Ainda estes dias, numa matéria desta coluna, surgiu a discussão sobre o surgimento de um fabricante nacional de carros. A discussão evoluiu, mas o mais perto que chegamos desta meta foi com a Gurgel Motores S.A., que chegou a ter o seu motor próprio, o Enerton, pouco antes de falir.
As dificuldades de se projetar e produzir carros de maneira independente ocorreram em muitos países e as tentativas foram muitas, com um grau de sucesso pequeno em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.
Há algum tempo eu tinha a intenção de falar sobre o Zunder 1500, da Indústria del Transporte Automotor SRL, que surgiu da iniciativa dos irmãos Nilson José e Eligio Oscar Bongiovanni, concessionários General Motors na cidade de Río Cuarto, província de Córdoba (a 240 quilômetros ao sul desta). O objetivo da empresa era produzir m carro argentino médio e econômico,
No leque que se abriu quando eu iniciei as pesquisas, uma fonte se destacou. Foi uma entrevista que Eligio Oscar Bongiovanni que, junto com seu irmão, vivenciou a aventura de tentar fabricar na Argentina dos anos 1960, concedeu a Bibiana Fulchieri, do suplemento “Temas” do jornal La Voz, publicada em julho de 2009. Tratou-se de um forte depoimento de como as coisas ocorreram.
Eligio Oscar Bongiovanni fala sobre o Zunder 1500
Sim, toda a difícil saga do Zunder 1500 deixou cicatrizes e causou muita mágoa, mas, mesmo assim Elgidio decidiu falar sobre o assunto, sem, no entanto, dizer: “Foi um fracasso, deve ser dito assim. E a verdade é que não sei por que há tanta insistência em falar do Zunder. O que você quer que eu diga? É melhor não falar de fracassos, certo?”
Assim começa o diálogo com Eligio Bongiovanni, um cavalheiro de Río de Cuarto com uma aparência refinada, elegante ao extremo, que já passou dos 80 anos “e há muito tempo!” Nessa deferência, ele aceita romper um silêncio de 50 anos, guardado ciosamente como um luto por seu falecido sonho chamado Zunder (“Foi assim que o batizamos porque soava bem, era curto e significava “faísca”), o carro que ele criou do zero, junto com seu irmão Nilson; e que ele fez com suas próprias mãos diante do olhar espantado de todos os vizinhos em Rio Cuarto, que espiavam a oficina de Bongiovanni na rua Rioja, como se examina um laboratório de gênios loucos. “Ainda estou convencido, depois de tudo o que nos aconteceu, de que é viável fabricar carros em pequena escala e de que haveria pessoas exigindo-os”, confessa Don Eligio em seu bar favorito.
“Meus avós maternos, na Itália, eram fabricantes de ferramentas para o campo; meus avós paternos, quando vieram para a Argentina, abriram uma fábrica de carruagens puxadas por cavalos, portanto, sempre houve industriais em minha família”, diz ele.
“Quando meu irmão e eu saímos do ensino médio na Nacional de Río Cuarto, estávamos muito interessados em tudo o que era mecânico, eletricidade, motores. Fomos para Córdoba para estudar em uma escola técnica preparatória que nos permitiria entrar na universidade. Passamos três anos estudando matérias de engenharia, mas meu pai achou que não tínhamos feito a escolha certa e nos preparou uma armadilha, dizendo: “Venham e ganhem dinheiro! Eu vou investir o capital. Foi assim que, em 1948, abrimos uma concessionária General Motors em Río Cuarto.
Naquele ano, o grande sucesso da Chevrolet veio das façanhas de Domingo “Toscanito” Marimón, que triunfou com seu 12 coupé no Gran Premio América del Sur Buenos Aires-Caracas.
“Fomos tão bem que chegamos a importar diretamente dos Estados Unidos”, conta Eligio, “mas meu irmão e eu sempre tivemos na cabeça a ideia de querer fazer algo. Se estávamos cercados de carros o dia todo, como não poderíamos fazer o nosso próprio?”
Na nova Argentina
Em abril de 1952, a revista Coche a la vista publicou um artigo no qual o nascimento do Institec foi mencionado da seguinte forma: “Na nova Argentina, nada ou muito pouco é impossível. Produziremos carros em massa. Tudo isso começou no Instituto Aerotécnico da cidade de Córdoba, cuja equipe está trabalhando ativamente na construção dos carros Justicialistas: um sedã de quatro lugares, uma caminhoneta com capacidade para sete pessoas e um carro pequeno de até 600 quilogramas. Fatos que, sem dúvida, marcam nossa nacionalidade e o progresso industrial da República”.
Nota do autor: ‘Justicialista’ era o nome do partido político de Perón, ou seja, mais um exemplo, ao lado do KdF-Wagen, de uso político em nomes de carros.
Esses veículos foram um marco na Argentina, pois podem ser considerados como as primeiras tentativas (quase) artesanais de produção em massa, promovidas pelo governo de Juan Domingo Perón, na I.A.M.E. (Industrias Aeronáuticas y Mecánicas del Estado). Antes desse evento, em 1945, a Fábrica Argentina de Automóveis havia sido criada por César Castano, cujo veículo, o Castanito, serviu de base para os Justicialistas.
Do início dos anos 1950, Eligio Bongiovanni lembra bem o surgimento da Institec e observa: “Em 1951, com Perón, as importações dos Estados Unidos foram cortadas porque a intenção era substituir o que vinha do exterior pela produção nacional, ideia muito boa, mas a Argentina não estava madura em capital ou, dito de outra forma, não havia dinheiro, e apareceram oportunistas e improvisadores, envolvendo-se como industriais “para o desenvolvimento”, com boas intenções, mas sem resultados.
Ficamos sem vender Chevrolets, mas tínhamos 30 funcionários qualificados que não queríamos demitir. Assim, suprimos as importações, tornando-nos uma oficina de reparos para veículos de guerra, ambulâncias e motores particulares…”.
Esta circunstância encorajou novamente o antigo sonho. Eligio rabiscou papéis, fez cálculos, acordava com o molde do Volkswagen na cabeça; que tanto se falava em Escarabajo (besouro, Käfer), com o qual um certo Ferdinand Porsche venceu o concurso da Associação Alemã da Indústria Automobilística, e em 1934 foi apresentado aos olhos do mundo como o queridinho do Salão Automóvel de Berlim em 1938.
Nasce uma faísca
No final da década de 1950, os irmãos Bongiovanni só precisavam trazer da Alemanha o coração Porsche do sonho Zunder, o resto estava pronto, como lembra Eligio: “Fizemos um modelo muito especial do carro para economizar muito dinheiro. O motor, a caixa de câmbio e o diferencial tinham que ser um bloco único [Nota do autor: a suspensão dianteira e os freios também vieram da Porsche]. Projetamos um chassi tubular reforçado com duas longarinas centrais de metal para melhor suportar o teto. Para a carroceria usamos plástico reforçado com fibra de vidro, moldado camada por camada.
O que eu mais gostei foi que desenhei os faróis em ângulo e levantei bem os para-lamas. Nossos operários aprenderam o processo rapidamente, compramos tambores de resina poliéster gigantes da Shell. Os freios eram a tambor hidráulicos nas quatro rodas, com freio de mão nas rodas traseiras, Até gravamos o “Z” em preto nas calotas cromadas.”
“Meu irmão foi à Alemanha e comprou 100 motores Porsche e, em 1959, o protótipo estava pronto. Se era bom? Eu não o qualifico, apenas lhe digo que enviaram um certo doutor Grupillo da fábrica de motores alemã a Río Cuarto para testar o Zunder e ele disse: “Está aprovado. Mas tenho uma dúvida: como vocês fizeram o som do motor por dentro? Tínhamos melhorado o Fusca, porque com esses motores arrefecidos a ar você pode ouvir o ruído, e fizemos uma parede dupla de fibra prensada para isolar o som.”
No final da década de 1950, houve várias tentativas muito ousadas de entrar no mercado nacional com “o carro da Argentina”, um intermediário, em tamanho e potência, entre os modelos americanos e europeus. Entre eles, alguns permaneceram como protótipos e outros circularam com sucesso misto, entre os quais podemos mencionar: Rycsa Mitzi B40, Gilda, Gauchito, Dinarg D200, De Carlo 600, Bambi.
[Nota do autor: a colega colunista do AE, Nora Gonzalez, escreveu a matéria (em duas partes) “Carros-Conceito Argentinos: Efêmeros, mas Interessantes”, que descreve alguns dos modelos citados acima. Ela falou rapidamente do Zunder que agora está sendo tratado em um detalhamento maior]
Dizem que quando o primeiro Zunder 1500 Sedan ficou pronto, muitos se aglomeraram ao redor da oficina de 60.000 m² dos Bongiovanni, que havia se tornado uma fábrica: “Industrias del Transporte Automotor”.
Mas a apresentação pública nacional do Zunder 1500 foi no luxuoso Hotel Palácio Alvear, na capital federal, em 1960, onde todos aplaudiram com entusiasmo, até mesmo o próprio gerente de projetos da Porsche, que não queria ficar de fora de um sucesso como esse.
Estreia e despedida
O slogan do Zunder 1500 era: “O carro que nunca muda porque é sempre novo”. Eligio se divertiu muito com isso: “É claro que ele nunca enferrujaria se fosse feito de plástico”, diz ele, mais do que divertido, e aí vem outra anedota incrível. “Acontece que na cidade de Pergamino (230 quilômetros a noroeste de Buenos Aires) havia uma concessionária Zunder e as pessoas estavam muito curiosas, mas também desconfiadas por causa da carroceria de plástico. Bem, o vendedor, cansado de explicar com palavras, decidiu pegar um revólver .22 e atirar no carro nas portas e não ficou nenhuma marca, as balas simplesmente ricochetearam”.
As demandas aumentaram, e os fãs eram os mais insistentes. Todos os dias havia gente interessada em ter o Zunder 1500 em suas concessionárias”, lembra Eligio, “mas o dinheiro arrecadado não era suficiente para trazer os motores da Alemanha, então saímos em busca de financiadores, e foi assim que Anselmo e Julián García, clientes muito bons, colocaram seu capital na fábrica, mas não houve como. Durante dois anos, produzimos cerca de 200 carros e vendemos todos, mas não conseguíamos pagar as dívidas e saímos desesperados para encontrar uma maneira de salvar a fábrica. O próprio governador de San Luís estava interessado em nos conceder um empréstimo para que pudéssemos levar a produção para lá, mas a oposição política vetou o empréstimo e, em 1962, fizemos uma licitação.
Tudo foi colocado em leilão, mas meu irmão não se resignou e continuou fazendo experimentos, fabricando um carro de cada vez. Ele lançou o cupê Zunder, acho que fez dois. Se, em vez de carros, tivéssemos feito galpões, ainda estaríamos em atividade. Mas o sonho se chamava Zunder”.
E assim termina o relato do Egidio sobre o sonho que “quase” deu certo. O texto original não tinha fotografias, eu as fui colocando para complementar o relato com imagens.
Julien Sanchez Garcia é um estudioso da indústria automobilística argentina, e possui dois Zunder sobreviventes que ele restaurou. Um é o bege que aparece em muitas das fotos que ele encontrou, como mostra a foto abaixo:
Ele expõe com orgulho os seus dois carros Zunder, o 1500 e o coupé:
Complementando o material apresentado segue o vídeo (15:06) “Zunder el auto fabricado em Río Cuarto” com entrevistas e um resumo da história dos Zunder:
Lembro que praticamente todos os vídeos podem apresentar legendas em seu idioma, pois o YouTube oferece a possibilidade de traduzir as legendas para muitos idiomas (é uma tradução por computador – ele traduz o que consegue entender do áudio original).
Para ativar a tradução de legendas ative a visualização no YouTube e siga os passos abaixo
Selecione o ícone de legendas (é retangular com linhas de pontinhos), pause o vídeo e:
1) Clique no ícone de configurações abaixo da tela do vídeo (roda dentada);
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4) Selecione o idioma desejado. Clique na tecla play e curta o vídeo.
Também apresento uma revista em espanhol editada para leitura na internet pelo sistema Issuu que tem um capítulo dedicado ao Zunder:
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