Deve ser saudosismo de minha parte, mas tenho lembrado da preparação dos carros de corrida com os quais já competi. Falei dos VW Passat para as provas curtas e longas, lembrei-me que, no final dos anos 1980, cheguei a correr nas provas do campeonato paulista na categoria Speed 1600, formada por Fuscas com motor 1600 de dupla carburação, semelhante ao do Brasília, suspensões devidamente acertadas em amortecedor, molas de torção e geometria.
Na época, a categoria Speed 1600 estava no seu auge, e chegamos a ter cerca de 60 carros na largada. Um verdadeiro festival do ronco para uma tarde de domingo. Muito legal e divertido! Mas quem acha que as corridas de Fusca não detinham nenhuma tecnologia de preparação, é um grande engano.
O meu Fusca azul, vermelho e verde com faixas rosas, número 61, que já comprei pronto e até pintado, não era lá “nenhuma Brastemp”: tinha motor a álcool fraco e havia muita coisa no carro para ser feita. A suspensão contava apenas com amortecedores de maior carga e estava rebaixada para melhorar tanto a aerodinâmica quanto abaixar o centro de gravidade.
Mas eu sabia pelos amigos preparadores que os carros de ponta da categoria eram repletos de segredos e macetes que faziam toda a diferença no desempenho.
Motor e câmbio
O motor, pelo regulamento da categoria na época, deveria ser basicamente igual ao original a álcool. A partir desse regulamento básico, em que até o comando de válvulas deveria ser o mesmo do carro de fábrica, os preparadores faziam 1001 “mágicas”.
Na carburação, composta por dois Solex 32/34 PDSIT, tinham que ser mantidos visualmente original, sendo livre retrabalho interno. Os preparadores aumentava o diâmetro do difusor, originalmente de 24 mm, para entre 28 e 30 mm para maior passagem de ar. As passagens de combustível eram aumentadas.
Os coletores de admissão, de ferro fundido, eram retrabalhado para casarem com as entradas dos dutos dos cabeçotes para que não houvesse turbulência ou perda do fluxo de admissão. O platinado do sistema de ignição era dispensado, podendo a ser usada a ignição eletrônica do VW Gol 1,6 a álcool. Claro que a curva de avanço era feita por cada preparador, e esse era um dos segredos não revelados. Pistões de cabeça plana eram semelhantes aos originais, mas havia outra importantes modificação, a taxa de compressão original, 10:1, podia ser livremente aumentada.
Assim vinham os exageros e macetes de cada preparação. Alguns profissionais que acertavam os carros de ponta falavam de taxa de compressão de 15:1, enquanto outros, iam além, cravavam 16:1. Essas altas taxas de compressão só eram possíveis devido ao uso do álcool Na época, eu brincava que, se bobeasse, esses motores poderiam trabalhar no ciclo Diesel, de tão comprimidos que eram.
O fato é que a saída de curva desses motores com taxa tão alta era como um tiro, tamanha a rapidez com que o motor impulsionava o Fusca, ajudado pelo peso que passava pouco de 700 kg, cerca de 100 kg menos que o carro original.
Calculo que um motor 1600 de ponta desses, bem preparado, entregava ao redor dos 80 ou 90 cv, mas com torque que deveria beirar os 15 m·kgf. Eram números impressionantes para um motor1,6-L tão antigo, de comando de válvulas na carcaça, a carburador e arrefecido a ar.
Na transmissão, bem robusta e que raramente quebrava, o que se fazia era o acerto das folgas que, mesmo que tornassem a caixa barulhenta, deixavam-na mais livre, consumindo menos potência por atrito. Para completar esse trabalho no câmbio, sua lubrificação era feita com óleo de motor, até mesmo utilizando o Mobil 1 Racing 20W50, totalmente sintético, que os preparadores diziam parecer água. Era a grande novidade da época.
Apesar de não ser óleo de engrenagem, lubrificava bem, e o fato de não ter aditivação EP (Extrema Pressão) não fazia falta, uma vez que o par cônico (coroa e pinhão) do câmbio do Fusca era apenas helicoidal e não hipóide,(centros deslocados, o que resulta em grande pressão entre os dentes, o que exige óleo EP).
Fora que os óleos para engrenagens têm o número de viscosidade dobrado em relação aos óleos para motor para não haver confusão. Um óleo para engrenagens 90, por exemplo, corresponde a um óleo de motor SAE 45.
Mesmo que as corridas da categoria fossem de bem mais de 10 voltas não haveria problema de lubrificação do câmbio. O uso do óleo citado reduzia a absorção de potência pelo atrito do câmbio, resultando em mais potência nas rodas.
O escapamento era 4-em-1 com saída única e não havia limite de quanto este tubo de saída podia ultrapassar a linha da carroceria.
Mesmo que o motor do Fusca não fosse dos mais modernos, pelo menos era muito confiável, tanto que os carros raramente paravam por quebra de motor e muito menos de câmbio. Não eram muito rápidos nas retas, já que tinham potência limitada e o Cx 0,48 não ajudava, mas no miolo do circuito eram incrivelmente rápidos, seja em curvas, nas saídas delas e nas retomadas.
Suspensão
Como todos sabemos, na suspensão do Fusca o meio elástico consiste de molas, ou barras, de torção. Na realidade, na suspensão dianteira são feixes de lâminas de torção. Nos Fuscas pré-1973 não era possível ajustar o câmber das rodas dianteiras, mas desse ano em diante esse ajuste era possível. O corpo do eixo dianteiro era aparafusado no cabeçote do chassi por quatro parafusos e o regulamento permitia aplicar arruelas-calço. entre as duas partes para mudar o cáster. O ajuste de convergência era o de todos os carros, pela barras de direção. Era permitido também também usar o feixe de lâminas de torção de Kombi, de constante elástica maior (mais fortes).
A altura de rodagem dianteira podia ser feita com o emprego de um sistema batizado de castanhas ou catracas, que permitia que o encaixe do feixe de lâminas (soldado no carro normal) saísse da posição original e girasse em relação ao corpo do eixo e fixado pela catraca. A altura de rodagem dianteira ficava a critério da preferência do piloto.
Na traseira, podia-se ajustar a posição da lâmina — o “facão” — que liga a capa do semieixo à barra de torção, de maneira a reduzir a altura de rodagem para baixar o centro de gravidade,, mas por ser suspensão de semieixo oscilante, reduzir muito essa altura levava o câmber a ser negativo demais, com prejuízo da aderência pela menor área de contato do pneu com o solo. Com um pouco de tentativa e erro se chegava a um compromisso o mais próximo possível do ideal. E como o rasgo de encaixe da capa do semieixo no facão é oblongo, podia-se fazer pequenos ajustes de convergência. deslocando o semieixo para trás ou para frente em relação ao facão, novamente de acordo com a preferência do piloto.
Até aí, nenhum segredo, até porque isso tudo era feito nos Fuscas rebaixados de rua. A sacada ficava por conta justamente da fixação corpo da suspensão dianteira no cabeçote do chassi:, como citei mais acima. Os preparadores colocavam calços mais grossos na parte de baixo e mais finos ou nenhum na parte de cima (o corpo do eixo consiste de dois tubos formando o que pode ser entendido como subchassi), o que aumentava consideravelmente o cáster, mudando a geometria da suspensão dianteira, em especial o câmber quando as rodas são esterçadas.
Quando simplesmente se rebaixava o carro, como era o meu Fusca de corrida, nas curvas de baixa e média velocidade, a tendência era sair exageradamente de dianteira: a traseira pregava no chão, empurrando as rodas dianteiras esterçadas sem que o carro fizesse a curva. Assim, o tempo de volta bom não aparecia. Quando a fixação era devidamente calçada para aumentar o cáster, a mudança do câmber nas curvas era favorável a aderência das rodas dianteiras, eliminando a maior parte da saída de frente. permitindo que o carro contornasse as curvas com muito mais facilidade.
Além disso, com os calços colocados entre a suspensão dianteira e o cabeçote do chassi o entre-eixos aumentava, porém mesmo que pouco, ajudava no comportamento dos Fuscas no miolo do antigo traçado de Interlagos. Os resultados eram mais sensíveis nas curvas de alta.
O acerto da barra de torção traseira com os amortecedores mais firmes em conjunto com a dianteira de cáster aumentado e maior entre-eixos, fazia dos VW 1600 um terror até mesmo para carros modernos. Os Fusquinhas eram verdadeiros demônios nas pistas.
No conjunto, motor 1,6-L altamente comprimido, baixo atrito do câmbio, e esses macetes de suspensão faziam dos Fuscas carros totalmente renovados. E, claro, toda essa preparação foi fruto de anos e anos de trabalho dos preparadores. Cada um descobria um detalhe ou novidade, e tudo junto fazia dos carros verdadeiras balas. Agora, vocês já imaginaram 50 ou 60 Fuscas assim largando juntos numa tarde de domingo? Era coisa de louco, mas muito divertida.
Na verdade, toda essa preparação acima era dos carros de ponta, das equipes com recursos financeiros. Eu, com meu carro humilde, conseguia largar no meio do pelotão, saía entre a 20ª e 25ª posição. Era normal ter 25 carros na minha frente, e, olhando pelo retrovisor, outros 25. Disputas acirradas, onde muitos acabavam capotados ou enfiados nos guard-rails, mas o bicho pegava mesmo era quando chovia. Aí era o verdadeiro “pega pra capar”.
São experiências que guardo com grata lembrança até hoje.
DM
A coluna “Perfume de carro” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.
Nota: Esta coluna é publicada quinzenalmente aos sábados. Excepcionalmente o foi neste domingo.