A última vitória de um Ferrari na mais incrível prova de longa duração do mundo, ainda existente, ocorreu há 58 anos, com o Ferrari LM equipado com o magnífico V-12 de 3,3 litros montado no centro do carro e pilotado pelo alemão radicado na Áustria Jochen Rindt e pelos americanos Masten Gregory e Ed Hugus. Foi a última conquista de Enzo Ferrari em Le Mans, amaldiçoado por Henry Ford II e seus GT40.
Este ano, a dominação da Toyota foi ameaçada pelos rivais da categoria Hypercar, trazendo novos competidores dotados de motorização híbrida, onde os japoneses reinavam soberanos e solitários desde 2018, quando a Porsche abandonou a categoria após a vitória de 2017 em Le Mans, a sua 19ª na história da corrida.
Cadillac, Peugeot, Porsche e Ferrari colocaram seus novos carros na pista este ano, em mais uma tentativa de unificar o universo do endurance, segregado entre Europa (WEC) e Estados Unidos (IMSA) há décadas. Os organizadores viram um grande potencial de público somando as duas entidades em uma única competição, que comentamos aqui no AE no ano passado. Para isso, o regulamento foi ajustado para permitir que participantes de ambos os lados do Atlântico pudessem competir entre si.
Mais carros de ponta na pista trazem mais emoção para a prova, ainda mais quando nomes como Porsche e Ferrari estão envolvidos, em especial, o italiano, que não dava as caras na categoria principal do endurance há décadas. Muitos devem se lembrar dos belos 333SP do fim dos anos 1990, a última tentativa da marca na categoria, ainda que nas mãos de equipes particulares.
Justamente os italianos levaram para casa o troféu da 91ª edição das 24 Horas de Le Mans, a que marcou o centenário da famosa prova de resistência, depois de uma boa briga com os japoneses da Toyota, invictos desde 2018. Isso significa que a Ferrari criou um carro melhor que o Toyota? Não. Quer dizer então que tiveram uma estratégia diferente, mais efetiva, por ter um carro inferior? Também não.
Existe um elemento-surpresa, ao meu ver totalmente abominável, chamado BoP – Balance of Performance, que significa Balanço de Desempenho. Sua função é levantar dados de telemetria, túnel de vento e ensaios de dinamômetro (frutos de pesquisa e desenvolvimento dos fabricantes), juntar com uma infinidade de cálculos em função dos resultados obtidos em corridas passadas e determinar como penalizar os carros mais rápidos para que eles não possam ser mais rápidos que os carros mais lentos. Ou seja, se seu carro é melhor, ele tem que ficar pior para os outros poderem andar junto. E como fazem isso? Adicionando lastro nos carros e algumas outras limitações de potência.
Como já falei anteriormente, e acho válido trazer o assunto de novo: nivelar por baixo a categoria mais sofisticada do automobilismo fora do mundo da Fórmula 1 é um assassinato no esporte. Usain Bolt não corria com um punhado de pedras nos bolsos para ficar mais fácil para os competidores disputarem uma corrida com ele.
É importante dizer que não significa que o resultado seja manipulado, pois o objetivo é, em teoria, fazer com que todos tenham a mesma chance de vitória por terem desempenhos parecidos, mas que fica uma situação bem estranha no ar, isso fica. Houve bastante polêmica quando a menos de duas semanas da corrida o BoP foi alterado para os Hypercars, algo que a organização havia dito que o BoP só seria revisto depois de Le Mans para a sequência do campeonato. A Toyota foi a mais penalizada, com um lastro adicional de 37 kg. A equipe Ferrari teve que adicionar 24 kg em cada carro, enquanto que os Cadillac levaram 11 kg a mais e a Porsche, apenas 3 kg.
Estes valores de lastro foram definidos em função dos últimos resultados de cada carro neste ano. A Toyota, vencendo as três corridas do ano, e a Ferrari, estando entre os mais rápidos e conseguindo até pole position, foram mais penalizados que os outros rivais, com resultados um pouco mais discretos.
Em contrapartida, o público se beneficia do tal equilíbrio artificial entre os carros, com disputas mais equilibradas e maior quantidade de sérios candidatos à vitória. Uma corrida em que um único competidor domina totalmente o cenário é menos atraente ao público, com certeza, mas é mais justa, pelo simples princípio da meritocracia. Quem fez um melhor trabalho, projetando um carro mais rápido e mais resistente, merece vencer.
Se a WEC / IMSA desejam campeonatos muito mais equilibrados, poderiam então partir para a fórmula da LMP2, onde basicamente um único carro é utilizado por todas as equipes. A Oreca fabrica e fornece o atual modelo 07, com um único tipo de motor, para todos os competidores. Seria uma monomarca, mas aí o público tem bem menos interesse do que assistir disputas entre Porsche e Ferrari, Toyota e Cadillac. Seria mais honesto, ao meu ver, do que estragar propositalmente o melhor projeto para que todos andem iguais. Deve ser muito frustrante para o time de criação das marcas ver as milhares de horas de projeto, testes e validações em busca de melhorias de décimos de segundo, sendo destruídos por um saco de tijolos de 30 kg amarrado no carro porque o rival não consegue te acompanhar, gerando disputas igualitárias totalmente artificiais.
Posso imaginar como os japoneses da Toyota devem estar se sentindo após o golpe do lastro adicional não previsto logo antes da corrida. A equipe venceu as últimas edições de Le Mans por uma certa falta de competidores à altura, mas nestes anos, tiveram todo o trabalho de aprimorar o carro, seus pilotos, seus mecânicos e estrategistas, sabendo que novos rivais poderiam surgir a qualquer momento. Foram anos de trabalho duro para que pudessem defender a coroa do rei de Le Mans, mas, na última hora, ganharam uma penalidade.
Um fator interessante nesta edição de Le Mans foi o carro inscrito na tradicional vaga conhecida como Garagem 56, disponível para que projetos de inovação possam participar da corrida sem valer no resultado final. Este posto foi usado em um passado não tão distante pelo revolucionário Nissan “Delta Wing”, e agora foi destinado para um carro da Nascar. Sim, um Nascar norte-americano!
Baseado no modelo da Chevrolet com modificações (chassi mais leve, freios de carbono, câmbio sequencial com acionamento no volante, pacote aerodinâmico especial e pneus com sensores de pressão e temperatura que são embutidos na borracha durante a vulcanização), o Camaro não era sujeito a nenhuma equalização ou restrições de potência e peso. O resultado foi que na qualificação o brutamontes foi mais rápido que todos os carro da categoria GT.
Novamente, para o público é um cenário bom, bem disputado, mas, e para o espírito do esporte automobilístico? Será este o caminho certo?
MB