Esta matéria surgiu de um contato do jornalista e meu amigo Jason Vogel que, pesquisando uma matéria sobre o IAA de 1951 na revista Automóveis & Acessórios, de novembro de 1951, se deparou com o relato sobre este VW Käfer tão especial. A citação em questão é a seguinte
A partir desta citação começou a pesquisa para esta matéria. O nome antigo da Etiópia é Abissínia, como consta da nota acima, um país do noroeste da África e sua posição geográfica pode ser vista na ilustração abaixo:
O IAA de 1951
O IAA – Internationale Automobil-Austellung – Salão Internacional de Automóveis, de Frankfurt, sucedeu os salões realizados em Berlim antes da Segunda Guerra Mundial (IAMA¹ – na época incluía motocicletas também). E o IAA de 1951 foi o primeiro depois do conflito.
Ele atraiu 570.000 pessoas, muitas delas que nem tinham condições de comprar um carro, mas que tinham grande interesse em saber o que estava ocorrendo no mercado automobilístico da época.
A maioria dos visitantes do IAA 1951 veio de trem; apenas 30.000 do total de 570.000 visitantes viajaram de carro. No entanto, a cidade de Frankfurt teve suas dificuldades para oferecer espaço suficiente. A municipalidade gastou mais de 14 milhões de marcos para preparar pontes, estradas de acesso e vagas de estacionamento para receber o afluxo das massas mobilizadas para visitar este grandioso salão do automóvel.
Num exemplo dos vários galpões da IAA, o estande da Auto Union, que era um dos principais fabricantes de automóveis na Alemanha na década de 1950. No IAA 1951, a Auto Union apresentou sua ampla gama de DKW’s pós-guerra. O foco de interesse foi o DKW Meisterklasse com carroceria aerodinâmica (centro da imagem na plataforma giratória), que também foi oferecido pela primeira vez como um cupê ou cabriolé. No meio da foto pode-se ver uma camioneta com parte da carroceria em madeira, a chamada Woodie. Esse tipo de construção, surgido nos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial devido a falta de aço para produção de veículos de uso civil, já que o aço era direcionado para fins militares, acabou se tornando muito popular e apreciado naquele país.
A Volkswagen ocupou um galpão inteiro para apresentar seus produtos:
Na foto abaixo: o líder de mercado: o VW Käfer Tipo 11, em produção desde 1946, pode ser visto diagonalmente na parte de trás do estande da Volkswagen. O 250.000º veículo saiu da linha de montagem já em 1951. O preço da versão mais barata era de 4.600 marcos. O carro ainda não tinha espelho retrovisor externo e a visão para trás também era bastante restringida pelas duas janelinhas traseiras. Na frente, à esquerda está o chamado modelo de Export, que, ao contrário do Standard, apresentava mais cromados e, neste caso, pneus com faixa branca. Um teto solar retrátil estava disponível como um atributo de luxo especial. No centro da imagem está um VW Tipo 2, carinhosamente conhecido como “Bulli”. Entrou em produção em série em março de 1950. O veículo tinha o mesmo motor de 1.131 cm³ de 25 cv do Fusca e estava disponível como furgão, picape ou Kombi de passageiros.
O estande da Volkswagen era muito grande, abaixo mais uma foto parcial de seu interior:
Adiante voltaremos a este estande.
O Imperador Hailé Selassié I
O nome de batismo dele era Tafari Makonnen. Ele nasceu em Harer, Etiópia, em 1892, filho de um conselheiro do imperador Menelik II. Ele recebeu uma educação europeia que o preparou para exercer altos cargos. Voltando à Etiópia ele chegou a ser governador de Sidamo e depois de outras províncias.
Em 1911 ele se casou com Wayzaro Menen, neta do imperador Menelik II. O imperador veio a falecer em 1913 e foi sucedido por seu neto Lij Yasu, que foi deposto por razões religiosas, ele era muçulmano em um país cristão. Tafari Makonen foi quem tinha aproveitado a situação e deposto Lij Yasu. Com isso a filha do falecido Imperador Menelik II, sogra de Tafari, foi coroada Imperatriz. Agora Tafari passou a ser “Ras” que é príncipe, ou seja, “Ras Tafari” e foi designado regente. Pouco a pouco ele foi assumindo o controle do estado, que passou a dirigir com um espírito reformista e centralista.
Com a morte da imperatriz em novembro de 1930, Ras Tafari foi coroado imperador assumindo o nome de Hailé Selassié I, que quer dizer “O Poder da Santa Trindade”. Até aqui já sabemos como ele, um plebeu, se tornou imperador.
O imperador Hailé Selassié I, da Etiópia, tinha uma conhecida predileção por VW Käfer. Dizem que ele possuía uma coleção desses carros, que eram usados com frequência por membros da Corte Imperial. A história por trás de sua afeição pelos Fuscas é bastante interessante.
Contar a história do Ras Tafari até aqui foi necessário para situar a próxima parte de nossa história.
Um VW Käfer em destaque no IAA 1951
Agora voltamos ao título desta matéria e ao estande da Volkswagen no IAA 1951. Lá estava exposto em destaque um VW Käfer feito sob encomenda para atender aos desejos de um imperador. Sim, Hailé Selassié tinha encomendado um VW Käfer para si.
A cor do carro era branca, e ele pode ser visto na foto de abertura. Além da cor ele tinha detalhes folheados a ouro. O estofamento e as guarnições laterais e das portas foram estofadas com pele de leopardo. Os puxadores das portas tinham um desenho diferente dos de fábrica. O volante não era totalmente circular, seu aro tinha um pequeno segmento levemente curvado para cima. Na tampa do porta-luvas, item inexistente na série, havia um relógio. O carro veio também com um rádio de fábrica.
Na foto abaixo se pode conferir vários dos detalhes descritos acima formando o VW Käfer feito sob medida: para o imperador.
Abaixo segue o vídeo (00:30) do Bundesarchiv com uma rápida visão da IAA 1951 dando ênfase para o carro do Imperador.
O vídeo é falado em alemão e tem legendas originalmente em alemão, mas o YouTube oferece a opção de traduzir estas legendas para vários idiomas.
Para ativar a tradução de legendas no YouTube siga os passos abaixo:
Selecione o ícone de legendas, pause o vídeo e
- Clique no ícone de configurações abaixo da tela do vídeo (roda dentada);
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Curiosidade: como Ras Tafari passou de Imperador da Etiópia a líder religioso na Jamaica
Tudo se resume a sua coroação em 1930 e a uma “profecia” feita por Marcus Garvey, um ativista jamaicano dos direitos dos negros. Uma década antes. Garvey disse a seus seguidores em 1920 que eles deveriam “olhar para a África, quando um rei negro seria coroado, pois o dia da libertação está próximo”.
Então, quando um negro chamado Ras Tafari foi coroado na Etiópia, na África, muitos na Jamaica viram isso como um sinal, como a profecia se tornando realidade.
Sim, na África Oriental, Ras Tafari tornou-se Hailé Selassié. A quase 13.000 quilômetros de distância da Jamaica, Hailé Selassié tornou-se deus (ou Jah) encarnado — o messias redentor — e a Etiópia passou a ser a terra prometida.
Em suma, o movimento Rastafari nasceu! Hailé Selassié acreditava nesse mito? Ele certamente não tentou dissipar a crença quando visitou a Jamaica em 1966. O imperador foi recebido por milhares de pessoas, que estavam desesperadas para ver seu deus. Entre os devotos estava a esposa de um jovem músico de reggae, Bob Marley, que na época estava nos Estados Unidos.
As cores do movimento Rastafari vem da bandeira imperial da Etiópia que tinha em seu centro a figura do Leão de Judá carregando uma cruz do cristianismo. O verde representa o trabalho, o desenvolvimento e a fertilidade; o amarelo representa a esperança e o vermelho o sangue na defesa da Etiópia.
Em termos de significado espiritual, poucas datas competem com o dia 21 de abril de 1966 no coração dos rastafáris. Comemorado todos os anos pelos fiéis em todo o mundo como Grounation Day, esse dia marca a visita do imperador da Etiópia, Hailé Selassié I, à Jamaica, uma figura adorada como uma divindade pelos rastafáris do mundo inteiro. O termo “Grounation” deriva de “coronation” (coroação) e “groundation” (conexão com a terra).
Segundo um fotógrafo da revista Life que acompanhou a visita de Hailé Selassié à Jamaica: “os rastafáris ficaram loucos com a chegada de Selassié. Eles romperam o cordão de isolamento e se aglomeraram em torno do avião DC-6 do imperador. Ficaram tocando o avião, gritando ‘Deus está aqui’. Os rastafáris estragaram a visita, na opinião da maioria dos jamaicanos. Mas Selassié parecia adorar a atenção que esses jamaicanos estranhos, de olhos selvagens, sem lei e temidos, lhe davam.”
Em outra foto o detalhe é para o cartaz que aparece à direita da foto e que se lê em vermelho e na diagonal “Boas-vindas ao nosso Deus e Rei.” E na última linha está “Rasta Fari”: parece que o reverendo Claudius Henry, da igreja Africana Reformista Copta, conforme consta em outra parte do cartaz, ainda não tinha entendido que o certo seria “Ras Tafari”.
Passando o sufoco do aeroporto, as festividades continuaram em outro ponto da ilha.
Curiosidade: as fotos feitas pelo fotógrafo da Life acabaram, não se sabe por que, não sendo incorporadas ao arquivo formal da revista e por isto não receberam a tradicional marca d’água “LIFE” no canto direito inferior.
Um VW Käfer acompanhou o Imperador deposto
Quando o imperador da Etiópia, Hailé Selassié, então com 82 anos, foi deposto por um golpe de estado perpetrado por oficiais marxistas do exército etíope em 1974, ele foi retirado de seu palácio em um VW Käfer sem identificação. Isso teria sido penoso para qualquer rei, mas Hailé Selassié era conhecido como uma pessoa que gostava de carros e a escolha de um simples VW Käfer pelos golpistas poderia ter sido especialmente humilhante para ele. Mas, quem sabe, como ele gostava deste tipo de carro, até que ter saído desta maneira pode não ter sido tão ruim assim.
Preso pelo novo governo, Selassié morreu em 27 de agosto de 1975, oficialmente por complicações decorrentes de uma operação da próstata. Essa versão é contestada por seus apoiadores e familiares, que entendem que o ex-imperador foi assassinado na sua cama.
Agradeço ao Jason Vogel pela dica inicial que deflagrou as pesquisas que levaram a esta matéria. Seguramente aquele VW Käfer feito sob medida para o imperador da Etiópia foi uma exceção feita pela Volkswagen na época, uma deferência ao mandatário de um país que poderia se tornar um consumidor de produtos da marca, como efetivamente se tornou.
(¹) – IAMA – Internationale Automobil und Motorrad Austellung – Salão Internacional do Automóvel e da Motocicleta – evento que foi a tribuna do Führer na divulgação dos avanços do projeto do Carro do Povo. Esta exposição, depois da II Guerra Mundial, foi sucedida pela IAA de Frankfurt que existe até hoje, como vimos acima.
AG
Para esta matéria foram consultados os seguintes sites: autoweek.com, com o trabalho de Murilee Martin; bbc.com; life.com, com o trabalho de Ben Cosgrove; spiegel.de, com o trabalho de Michail Hengstenberg; Wikipedia. Informações sobre esta fontes podem ser dados sob consulta.
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