Esta é a continuação da Parte 1 desta matéria, quando nosso intrépido herói mostrou mais uma vez a que veio.
Sim, ele ficou nove meses internado num hospital depois do acidente na chegada, da Alemanha, a Santa Paula, sua cidade na Califórnia, EUA, situada a 100 km a noroeste de Los Angeles.
Ao chegar ao hospital as costas de Mira não eram nada além de ossos quebrados, pernas e braços fraturados, crânio também e diversas lesões internas. A equipe médica teve muito trabalho com ele e teve sucesso, pois Mira se recuperou bem daquele grave acidente, a tal ponto de um tempo depois reassumir sua função de comandante de jatos da Continental Airlines.
Mas como vimos na Parte 1, ainda no hospital ele entrou em contato com o fabricante do N 1700 para viabilizar ou sua recuperação ou a fabricação de um novo. Resultou que o avião acabou sendo meticulosamente restaurado!, o que foi um pequeno milagre dada a extensão dos danos no acidente, como mostra a foto abaixo:
A corrida aérea Londres-Nova York (ou vice-versa)
Este reide aéreo foi organizado pelo jornal londrino Daily Mail em comemoração do cinquentenário da façanha de 1919 perpetrada pelos ingleses John Alcock e Arthur Brown. Eles cruzaram o Atlântico sem escalas num biplano Vickers Vimy (um bombardeiro da Primeira Guerra Mundial da Força Aérea Real), de St. John’s, Newfoundland no Canadá, a Galway, na Irlanda, em menos de 16 horas. Por sua conquista, o capitão Alcock e o tenente Brown ganharam o prêmio de US$ 10 mil do Daily Mail, foram condecorados como cavaleiros e viram seus nomes entrarem para o hall da fama da aviação.
O curioso é que Alcock e Brown, chegando à Irlanda, sofreram um acidente ao pousarem num pântano e o avião afocinhar no solo mole.
O objetivo da corrida comemorativa era ir da GPO Tower, em Londres, ao Empire State Building, em Nova York, no menor tempo possível. Os participantes podiam voar em qualquer sentido e o Royal Aero Club (Aeroclube Real) da Grã-Bretanha e a National Aeronautics Association (Associação Nacional de Aeronáutica, doa EUA) supervisionaram a contagem do tempo em ambas as extremidades do percurso — no topo dos respectivos torre e arranha-céu — e o que aconteceu no meio do caminho ficou estritamente por conta dos participantes.
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A bolsa total de prêmios nas várias categorias foi de US$ 134.000 e esta corrida aérea transcontinental foi realizada entre os dias 4 e 11 de maio de 1969.
Correu e ganhou — de novo
E Mira cruzou o Atlântico de novo no N 1700 e ganhou a corrida aérea em sua categoria com o menor avião da prova, propulsionado pelo confiável motor VW 1200
Espantosamente, apenas três meses após sair do hospital onde ficara nove meses se recuperando dos graves ferimentos sofridos no acidente na Califórnia, Mira participa de uma corrida aérea transcontinental com o mesmo avião meticulosamente recuperado na fábrica e vence.
O tempo total computado entre o Empire State Building e a GPO Tower foi de 175 horas, 42 minutos e 7,11 segundos, englobando as horas efetivamente voadas, as escalas e as inevitáveis esperas por um tempo adequado para alçar voo para a escala seguinte.
Os pontos de partida e chegada, bem como as escalas do voo do Mira, conforme o mapa da rota, foram:
1 – Nova York – USA; 2 – Seven Isles – Canadá; 3 – Goose Bay – Canadá; 4 – Frobisher _ Canadá; 5 – Kulusuk – Groelândia; 6- Reykjavik – Islândia; 7 – Stormnoway Escócia; 8 – Glascow – Escócia; 9 – Brough Inglaterra; 10 – Lincoln – Inglaterra; 11 – Biggin, Londres – Inglaterra
Entrevista
Para detalhar mais esta façanha escolhi a entrevista (originalmente publicada em alemão) que o jornalista Philipp Stein fez com Mira Slovak. Nada melhor do que deixar Mira contar como este voo único foi realizado.
PHILIPP STEIN: Mira, você ganhou o voo transatlântico em sua classe e, com ele, 1.000 libras esterlinas. Como você se sente?
MIRA SLOWAK: Nada mal no que diz respeito ao dinheiro. Mas o mais importante é o fato de alguém reconhecer a conquista. E é simplesmente maravilhoso que os ingleses tenham tanto respeito por certas coisas.
STEIN: O “Spirit of Santa Paula” é a menor aeronave que já cruzou o Atlântico?
SLOWAK: Não sei exatamente como foi no passado. Pelo que sei, havia uma aeronave com 105 cv. E acho que esse era o menor até agora. E agora é o motor da VW. Duvido muito que seja possível reduzir esse tamanho. Eu realmente tenho grandes dúvidas sobre isso. É praticamente impossível.
STEIN: Sei que seu avião é consideravelmente menor do que aquele em que Alcock e Brown fizeram seu primeiro voo no Atlântico.
SLOWAK: Sim, sim. Eu também diria que é a menor aeronave que já cruzou o Atlântico.
STEIN: Sem dúvida, foi o menor desta corrida.
SLOWAK: Sim. Mas eu diria que também é a menor aeronave da história da travessia do Atlântico.
STEIN: Como foi o funcionamento do motor VW?
SLOWAK: Fantástico. Quando eu chegar em casa, vou cromá-lo e colocá-lo em algum lugar. Funcionou perfeitamente. Ronronava como um gatinho. E não houve nenhum problema durante todo o percurso.
STEIN: O motor foi preparado de alguma forma?
SLOWAK: Não. Ele tinha apenas uma característica especial. Tinha ignição por magneto. Esse é um regulamento para motores de avião. E o carburador era de fluxo ascendente de baixo para cima, em vez de descendente como nos automóveis. Mas todo o resto era padrão. Projeto padrão da VW.
STEIN: Era um motor de 1,2 litro do VW Beetle 1200, não era?
SLOWAK: Sim, 1,2 litro, mas não tinha 34 cv. Devido a certos fatores, três a quatro cv são perdidos no ar. Portanto, na verdade, só conseguimos 30 cv com ele.
STEIN: Que combustível você usou?
SLOWAK: O motor funciona melhor com gasolina de aviação 80/87 octanas. Mas ele também pode queimar a 100/115. E uma vez, durante uma parada em Kulusuk, na Groenlândia, cheguei a abastecer com combustível para geradores de energia. Isso também funcionou.
STEIN: Como o motor reagiu a isso?
SLOWAK: Bem, não posso dizer exatamente que ele ficou entusiasmado. Ele funcionou um pouco irregularmente. É claro que, pela vibração, percebi que ele não estava muito de acordo. E quando fiz outra parada na Islândia, imediatamente abasteci com a gasolina certa. O motor voltou a se sentir bem imediatamente.
STEIN: Esse foi o episódio mais emocionante do seu voo ou houve outras ocasiões em que você teve uma sensação estranha?
SLOWAK: Na verdade, toda a viagem foi tranquila. Preparo todas as viagens do ponto de vista da segurança. No que diz respeito à emoção e às dificuldades, só tive um problema de fato. Foi o clima: gelo, neve, chuva. Mas, no geral, foi bastante suportável e não muito emocionante. Ok, eu poderia dramatizar. Eu poderia dizer como foi difícil, difícil e desconfortável. Mas, afinal, era isso que eu estava esperando.
STEIN: Seu avião era tão pequeno que você não podia nem levar uma muda de roupa?
SLOWAK: Não, eu não tinha muito espaço disponível. Era suficiente apenas para o kit de coisas para se lavar, o kit de barbear e a escova de dentes. Às vezes, eu levava algo para comer, uma costeleta, por exemplo. Mas eu tinha tão pouco espaço para me mover que não conseguia alcançá-lo. Eu diria que era bastante confortável por duas ou três horas. Mas se você fica sentado lá por dez ou doze horas por dia, não é exatamente aconchegante.
STEIN: Quais são seus planos para o futuro?
SLOWAK: Bem, primeiro vou voltar para casa para relaxar e descansar.
E a vida continuou
Mira continuou a voar para a Continental Airlines por muitos anos e, por fim, passou dos 707 para os DC-10 e 747. Ele também continuou a fazer shows acrobáticos em seu Bücker e também com seu planador LF-107 Lunak.
Em 1971, Mira comprou um Bell P-39 Air Cobra e o modificou para corridas. O avião foi patrocinado por George Mennen, da empresa de cosméticos Mennen, e era chamado de “Mr. Mennen”. O avião chegou tarde demais para competir nas corridas de Reno em 1972, mas Mira teve permissão para voar em uma série de exibições.
Mira se envolveu em uma longa disputa com a FAA (sigla em inglês de Administração Federal de Aviação) quando um problema mecânico o forçou a pousar numa pista de taxiamento. Mira contestou sua suspensão até a Suprema Corte dos EUA!
Mira se aposentou da Continental Airlines em 1986, aos 56 anos de idade, e começou uma carreira lucrativa de importação e venda de aviões. Ele foi particularmente bem-sucedido com o avião de treinamento a jato Delfin L29, construído na República Tcheca.
No final de sua carreira, Mira havia registrado 38.585 horas de voo em todos os tipos de aviões imagináveis, desde biplanos revestidos de tela a grandes jatos jumbo multimotores e tudo mais.
No início dos anos 2000, alguns dos hidroplanos antigos foram restaurados e participaram de corridas de exibição nos eventos em toda a região noroeste. Em 2009, Bill Boeing Jr. mandou construir uma réplica exata do Miss Wahoo para participar dessas exibições. Em 2011, aos 81 anos, três anos antes de sua morte, Mira assumiu o volante da réplica do Miss Wahoo e deu suas últimas voltas em um hidroplano.
Ele foi orientado a ficar abaixo de 90 mph (145 km/h). Mira abriu o acelerador para mais de 140 mph (225 km/h). Os proprietários ficaram no cais rindo de si mesmos por pensarem que Mira conseguiria se conter. Seus fãs ficaram na praia torcendo por seu herói pela última vez. Ele os inspirou a viver sua vida ao máximo e eles o amavam por isso.
Ingrid Bondi estava ao lado do seu companheiro Mira na manhã de segunda-feira, 16 de junho de 2014, quando ele faleceu. Piloto até o fim, Mira esperou até as 7h47 da manhã para partir. A pedido de Mira, não houve cerimônia fúnebre. Ele pediu que suas cinzas fossem espalhadas sobre o “quente” Oceano Pacífico — ele disse que passou muito tempo voando sobre o “frio” Atlântico e que queria terminar em águas quentes.
Richard Bach, famoso escritor de aviação (autor do conhecido livro “Fernão Capelo Gaivota”), fez um tributo a Mira Slovak: “Que vida grandiosa ele viveu! E que alegria à vida que ele retomou! Nosso prazer voa com ele, magnífico, destemido. Parabéns por sua vida, Mira. Bom trabalho!”
Como um tributo final ao Mira Slovak eu apresento o vídeo (12:23) “The Legend of Mira Slovak” (A Lenda de Mira Slovak) produzido pela MontWork e o Hydroplane & Raceboat Museum (Museu dos hidroplanos e barcos de corrida) que é uma resenha de sua vida, mostrando corridas de hidroplanos, seus acidentes, detalhes da vida do Mira como a sua participação no programa “Esta é a sua vida”, etc. Quem leu a matéria até aqui terá um fecho muito interessante assistindo este vídeo:
Lembro que praticamente todos os vídeos do YouTube podem apresentar legendas em seu idioma, pois o YouTube oferece a possibilidade de traduzir as legendas para muitos idiomas (é uma tradução por computador, ele traduz o que entende do texto falado).
Para ativar a tradução de legendas ative a visualização no YouTube e siga os passos abaixo:
Selecione o ícone de legendas (é retangular com linhas de pontinhos), pause o vídeo e:
1) Clique no ícone de configurações abaixo da tela do vídeo (roda dentada);
2) Clique em Legendas/CC;
3) Clique em “Traduzir Automaticamente”;
4) Selecione o idioma desejado. Clique na tecla play e curta o vídeo.
AG
(Atualizada em 2/4/2024 às 12h00, corrigida a data do voo de John Alcock e Arthur Brown que na verdade foi em 1919)
Sites pesquisados para a realização desta matéria em duas partes: cfiamerica.com, com uma importante coletânea de materiais; thunderboats.ning.com com o trabalho de David D. Williams; theredarchive.com com o trabalho de Average Guy (pseudônimo); Wikipedia; Wikimedia, etc.
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