De início vamos analisar a foto de abertura feita na década de 1960. Em primeiro e terceiro planos temos dois veículos de esteira adequados ao uso na neve. Em segundo plano está o valente VW Fusca “Antarctica 1” (na grafia original em inglês), herói desta matéria. Ao fundo está o que parece ser um avião C-47/Dakota ou DC-3 (versões militares ou civil respectivamente). No seu torso está a sigla CCCP – das palavras, em russo, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, indicando ser um avião “russo”, seguida de um número que provavelmente é de patrimônio. O tal avião estava equipado com esquis nos trens de pouso para operação na neve.
A Cortina de Ferro ainda estava em pé e a União Soviética ainda existia e era muito presente na Antártida. A Cortina de Ferro começou a ruir em 1989, quando caiu o Muro de Berlim. Seu fim definitivo foi em 1991, com o fim do governo Mikhail Gorbachev, da União Soviética.
Eu estive na lá em 1975, e observei nos pátios dos aeroportos de Moscou e Leningrado (hoje novamente São Petersburgo) que havia muitos aviões que eram cópias deslavadas de aviões ocidentais — adaptadas às deficiências tecnológicas da União Soviética. Pois é, então eu achei que o tal DC-3 da foto podia ser uma cópia “pirata” russa do bom e velho DC-3.
No papel, o Lisunov Li-2 (nome do avião russo que também teve várias versões) parece um rival do DC-3, especialmente com a difícil história de relacionamento URSS-Estados Unidos, mas na verdade era uma cópia licenciada — em plena “Guerra Fria”. Foi o engenheiro aeronáutico Boris Pavlovich Lisunov, quem adaptou o DC-3 às condições extremas de uso na União soviética (como é o caso dos aeroportos gelados da Sibéria) e deu seu nome ao avião russo. Ele passou dois anos nas instalações da Douglas Aircraft Company entre 1936 e 1939, depois que uma licença de produção foi concedida ao governo da União Soviética. Pois então, o que vemos na foto é um Lisunov Li-2, que é um avião fabricado na União Soviética igualzinho ao DC-3! Nesta eu tinha me enganado redondamente…
Como VW Fuscas foram parar na Antártida?
O VW Fusca, conhecido por seu design revolucionário e confiabilidade, já era um ícone global na década de 1960. Com seu motor traseiro, construção leve e estreitos pneus 5.60-15que se destacavam em condições de neve, o Fusca era surpreendentemente adequado para estradas geladas e condições de inverno.
Naquela época a Volkswagen havia informado seus concessionários em todo o mundo para procurarem oportunidades de promover essas habilidades. Foi então que em novembro de 1962, Ray McMahon, jovem engenheiro que seria o líder da expedição da Austrália na Antártida de 1963, pegou o telefone e ligou para a representação central da Volkswagen na Austrália para solicitar a doação de um VW Fusca para a sua expedição na Antártida. Encantada com a perspectiva, a Volkswagen australiana concordou em fornecer um VW Fusca gratuitamente, junto com uma câmera cinematográfica e filme para documentar seu desempenho. E seria um VW Fusca fabricado na Austrália.
A Austrália tem um grande território na Antártida cuja posse está ligada à sua constante presença nele. Veja o mapa:
Um VW Fusca modelo 1962, segunda série, vermelho Rubi foi selecionado aleatoriamente de um lote fabricado em dezembro de 1962. Sua cor distinta garantia visibilidade na paisagem nevada. A Clayton Service Workshop executou então um completo processo de “invernização”, uma técnica desconhecida na quente Austrália, tornando-o adequado para uso em clima extremamente frio.
O VW Fusca recebeu mancais de virabrequim especiais de qualidade europeia adequados para condições extremas de baixa temperatura, semelhantes aos da Noruega e Finlândia. Além disso, recebeu óleo adequado para inverno extremo (viscosidade ultrabaixa), uma bateria de maior capacidade e vários acessórios como uma barra de reboque e bagageiro de teto. No entanto, o carro era essencialmente original, tendo apenas passado por um processo de “invernização” semelhante ao que todos os VW Fuscas vendidos em climas frios originalmente passariam antes da venda.
O desembarque na Antártida foi bem mais complicado, com o VW Fusca sendo colocado sobre uma balsa precária que foi rebocada até a margem por um veículo anfíbio e lá desceu da balsa por seus próprios meios andando sobre pranchões dispostos entre a balsa e a margem.
Como sugerido no subtítulo, o Besouro esteve sim várias vezes perto de pinguins, como mostra a foto abaixo:
O VW Fusca “Antarctica 1” passou um ano inteiro na Base de Mawson, competindo com equipes de trenós puxados por cães, veículos Polaris médios sobre neve e veículos maiores sobre esteiras, como Weasels, Caterpillars e Snowtracs com motor Porsche 356. Submetido a neves sufocantes, frio intenso de até -50 graus Celsius e ventos cortantes de 200 km/h, ele provou ser excelente para circular pela estação e fazer pequenas travessias no território coberto de gelo. Ele até subiu colinas cobertas de neve que eram difíceis de escalar a pé por causa da neve fofa que afundava a cada passo.
Por ser arrefecido a ar, ele nunca teve problema de congelamento da água no motor e sistema de arrefecimento e, por ser hermeticamente fechado, era imune à neve em pó que em Mawson era tão fina que podia soprar por furos do diâmetro de um alfinete.
Os cientistas logo se apaixonaram pelo VW Fusca e o apelidaram de “Terror Vermelho”, mas oficialmente era o “Antarctica 1”. A Volkswagen Austrália orgulhosamente o chamou de “o primeiro carro de produção a visitar a Antártida”.
Ele foi usado para uma infinidade de propósitos e, dentro de suas limitações, provou ser extremamente útil, de acordo com as pessoas da ANARE que o utilizaram. Com correntes de neve nas quatro rodas (só os pneus traseiros eram Dunlop Wintertreads de inverno), ele podia ser usado para tudo, desde transportar suprimentos para equipes de campo, rebocar esquiadores ao redor da base, transportar VIPs de e para o aeródromo em Rumdoodle, até dirigir glaciologistas três ou quatro quilômetros mar adentro no gelo do mar para testar sua espessura (!?!).
Como vimos, os Snowtracs, como os estacionados junto ao VW Fusca na foto abaixo, tinham motor Porsche:
Após um ano de bons serviços na Antártida, o corajoso VW Fusca vermelho logo estava pronto para voltar para casa. Ele foi substituído pelo “Antarctica 2”, um Fusca mais novo, pintado em um impressionante laranja Internacional e com algumas atualizações com base no aprendizado do “Antarctica 1”. Em especial no que se refere à suspensão dianteira que sofreu muito no “Antarctica 1”, inclusive devido às baixas temperaturas que ultrapassavam o limite de resistência ao frio das soldas empregadas. No “Antarctica 2” foi instalado um sistema reforçado de fixação da suspensão dianteira e um reforço na fixação do cabeçote do chassi.
No entanto, este novo carro, que também foi fabricado na Austrália, logo enfrentou um contratempo severo quando foi enterrado por uma nevasca violenta, tendo inundado o motor com neve fina e especialmente penetrante que se infiltrou nos mancais do virabrequim! O dano foi irreparável para as condições da oficina mecânica de base e ele foi devolvido à Austrália no verão seguinte.
Os VW Fuscas vermelho e laranja se encontraram no “porto” improvisado. Na foto abaixo o laranja estava sendo descarregado de uma balsa nova que era anfíbia, sendo puxada para a terra pelo trator vermelho que aparece no canto direito inferior da foto. O laranja tinha o mesmo logotipo circular da ANARE nas portas e também recebeu uma placa especial “Antarctica 2”; ele também tinha um bagageiro no teto. Ao fundo se vê o navio Nella Dan que operou no apoio da Base Australiana na Antártida por muitos anos.
Antes do embarque do vermelho foi possível tirar uma foto dos dois que permite uma comparação:
Surpreendentemente, o substituto “Antarctica 3” viria a se tornar o mais confiável e duradouro dos Fuscas da frota australiana oficial. Sua cor também era laranja, mas de uma tonalidade levemente diferente. Ele recebeu um logotipo da expedição nas portas, agora triangular, além de um adesivo com bandeira da Austrália nas suas laterais.
Já não tinha uma placa com seu número, nem um bagageiro de teto. A vedação dos mancais do motor foi melhorada para evitar a entrada da insidiosa neve micropulverizada da Antártida, com isto se evitou o problema do Nº 2. O Nº 3 também foi “invernizado” como os outros e também tinha a suspensão dianteira reforçada para enfrentar as irregularidades do piso (geralmente gelo e neve) e das baixas temperaturas,
Com este terceiro carro as coisas foram se tornando rotina. Um VW Fusca na base já não era novidade, e o Nº 3 acabou sendo incorporado ao material rodante da base sem distinção alguma. E foi assim que ele prestou seus serviços por vários anos.
Antarctica 4… e três quartos?
No entanto, há outro capítulo final na história do VW Fusca na Base Antártica Australiana. Enquanto os VW Fuscas “Antarctica 1, 2 e 3” foram os VW Fuscas oficiais fornecidos pela Volkswagen da Austrália, Mark Forecast, um cientista da ANARE, viu o valor desses veículos durante a expedição de 1964 e, em 1967, e trouxe seu próprio VW Fusca 1957, oval, para a Antártida, depois de resgatá-lo de um ferro-velho e consertá-lo. Este VW Fusca, informalmente conhecido como “Antarctica 4 e três quartos”, tem a distinção incomum de ser provavelmente o único Fusca “restante” na Antártida. O Antarctica 4 e 3/4 teve um fim aquático quando afundou no gelo fino perto da geleira Forbes, tornando-se parte das profundezas geladas e quase tirando a vida de Mark e seu colega.
Uma foto histórica: a menos de 100 metros de onde o VW Fusca do Mark mergulhou nas águas geladas. Minutos depois desta foto, que foi feita com o disparador temporizado da câmera fotográfica do Mark, ambos os passageiros do Fusca estavam pulando fora do carro e lutando por suas vidas. O VW Fusca mergulhou até à profundidade de 70 metros.
Seguramente a história destes VW Fuscas não acaba por aqui, ainda há muito para contar sobre eles e sobre a repercussão de seus feitos depois que voltaram para a Austrália, coisa que vamos contar futuramente. Sem esquecer da repercussão através das propagandas que a VW publicou.
Lembram da câmera de cinema e filme para documentar seu desempenho do Nº 1? Sim, foram filmadas algumas cenas na Antártida que acrescidas de material filmado na Austrália resultaram no vídeo (09:38) “Volkswagen Beetle at Mawson Station Antarctica (1963)” abaixo:
Lembro que praticamente todos os vídeos do YouTube podem apresentar legendas em seu idioma, pois o YouTube oferece a possibilidade de traduzir as legendas para muitos idiomas (é uma tradução por computador, ele traduz o que entende do texto falado).
Para ativar a tradução de legendas ative a visualização no YouTube e siga os passos abaixo:
Selecione o ícone de legendas (é retangular com linhas de pontinhos), pause o vídeo e:
1) Clique no ícone de configurações abaixo da tela do vídeo (roda dentada);
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4) Selecione o idioma desejado. Clique na tecla play e curta o vídeo.
AG
Para a redação desta matéria foram consultados em especial os seguintes sites: clubvw.org.au com o trabalho de Phil Matthews; calumgillies.com com o trabalho de Calum.
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