Fla-Flú. Mac-Med. Prost vs. Senna. Holyfield vs. Tyson. Ou mesmo Kirk Douglas e Anthony Quinn. Grandes duelos. Duelos de titãs. Por que não incluímos, então, o clássico e secular duelo entre Ford e Chevrolet?
Em várias épocas, mesmo com consideráveis quantidades de fabricantes de automóveis, foram essas duas marcas que criaram as maiores rivalidades já presenciadas, não apenas na indústria ou no mercado, mas também entre os usuários. Já vi amigos se desentenderem devido a uma discussão de qual é melhor, o “meu” ou o “teu”. Muitas vezes tratava-se mesmo de Ford e Chevrolet. E muitas vezes o tira-teima foi resolvido em um “racha”.
A discussão é muito antiga e atualmente pega mais quanto ao gosto pessoal do que em relação às qualidades de cada marca. Tomem suas posições!
É uma boa briga. Apesar de existirem milhares de marcas de automóveis no mundo, as eternas rivais Ford e Chevrolet sempre nos proporcionaram uma disputa bem mais acirrada do que qualquer outra conhecida. E há mais de um século.
Fundada em 1903 por Henry Ford, a empresa Ford Motor Company tem como sua principal marca exatamente a Ford, com a qual atingiu o seu maior desempenho como fabricante de automóveis. Já a Chevrolet Motor Car Company foi uma empresa fundada por Louis Chevrolet em 1911, também utilizando a marca Chevrolet para seus automóveis, porém foi absorvida pela General Motors em 1917.
Tanto Ford quanto General Motors fizeram parte do se convencionou chamar de “As Três Grandes”, o que incluía a Chrysler como empresa, mas, cá entre nós, mesmo gigante, ela nunca se igualou às duas rivais.
A disputa maior, no entanto, fica com as marcas puras, Ford e Chevrolet, que, desde as suas respectivas criações, ano a ano apresentavam ao seu público um automóvel sempre pretensamente melhor do que o do concorrente.
Eu passei a minha vida inteira olhando as duas marcas — Chevrolet e Ford —, além do respeito que elas conquistaram, como um espectador em uma luta de boxe. Ora vencia uma, ora outra, como se, no geral, estivessem sempre igualadas.
Digo a vida inteira porque foi no ano de 1963 que meu pai, Expedito Marazzi, compilou uma lista de modelos das duas marcas — das quais ele também era fã — para uma épica reportagem na revista Quatro Rodas. Com o título “Ford x Chevrolet, um clássico”, foi a partir daí que eu também passei a acompanhar e sempre comparar os modelos de cada uma, ano a ano.
Se naquela época, 60 anos atrás, a briga era focada nos modelos básicos das duas empresas, Ford e Chevrolet, pouco tempo depois a lista poderia crescer, para, por exemplo, Lincoln x Cadillac, ou Mercury x Oldsmobile, para citar algumas marcas das empresas, ou mesmo modelos que seguiram vidas próprias, como Mustang x Camaro (foto de abertura) ou Thunderbird x Corvette. Muita coisa, certo? Então vamos focar em Chevrolet x Ford.
Lá atrás, em 1963, Expedito afirmava que já não existia o “fordista” roxo, ou adeptos fervorosos dos “Chevies”, mas acho que eles estavam apenas guardando munição para o que viria a seguir. Isso porque em uma época lá pelas décadas 1970 e 1980, a dedicação extremada pelas marcas se mostrou mais forte do que nunca. Incluindo também, pelo menos por aqui, os “volksmaníacos”.
É claro que tudo começou a ficar forte no tempo do Ford Modelo T. O mais popular de todos os automóveis, perdendo apenas para o Fusca, era a maioria pelos difíceis caminhos de terra e lama dos anos 1910 e 1920. A Chevrolet, no entanto, apenas em 1926 conseguiu equilibrar a contenda com seu “cabeça-de-cavalo”, cuja maior inovação em relação ao “T”, que já estava em final de carreira, era o câmbio de três marchas.
Com esse modelo, a Chevrolet praticamente decretou o fim do Ford Modelo T, que foi substituído, em 1927, pelo Ford Modelo A, talvez o mais bem resolvido automóvel de sua época.
Muito parecidos, como quase todos os automóveis de outras marcas nessa época, Ford e Chevrolet brigavam, então, pelos motores. O Ford Modelo A tinha um motor de quatro cilindros de válvulas laterais, com cilindrada de 3,3 litros e potência de 40 cv, enquanto que o motor do Chevrolet cabeça-de-cavalo tinha válvulas no cabeçote mas com potência de apenas 35 cv.
A resposta da Chevrolet foi o Ramona, em 1929, um motor seis cilindros em linha de 3,2 litros e 46 cv com válvulas no cabeçote que fez o Ford de quatro cilindros comer poeira. Esse motor ficou conhecido por Stovebolt Six.
A revanche veio com o novo Ford Modelo 18, em 1932, com o também novo motor V-8. Mesmo com válvulas laterais (um V-8 com válvulas no cabeçote seria além de complexo, muito caro), o Ford disparou na frente com uma potência de 65 cv, a ponto de o fora-da-lei Dillinger enviar uma carta a Henry Ford para agradecer, dizendo que, com esse motor, a polícia não mais o pegaria, com seus velhos motores de quatro cilindros que continuaram em produção por dois anos mais, no atualizado Ford Modelo B.
É interessante ressaltar que esses dois motores, que equiparam por tanto tempo os Chevrolet e os Ford, são considerados os mais importantes na história dos automóveis dessa época. O V-8 flathead (cabeçote plano por não conter válvulas, que eram no bloco) da Ford, conhecido por 8BA mas com algumas variações para equipar veículos maiores, ficou em produção por 21 anos, sendo substituído apenas em 1953 por um de válvulas no cabeçote (OHV, overhead valves).
Já o motor Chevrolet Ramona de seis cilindros de 1929, em sua concepção básica, foi mais longe, pois é a base dos tão amados motores de seis cilindros em linha que equipou o Chevrolet Opala também o Chevrolet Omega de 1995 a 1998, entre muitos outros modelos.
Nesse período, então, e também devido à impossibilidade de a Chevrolet se igualar à Ford em elevar a potência de seu melhor motor, a disputa entre as duas marcas enveredou pelos detalhes estéticos e de acabamento.
No campo dos equipamentos de segurança, a Chevrolet dotou seus modelos com freios hidráulicos em 1933, enquanto a Ford só adotou essa tecnologia seis anos depois. Da mesma forma, a Chevrolet incorporou um sistema em suas versões “de luxo” que foi considerado “muito chique”: a alavanca de câmbio na coluna de direção. Além de chique, era prático, pois tinha assistência a vácuo, o que tornava a operação de trocas de marchas muito leve e fácil. A Ford adotou o mesmo sistema apenas no ano seguinte.
Para encurtar a história, o que uma fazia a outra copiava. E vice-versa. Assim, os consumidores conheceram diversas melhorias, como o capô do motor, que abria lateralmente e passou a abrir por inteiro, ou o alargamento das cabines, com a absorção dos estribos, resultando em mais espaço lateralmente para o conforto dos ocupantes.
Até 1942, quando a produção de automóveis foi paralisada para o esforço de guerra, os detalhes externos de ambas as marcas passaram por muitas melhorias, tanto práticas como visuais. Da aparência antiquada, eles foram tomando as formas mais modernas, como pela gradual incorporação dos faróis para dentro da carroceria, assim como dos radiadores verticais, que passaram a ficar escondidos atrás de belas grades inclinadas e cheias de formas. Era o automóvel se embelezando. Em 1940, os faróis estavam praticamente dentro dos para-lamas.
Os modelos de 1946, tanto Ford quanto Chevrolet, eram os mesmo de antes da guerra, diferindo-se apenas em detalhes de frisos e grades e posição das lanternas. E em 1949, tudo novo: Chevrolet e Ford eram mais baixos, mais largos e mais bonitos. O Ford 1949, com sua bola imitando uma turbina no centro da grade do radiador, foi notadamente influenciado pelo estilo “bossa-nova” do Studebaker 1947, obra do famoso estilista Raymond Loewy.
O fim da guerra fez o mundo se sentir aliviado. Incluindo os estilistas, pelo que se pôde notar no resultado de seus trabalhos. A partir daí, as mudanças eram mais frequentes e consistentes. Olhando pelo nosso ponto de vista — que nem precisa ser o de 2023, mas dos anos 1970, que foi quando comecei a notar esses carros e seus detalhes — tudo o que foi adotado nos Ford e nos Chevrolet pode ser avaliado sob o tão poderoso pincel do gosto pessoal.
O Ford 1949, para mim, é muito mais bonito do que o Chevrolet de 1949 até 1952. E o Ford 1951, que ganhou uma segunda bola em sua já exagerada grade frontal, era ainda mais bonito do que o 1949. Questão de gosto. Mas o fatídico câmbio automático Powerglide de duas marchas do Chevrolet nunca me entusiasmou. Até tive alguns, com motores L-6 e V-8.
Até aí, os Ford ainda tinham o V-8 flathead, cujo som dos escapamentos diretos é uma das coisas mais belas nesse mundo dos carros, enquanto os Chevrolet mantinham o velho Stovebolt Six. E, em 1952, o Ford surge completamente diferente, com para-brisa integral, uma “bola” mais discreta na grade do radiador, linhas bastante angulosas e um novo motor OHV de seis cilindros. Os carros da Chevrolet só mudariam em 1953, também adotando linhas bem mais angulosas, enquanto os Ford ficaram iguais aos do ano anterior. Para esse ano, foi projetado um novo motor Ford, que ficou conhecido como Y-block , mas uma crise no fornecimento de níquel devido à guerra da Coreia o adiou para 1954.
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O motor Y foi uma sensação em seu primeiro ano, com a mesma cilindrada (3.916 cm³ do antigo flathead mas com maior diâmetro dos cilindros e menor curso dos pistões. Isso, aliado aos novos cabeçotes OHV, aumentaram bem a potência, de 110 cv para 130 cv.
Se em 1954 a Ford estava na frente devido a esse novo motor, mesmo com a Chevrolet dando uma mostra do que viria a seguir, com seus modelos 1953 e 1954, o jogo mudou radicalmente em 1955, quando a marca da gravatinha borboleta lançou aquela carroceria que por muitos é considerada a mais bonita de toda essa saga. E com um novo e maravilhoso motor V-8 OHV que embala os sonhos de qualquer carromaníaco até os dias de hoje.
Com uma família completa de carrocerias, acabamentos e motores, o Chevrolet 1955 entrou para a história. Repetiu a dose em 1956, com poucas alterações estéticas e com motores mais potentes, e fechou a trilogia com o Chevrolet 1957, um mini-Cadillac de encher os olhos.
A Chevrolet não parou por aí, de 1958 até, digamos, 1967, seus carros não só ofuscam como chegam a apagar o brilho dos Ford. Lembram do que eu disse a respeito da questão de gosto? É isso. O Chevrolet 1959, em especial o Impala Sport Sedan, de quatro portas sem coluna central, é uma obra de arte.
O Ford 1955 é bonito, mas nem tanto, assim como o 1956. O 1957, no entanto, é… feio!
Os anos 1960 deram uma maneirada nas linhas excessivamente espaciais dos carros das duas marcas, em especial os Chevrolet, até que, em meados da década, eles ficaram meio parecidos e chegavam a confundir, de longe. Mais questão de gosto: o Ford Galaxie 1965, em especial o duas-portas e mais especificamente aquele do “motorzão”, é fantástico, maravilhoso. Não foi à toa que conquistou facilmente os brasileiros dois anos depois, apenas na versão de quatro portas com coluna central.
A reportagem de Expedito Marazzi na Quatro Rodas foi feita em 1963 e, por esse motivo, parou por aí. Muito mais haveria por vir, diz ele no final, o que realmente aconteceu, pois nós mesmos pudemos acompanhar.
A partir desse período, também, foram incorporados outros modelos às duas marcas, como já foi citado no início, desviando a principal atenção dos carros tradicionais, que nem sempre tinham nomes específicos.
Surgiram, então, disputas entre modelos, como Chevrolet Camaro X Ford Mustang, ou Ford Thunderbird X Chevrolet Corvette. Boas sagas. E se quisermos seguir na cronologia, podendo incluir até as nossas pelejas, como a eterna briga Chevrolet Opala x Ford Maverick. Esse, no entanto, é um (longo) assunto para futuras ocasiões.
GM
Nota do editor 1 – Esta matéria marca a chegada de Gabriel Marazzi ao time do AUTOentusiastas.
Nota do editor 2 – Matéria baseada na do autor para a revista Cultura do Automóvel, de sua propriedade, edição nº 47 maio de 2023.