava também em seu esportivo Cobra. Com o novo e grande V-8, foram necessárias diversas alterações no projeto original do carro, que precisou ser alongado e alargado para receber o 7,0 e seu bloco de ferro fundido. Dois chassis, desmontados, cortados e soldados em março de 1965, foram os primeiros protótipos do GT40 MKII, com o novo motor V-8 de sete litros.
Mesmo utilizando um câmbio reforçado de quatro marchas, o novo motor precisou ser contido em sua potência e torque máximos, tudo para que a transmissão como um todo aguentasse a cavalaria do enorme V-8. Apesar de produzir 492 cv a 7.400 rpm, os técnicos, para preservar o câmbio, optaram por reter o regime de rotações máximo para 6.250 rpm, e, dessa forma, garantir a durabilidade da transmissão. Sobrava motor e faltava câmbio. Mesmo assim, segurando a rotação, eram 470 cv, número mais do que suficiente para um desempenho brilhante.
Shelby, além de comandar a equipe que trabalhava em todas essas alterações, também pilotava os GT40: por sua elevada estatura, ao redor dos 1,90 m, os carros dele precisavam ter um calombo no teto, na área da cabeça do piloto, para acomodar seu capacete. Além do Cobra, esse mesmo motor também estava na Nascar americana, sempre com muitas vitórias.
Bons resultados logo vieram: em meados da década de 1960, o GT40 MKII já começava a mostrar um bom potencial, tendo vencido sua primeira corrida em Daytona, em 1965. As primeiras unidades prontas foram para Le Mans de 1965 nas mãos de equipes particulares. Nenhum dos carros inscritos terminou a famosa prova do calendário mundial em resultados de destaque, para a infelicidade de Shelby, Ford II e toda a equipe.
A Ferrari? Venceu ocupando as três primeiras colocações do pódio. Duas com o 250 LM e o terceiro com o 275 GTB, os três movidos por um V-12 de 3.3 litros que geravam cerca de325 cv. Uma humilhação para a Ford, sonhadora de bons resultados com o GT40 e seus 470 cv. Na época, Henry Ford II ficou tão aborrecido que chegou até a falar em encerrar o projeto do carro esporte, desistindo do famoso embate com a marca italiana.
Seus conselheiros, por outro lado, foram sábios: apesar da derrota de Le Mans com o GT40 em 1965, nos treinos de classificação o Ford havia dado um show, mostrando tempos bem melhores que os da Ferrari. Era um enorme potencial o novo carro. Os treinos e os desenvolvimentos não pararam até junho de 1966, data da prova de Le Mans daquele ano. Os GT40 MkII aí estavam bem afiados, prontos para o embate direto com a Ferrari.
Naquele evento, até Henry Ford II estava presente para ver as corridas ao vivo, todos queriam ver a competição e a expectativa era grande, afinal a Ferrari havia vencido as seis Le Mans anteriores. Só para que se tenha uma ideia, havia um time de cerca de 100 pessoas levadas pela Ford, sete carros (um de reserva), nove motores e 21 toneladas de peças de reposição! A Ford chegou para vencer e ofuscar as seis vitórias anteriores da Ferrari.
Depois de 24 horas de uma extenuante corrida que junta velocidade, resistência mecânica, consumo de combustível e pneus, além da sorte, a Ford coroou seu GT40 Mk II com os três primeiros lugares na famosa prova mundialmente consagrada. No carro campeão estavam os experientes pilotos Bruce McLaren e Chris Amon, ambos neozelandeses. E para não deixar barato, o GT40 venceu a prova em 1967 com a dupla americana Dan Gurney-A. J. Foyt, em 1968 nas mãos do mexicano Pedro Rodriguez e do belga nascido na Itália, Lucien Bianchi e, finalmente, em 1969, guiado pelo belga Jacky Ickx e pelo inglês Jackie Oliver.
Vale falar também que 1969 foi o último ano de produção do GT40 original. Literalmente despediu-se vencedor.
DM