Eu tenho um interesse muito grande sobre as “Histórias Volkswagen” dos países onde esta empresa se estabeleceu. Já falamos, por exemplo, da trajetória da Volkswagen no México.
Mas desta vez vamos falar de uma história bem diferente, que continua se desenrolando num país vizinho: o Uruguai, um exemplo de sucesso familiar na condução de uma empresa que há 74 anos promove o sucesso da marca no mercado uruguaio, agora em sua quarta geração.
No mapa-múndi abaixo, publicado no livro “Der Käfer I”, de Etzold, publicado em 1989 são mostradas as localidades onde o VW Fusca foi produzido no mundo. O Uruguai comparece com um asterisco que indica “importador independente”:
No contexto das comemorações do 29º Dia Mundial do Fusca eu fiz contato com um amigo uruguaio de muitos anos, Andrés Tenca. Nas conversas surgiu a questão da história da Volkswagen no Uruguai e o Andrés se prontificou a escrever sobre isto, e assim surgiu a matéria que se segue:
Volkswagen no Uruguai, um caso de família de sucesso
Por: Andrés Tenca
Há alguns anos comecei a pesquisar e coletar dados da Volkswagen na tentativa de dar outra chance ao “velho” Fusca da família, um sedã 1975 1500.
Foi assim que tive a oportunidade de conhecer meu amigo Alexander Gromow que hoje me dá a honra e a responsabilidade de escrever estas linhas.
Escrever a história da Volkswagen no Uruguai é escrever sobre a empresa Julio César Lestido S.A., representante da marca desde 1950.
A visão de um empreendedor
Terminada a Segunda Guerra Mundial, o engenheiro Heinrich Nordhoff, recém-empossado como diretor-geral da Volkswagen em Wolfsburg, decidiu expandir a marca pelo mundo e conquistar o mercado das Américas.
Foi com esse propósito que esteve em Buenos Aires onde recebeu a visita do empresário uruguaio Julio César Lestido, assinando o contrato de representação exclusiva com a Volkswagen Werke AG em 21 de abril de 1950.
Com isso a Julio César Lestido S.A. se tornou a terceira representante da Volkswagen no mundo, depois da Holanda e da Suíça.
Os primeiros 120 VW Escarabajos, como eram chamados no Uruguai, chegaram ao porto de Montevidéu no navio TS Tacoma diretamente da Alemanha:
Observem na foto acima que os carros vinham sem os para-choques e seus suportes, eles eram montados depois nas oficinas da companhia.
O VW Escarabajo gerou na sociedade uruguaia daquela época uma mudança radical sem precedentes no conceito e formato do automóvel, aproximando-o de mais pessoas.
O mercado automobilístico era constituído por marcas norte-americanas, como Chrysler, Ford e General Motors, ou pelas marcas europeias Peugeot e Mercedes-Benz, veículos topo de linha e com elevado consumo de combustível.
Exposição e vendas
Julio César Lestido montou um salão de vendas na esquina da Avenida 18 de Julio com Acevedo Diaz, no centro comercial de Montevidéu, capital da República Oriental do Uruguai.
Propaganda
O sucesso foi acompanhado por uma forte campanha publicitária. Desde 1950 o VW Escarabajo foi anunciado como: “Vida longa, seguro, poderoso, elegante, econômico, confortável”.
A estrutura empresarial já estava montada e em pleno funcionamento e o maravilhoso VW Escarabajo veio para ficar, vendendo, onze anos depois, mais de 1000 unidades num ano, um número totalmente atípico para o mercado de automóveis uruguaio da época.
A Julio César Lestido S.A. participou em grande estilo no Grande Salão do Automóvel de Montevidéu de 1962, como mostram as fotos abaixo (Fonte: “Blog fotos de Montevideo antíguo”):
Nova fábrica para a montagem a partir de CKD
Em junho de 1962 Julio Manuel Lestido, filho de Julio César, adquiriu a antiga fábrica de óleo na cidade de Nueva Palmira, Colônia (distante 264 km de Montevidúu), que foi convertida para a montagem de automóveis.
Até então, os VW Escarabajos vinham montados, recebendo alguns acabamentos na fábrica localizada na esquina de Acevedo Diaz e 18 de Julio, em Montevidéu, onde estava o showroom.
Em setembro de 1962, os primeiros conjuntos CKD já foram recebidos no porto em caixas de madeira, vindas da Alemanha, para serem montados na nova fábrica de Nueva Palmira:
Segundo informação da Lic. Micaela Cardoso – Assistente de Comunicação e Marketing da Lestido, na fábrica de Nueva Palmira foram fabricados entre 4.800 e 5.000 VW Escarabajos, sendo que a última série foi desenvolvida em 1987. O número de pessoas que ali trabalhavam era de 480. Lembrando que o processamento de componentes enviados na forma de CKD – Completely Knocked Down – totalmente desmontados – equivale a uma fabricação exceto a parte de estampagem das peças o que já vem pronto nos conjuntos para a montagem local.
Localizando as instalações da Lestido num mapa do Uruguai temos:
Em uma tentativa de promover o desenvolvimento da indústria nacional, em 1970 foi criada a comissão da indústria automobilística e foi aprovada a lei da “nacionalidade”, o decreto 128 de 13 de março de 1970, que estabeleceu que 30% dos componentes dos carros deveriam ser de produção nacional e os 70% restantes poderiam ser estrangeiros.
Assim, estofados, capas, baterias, cabos, vidros e suportes de para-choque, de produção local, passaram a vir de Montevidéu para a fábrica em Palmira.
Em 1973, o VW Brasília, duas e quatro portas, foi adicionado à produção, trazendo pela primeira vez carros fabricados no Brasil para o Uruguai.
Ironicamente, ainda não consigo encontrar uma explicação lógica, com a fábrica da Volkswagen já estabelecida no Brasil, o Uruguai continuou a importar VW Escarabajos e VW Kombis da Alemanha. Dessa forma, não é incomum encontrarmos hoje carros alemães e brasileiros fabricados no mesmo ano convivendo pelas ruas do Uruguai.
Na década de 1980, entraram no país os modelos 1300 L e 1600 de dupla carburação, modelos em que se lia “FUSCA” na tampa do motor, denominação de origem que se popularizou até hoje.
A fábrica conseguia trabalhar até três turnos com um total de 400 trabalhadores e montando até 24 unidades por dia.
Últimos VW Escarabajos para o Uruguai
Infelizmente para seus fãs, a chegada dos novos modelos Passat e Gol acabou, no Uruguai, com a era comercial do nosso querido VW Escarabajo encerrando a importação com algum modelo mexicano.
Infelizmente o modelo “Itamar” não chegou ao Uruguai e os modelos mexicanos de “Última Edição” foram excepcionalmente raros.
No início da década de 90 chegaram do Brasil os últimos VW Kombis com motores Volkswagen Boxer, acabando com a era dos motores arrefecidos a ar no Uruguai.
Clube de fãs
Em 2012, para comemorar o 50º aniversário do “VW Escarabajo 1962” (o primeiro montado no Uruguai), um dos modelos mais populares, o Encontro Sul-Americano de VW Escarabajos foi organizado em Punta del Este, com a participação de 250 carros de toda a região e mais de 1.500 espectadores.
Durante este evento foi feito um logotipo VW com os carros participantes e meu carro estava lá:
Meu carro foi montado pela Lestido a partir de CKD brasileiro. Esclarecendo: em 1973, o modelo VW Brasília foi introduzido, mas os VW Escarabajos em CKD alemães ainda estavam sendo importados. Em 1975, foram importados modelos brasileiros, mas eles coexistiam com os alemães. Não há modelos brasileiros anteriores. A partir de 1976, somente CKDs brasileiros.
Embora a produção tenha sido descontinuada e o modelo tenha deixado de ser importado há quase 40 anos, o Fusca ou Escarabajo, como vocês preferirem chamar, goza de grande popularidade e não é incomum existirem reuniões de fãs.
Todo dia 22 de junho, ativistas do “Club Uruguayo del Fusca” se reúnem para celebrar o “Dia Internacional do VW Fusca” com passeios e comboios pela cidade de Montevidéu.
Andrés Tenca
Nasceu em Montevidéu, Uruguai, em 1976.
Formado em Ciências Biológicas pela UDELAR – Univerdidad de la República, com doutorado nessa área, trabalha em uma empresa de alimentos.
É mecânico e funileiro amador. Apaixonado por carros desde criança, atualmente está trabalhando na restauração de seu VW 1500 sedã 1975 vermelho.
Agradeço ao Andrés por esta participação falando sobre a Volkswagen no Uruguai e a Julio César Lestido S.A. que continua ativa e líder no mercado uruguaio.
O Andrés contou uma interessante curiosidade. Em 1939 seu bisavô comprou um Marmon, carro de luxo americano de oito cilindros, que na época era importado pela Julio César Lestido S.A. que já tinha experiência na importação e venda de carros no Uruguai. A decisão do Lestido de representar a Volkswagen provocou seu sócio a dissolver a sociedade. Sem dúvida Lestido foi um visionário, naqueles tempos ninguém confiava nos veículos Volkswagen, mas a história mostrou que ele estava certo.
Continuo interessado em divulgar as histórias da Volkswagen nos diferentes países onde chegou a montar ou produzir VW Fuscas e espero que se possa logo publicar outra aqui na coluna.
A foto de abertura mostra um caminhão Volkswagen da Lestido usado para entregas de carros novos, estacionado em frente da concessionária Lestido em Montevidéu, carregando um VW Escarabajo antigo e um New Beetle, mostrando a longevidade desta empresa bem-sucedida.
AG
Nota de alteração: em 12/07/2024 às 13h40 foi acrescentada, abaixo da foto da fábrica de Nova Plamira um esclarecimento sobre a quantidade de veículos fabricados lá. Esta informação foi obtida pelo Andrés junto à Lestido.
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