O CD Panhard LM64 nunca terminou a corrida para qual foi concebido, mas sua presença, sem dúvida, foi muito importante. A aerodinâmica ainda não era algo levada a serio em 1964 como como hoje, mas a simples ideia de pegar um carro pequeno e com motor minúsculo e decidir competir em uma prova de grandes monstros já se torna algo notável e curioso.
Engenheiros têm uma certa admiração por soluções diferentes e novas, e a Panhard era uma empresa francesa que tinha vários deles em sua folha de pagamento.
O carro teve sua silhueta definida para a reta de Mulsanne, pouco se importando se o motor não teria potência para fazê-lo um dos mais velozes na corrida, mesmo assim atingia 221 km/h com 79 cv, algo notável. A reta tinha 6 km antes de ser alterada com a inclusão de duas chicanes em 1990, e hoje são retas de 2 km aproximadamente, intercaladas pelas chicanes entre elas.
Imagine então que 60 anos atras ainda se fazia muita coisa na base do improviso, principalmente em carros de corrida, mas a Panhard projetou a forma da carroceria com auxilio de computadores, desde uma ainda primitiva analise de dinâmica de fluidos — para estudar o efeito de ventos laterais — ate prever a flexibilidade das suspensões em altas velocidades. A profundidade do pensamento investido nesse carro estava muito acima do que uma equipe de corridas fazia naquela época, principalmente com a verba de um fabricante de pouco volume como a Panhard.
O cérebro por trás do carro era Charles Deutsch, de onde vem a sigla CD do carro. Nascido em 1911 próximo a Paris, herdou de seu pai o gosto pelo desenho, a trabalhou como fabricante de carruagens, criando seu estilo e estabelecendo as bases para construir suas carrocerias na empresa que seu pai fundou, a Maison Deutsch.
Era um devorador de literatura sobre veículos, técnicas de fabricação e dinâmica, principalmente. Em 1935 se formou na L’École Polytechnique e foi trabalhar como engenheiro civil no departamento de estradas e pontes do governo francês. Foi sendo promovido e chegou ao cargo de ser engenheiro-chefe, em 1966, quando há muito já trabalhava com carros.
Mas voltando um pouco na historia, em 1929 seu pai faleceu e, na dificuldade de administrar e estudar, ele e a mãe venderam a Maison Deutsch para René Bonnet, mas não o imóvel. Bonnet tornou o local uma oficina e concessionária Citroën, e Deutsch morava no andar de cima.
Amigos que eram, discutiam muitas coisas, e nisso o carro objeto dessa matéria nasceu. Em março de 1938 apresentaram um carro desenvolvido em 17 meses, um roadster baseado no Citroën Traction Avant, batizado DB1. Depois desse veio um cupê pessoal de Deutsch, mas que só foi completado depois da Segunda Guerra Mundial.
DB foi reconhecida como marca apenas por acordos verbais, naquela França precisando se recuperar da destruição da guerra, já que Deutsch não poderia ter outra atividade remunerada a não ser seu trabalho para o governo. Nunca houve acordo formal entre ele e Bonnet, mas ambos eram donos da DB. Em 1949 veio o primeiro carro com mecânica Panhard, e venceram a categoria Índice de Performance em Le Mans.
O regulamento era diferente, permitindo mais variedade de carros, apesar do risco que isso pudesse trazer. Esse Índice era prestigiado, e era também conhecido como Índice de Eficiência, onde se levava em conta velocidade, peso e consumo em velocidades de corrida, além de se considerar o coeficiente de arrasto, Cd — coincidentemente as iniciais de Charles Deutsch.
Nota do autor: nos países anglófonos usa-se Cd – coefficient of drag, enquanto na França e aqui é empregado Cx – coeficiente de resistência aerodinâmica.
Sucessos foram obtidos, alguns com Bonnet pilotando, e para 1959 o Índice passou a ser baseado em eficiência térmica, e o DB em Le Mans atingiu 10,9 km/l com motor de 744 cm³. Certamente era acelerador no fundo o quase todo tempo.
O CD Panhard tinha desenho sui generis, principalmente pelos estabilizadores verticais, ausente nos anos anteriores, e motor de dois cilindros horizontais e opostos arrefecido a ar de 848 cm³, virabrequim roletado, cilindros de liga de alumínio, molas de válvulas de torção em vez de helicoidais. Esse motor tem mais detalhes explicados aqui nesse texto do Milton Belli.
Mas a marca já estava fraca financeiramente, e Bonnet fez um acordo com a Renault — pelo que se sabe sem conhecimento de Deutsch — que recebeu uma carta do seu advogado em 1961 informando o fim da sociedade.
Deutsch não se fez de rogado, e com sua amizade com Jean Panhard, prosseguiu com a empresa DB, contratado agora de forma oficial pela Panhard para fazer cinco carros em três meses para Le Mans. Conseguiram e bateram o carro de Bonnet feito com apoio da Renault, e foram também campeões franceses. Cento e cinquenta carros de rua foram vendidos em 1963, com desenho que foi a base para o LM64.
Em 1963, CD equipou seu carro como motor DKW numa carroceria quase igual ao carro dessa matéria, mas foi no ano seguinte que o LM64 viria a se tornar essa ultima tentativa de mais um bom resultado da marca CD-Panhard.
Apenas dois LM64 foram fabricados, e o desenho da carroceria feito por Lucien Roamni e Robert Choulet, Ambos, depois de um tempo, foram responsáveis pelo Matra MS640, bastante similar. Facilmente identificado pelos estabilizadores verticais, tinha também uma capa na parte inferior com um túnel central, que gerava baixa pressão nessa área, puxando o carro de encontro ao solo, com sustentação negativa. A parte traseira da carroceria inferior tinha forma de difusor, para acelerar o ar e puxar o fluxo da parte inferior do carro, mesma solução que hoje em dia tem aplicação em diversas categorias de carros de corrida. Pioneiros, portanto.
O pequeno motor de dois cilindros horizontais e opostos — como um motor VW boxer arrefecido a ar dividido ao meio — só pôde ser usado devido ao uso de um supercarregador Sferma, de modo a permitir usar a regra de equivalência de cilindrada para motores supercarregados que era multiplicar a cilindrada (848 cm³) por 1,4 resultando em 1.187 cm³, já que carros de menos de 1 litro não eram permitidos em Le Mans.
O peso espanta ainda hoje, mesmo quando se compara com carros com extensa aplicação de compósito de fibra de carbono. O LM64 pesa 560 kg, para 83 cv a 6.750 rpm. Algumas fontes como a revista Classic and Sports Cars citam potência ainda menor, 79 cv. Os dois carros não terminaram a prova, um parou por problemas de motor, e o outro com o cambio quebrado.
Não haveria mais participação dos aerodinâmicos CD Panhard na famosa prova francesa, e Charles Deutsch focou o trabalho de sua empresa, a SERA-CD, em projetos de carrocerias. Provando a habilidade da empresa, a Porsche o contratou para participar no desenvolvimento do 917 LH (lang heck, cauda longa), ocorrendo o mesmo com a Alfa Romeo, que teve seu Tipo 33 TT12 em muito sendo desenhado pela empresa francesa. Deutsch trabalhou ainda por vários anos com simulações matemáticas principalmente para a área de dinâmica de veículos, ate falecer em 1980.
Depois de 1964 o carro numero 44 ficou por alguns anos no museu de Le Mans, mas foi vendido para alguns colecionadores, chegando ate a coleção de Tim Moore. A altura de apenas 1.070 mm e o desenho liso e sem quebras de linhas faz o carro parecer longo, mas tem apenas 4.250 mm de comprimento.
O Panhard CD LM64 tem o titulo de carro de menor coeficiente aerodinâmico de todos os tempos, 0,12, sem esquecer do Volkswagen XL1 com 0,182, entre outros ao redor de 0,20 como vários elétricos, que têm a vantagem de não possuir abertura dianteira para refrigeração. Mais baixo que esse valor do LM64 apenas carros específicos para provas de baixo consumo, como os movidos a energia solar, conseguem obter.
Esse coeficiente foi medido no Laboratório Aerodinâmico Eiffel, localizado em Paris, fundado pelo mesmo criador da torre de mesmo nome, Gustave Eiffel.
A Panhard foi absorvida pela Citroën em 1965, e logo desapareceu como marca, em 1967.