Quem presencia um belo evento muitas vezes não tem como saber o que foi necessário para que tudo saísse conforme o planejado. Muito menos tem como saber quais negociações tiveram que ser feitas para que uma boa ideia fosse aceita e finalmente posta em prática. E é isto que vamos descobrir neste relato inédito de Eduardo Pincigher .
Encontrei o Eduardo lá na Garagem VW durante a comemoração dos 50 Anos do VW Golf, realizada no dia 10 de outubro. Batemos um papo depois deste evento e acabamos falando sobre o lançamento do VW Kombi arrefecido a água e desta conversa surgiu a oportunidade de publicar o interessante e importante relato abaixo, um pouco da história do VW Kombi no Brasil.
Nota do colunista: como nossos leitores e leitoras sabem, para o AUTOentusiastas VW Kombi é gênero masculino desde agosto de 2022, repetindo desse modo o seu gênero original do idioma alemão, fora o fato de ser um utilitário. Sendo assim. a versão original escrita pelo Eduardo foi adaptada a esta realidade.
O maior lançamento de carro que eu já fiz
Por: Eduardo Pincigher
Sim, Il Vecchio Signore. Ele mesmo, quando trocou o motor boxer a ar pelo 1.4-L de quatro cilindros em linha do Fox de exportação, no final de 2005. Mas tenho que contar essa história do início.
Formei-me em jornalismo no final de 1990. Já havia sido contaminado pelo vírus irreversível da gasolina nos últimos dois anos de faculdade, quando estagiei na assessoria de imprensa da Autolatina. Eu me realizava quando tinha algum compromisso na planta da VW Anchieta, principalmente para namorar aqueles carros estranhos feitos pela Engenharia: o Kombi picape que tinha a caçamba no eixo dianteiro e a cabine no traseiro.
Coisas dos anos 70 e 80, quando as áreas de Engenharia das fabricantes tinham tempo e, talvez, liberdade, para trabalharem em coisas tão estranhas. Eram veículos usados apenas no transporte interno de peças na fábrica. Sou até curioso para saber se sobrou alguma…
Enfim, eu vivia namorando o ambiente da planta naquela época, se bem que meu romance com a marca data de alguns anos antes, precisamente em 1980, quando, com 11 anos, eu aprendi a dirigir. Meu avô era mecânico de automóveis, em Sorocaba, SP, e eu passava as férias na oficina dele, desmontando carburadores e lavando-os com querosene. E ele tinha um Kombi 1200 1959 Luxo, o carro que guiei pela primeira vez.
Corta para 2005. Contratado para ser o executivo da área de relacionamento com a Imprensa/Produto, eu participei de uma reunião do staff da diretoria de Vendas e Marketing logo na minha primeira semana de trabalho. Por intermédio da agenda de lançamentos e novidades, eu encaminharia as ações com a imprensa especializada em automóveis (eventos de lançamentos, press releases, encontros com executivos).
E pintou a informação na reunião. “O Kombi vai abandonar o motor a ar e passa a usar o 1.4 a água do Fox exportação na linha 2006. A produção começa agora, em setembro (ou outubro, não lembro com exatidão)”. E a imprensa, pensei, é uma mudança significativa, digna de uma apresentação aos jornalistas. Voltei para minha área e fui direto pra sala da minha chefe, a diretora de Comunicação.
“Você tá louco, Edu?? Não temos Kombi na frota de Imprensa há 6 anos. Esse troço puxa a imagem da marca para baixo. Jornalista só detona…” Insisti. E disse, ousadamente, que eu tinha um plano para reverter essa má imagem do carro, aproveitando a troca de motor.
Ela pagou para ver. “Você é quem sabe se vale a pena se queimar já no seu início. Reúna Marketing e Engenharia na nossa sala de reuniões. Se você os convencer, eu faço o evento”.
Assim o fiz. Convoquei gerentes e diretores das duas áreas para a semana seguinte. No dia da reunião, a diretora me apresentou formalmente e anunciou que eu tinha uma proposta inusitada para a análise dos colegas.
“Quero fazer um evento para a imprensa com o novo Kombi. Estamos cheios de histórias para contar. É a despedida do motor a ar, que foi a base para que essa empresa, hoje gigantesca, tenha conseguido se erguer. Vamos mostrar que tivemos que convocar os engenheiros aposentados para refazerem os estampos do porta-malas, onde foi criada aquela janela de inspeção no assoalho para acessar o cabeçote do motor 1.4, uma vez que os novos engenheiros só sabiam trabalhar com CAD e os projetos originais eram feitos em papel-vegetal e nanquim…”
Eis que o engenheiro-chefe da área Experimental pede a palavra e solta uma brincadeira do tipo… “quem é esse rapaz? Acho que é infiltrado da Fiat. Quem em sã consciência colocaria os principais jornalistas do país para andar de Kombi?” Respondi calmamente que eu colocaria. Era só saber como.
E insisti na minha tese, mais franca do que convinha em uma reunião na Volkswagen de duas décadas atrás: “qual seu receio? Que o jornalista diga que o Kombi não anda, não freia, é barulhento e não faz curva? Pois o dono de Kombi, aquele brasileiro que está sustentando a família em um carrinho de hot dog, ou numa lavandeira, ou numa floricultura, tudo isso a bordo de um Kombi, já sabe que o Kombi tem uma dirigibilidade péssima! Nós só precisamos avisar a ESTE cliente que, agora, com o novo motor, ela ficou 22% mais silenciosa, 26% mais ágil e 28% mais econômica!”
O diretor de Marketing, um jovem extremamente talentoso à época, pediu a palavra e, sério, disparou. “Mostre-me seu plano”. Retomei o discurso. “Minha ideia é simples. Nós faremos o evento em um local fechado, onde a gente possa controlar a questão da velocidade. E conduziremos os jornalistas a andarem com alguns Kombis a ar (vazio, meia carga e carga completa) e, depois, passaremos as novas para eles testarem. O raciocínio é simples: ainda que o handling de uma Kombi seja precário, ele se verá obrigado a destacar as melhorias obtidas com o novo motor, que são justamente nível de ruído, desempenho e consumo. O cara pode até criticar a instabilidade, mas ele acabará destacando os aperfeiçoamentos”.
Diante do novo semblante nos rostos incrédulos dos meus colegas, que passaram nitidamente a simpatizar com a ideia — minha chefe, inclusive —, resolvi ser mais arrojado. “E eu tenho uma solução para que diminuam as críticas à dirigibilidade do carro”.
O diretor emendou. “Quero ouvir!”
“Nós temos que mostrar aos jornalistas que o Kombi não é um automóvel. Mas uma ferramenta de trabalho. É como uma chave de fenda. Tem de ser eficiente, e não necessariamente apresentar os mesmos predicados de outros automóveis. E mais: vamos emocioná-los. Faremos um vídeo que entreviste motoristas de vans escolares, donos de floriculturas, pasteleiros. Vamos mostrar que o Kombi é o grande responsável por impulsionar a economia informal desse país”.
A sala ficou silenciosa…
O diretor retoma a palavra. “Pode contar com Vendas e Marketing. A sua ideia é absolutamente genial. Se a Engenharia não comprar o plano, e não puder preparar os carros, pode enviar todas elas para a Ala Zero e eu mesmo mando preparar”.
Foi quando um dos gerentes de Vendas lembrou que o fundador das Casas Bahia, Samuel Klein, era apaixonado por Kombi. E minha chefe emendou que o dono da Editora Abril, Roberto Civita, também. Saímos todos de lá com uma missão extraordinária a cumprir: resgatar o orgulho de uma fabricante por um de seus principais produtos.
No dia do evento, juro, alguns jornalistas choraram com o vídeo. “Eu formei três filhos na faculdade com a Ivete (nome do Kombi 83 ou 84 da dona da loja de material de limpeza)”, dizia uma entrevistada. “Ah, ele até quebra vez ou outra. Mas é baratinho e fácil de consertar. Eu não arrisco trocar o meu Kombi, a não ser por outro Kombi…”
E o ponto alto veio com os dois entrevistados “corporativos”. Civita, da Abril, que eu mesmo havia entrevistado para o vídeo, deu o tom de sua confiança no veículo da VW. “A Abril tem uma frota de algumas centenas de Kombis. Até hoje, a Veja é distribuída todo sábado de manhã para as bancas de todo o país a bordo de Kombi”.
Klein foi ainda mais enfático. “A origem das Casas Bahia remonta a um tempo em que eu tinha meia dúzia de Kombis. Eu lotava os carros de mercadorias e ia nas periferias para fazer as vendas a prazo. Hoje temos uma frota com mais de 1.000 caminhões Mercedes. Mas tudo — observe a frase — que as Casas Bahia são, hoje, eu devo à eficiência daqueles 5 ou 6 Kombis do início”.
Resultados? Todo mundo saiu da sala de apresentação, alguns com olhos marejados, loucos para conhecerem o Kombi a água no test drive. O Kombi foi destacado nas capas de seis revistas, sendo que a Oficina Mecânica, do saudoso amigo Josias Silveira, o colocou na chamada principal. E a VW, diante da demanda gerada pelo novo modelo, ficou com fila de espera para o novo Kombi naquele final de 2005 e se organizou para ampliar a produção no início de 2006.
(Todo evento com jornalista envolve um presentinho, uma lembrança qualquer. Pois a do Kombi foi uma camiseta branca, com a silhueta do Tipo 1. Sem logo, sem nome, sem nada. Só a silhueta. Pois revi essas camisetas por muitos anos seguintes.)
Com a finalidade de complementar os dados históricos do relato do Eduardo, eu completo os nomes dos envolvidos citados:
Diretora de Comunicação: Júnia Nogueira de Sá
Engenheiro-chefe da Área Experimental: José Luiz Hellmeister Loureiro
Diretor de Vendas e Marketing: Paulo Sérgio Kakinoff
Ficha Técnica Kombi 1.4 Total Flex
MOTOR 1.4L 8V Total Flex
Combustível Gasolina Álcool
Cilindrada (cm³) 1.390
Diâmetro e curso (mm) 76,5 x 75,6
Nº de cilindros 4
Nº de válvulas por cilindro 2
Potência líquida máxima – kW (cv) / rpm 57 (78) / 4.800 59 (80) / 4.800
Torque líquido máximo – Nm (kgfm) / rpm 123 (12,5) / 3.500 125 (12,7) / 3.500
Relação de compressão 11:1
TRANSMISSÃO Manual, 4 marchas, tração traseira
Relações de marchas (:1) 1ª – 3,80 2ª – 2,06 3ª – 1,32 4ª – 0,88 Ré – 3,88
Relação de diferencial 4,875
SUSPENSÃO Dianteira: Independente, braço duplo longitudinal, barra de torção, barra estabilizadora.
Traseira: Independente, braço transversal e longitudinal,
barra de torção
FREIOS Dianteiro: disco / Traseiro: tambor
DIMENSÕES EXTERNAS (mm)
Comprimento 4.505
Largura 1.720
Altura 2.040
Entre-eixos 2.400
RODAS E PNEUS
Rodas 5,5J x 14
Pneus 185/80 R14
TANQUE DE COMBUSTÍVEL (litros) 45
PESO (kg)
Em ordem de marcha (sem motorista) 1.297
Carga útil 1.000
DESEMPENHO Gasolina Álcool
Aceleração de 0 a 100 km/h (s) 16,6 16,1
Velocidade final (km/h) 130 130
CONSUMO
Cidade (km/l) 10,4 7,1
Estrada (km/l) 11,8 8,6
Média PECO¹ (km/l) 11 7
¹Programa de Economia de Combustível, 55% cidade, 45% estrada
Agradeço ao Eduardo Pincigher pela importante participação em minha coluna e o parabenizo pela defesa brilhante que fez do Kombi.
Em tempo…
Apresentei a matéria para o Eduardo para comentários sobre o trabalho feito aqui na redação e ele sugeriu um esclarecimento adicional, a saber:
“O Loureiro, ao final do evento, veio me cumprimentar. E disse: você estava certo e eu, errado. Parabéns pelo evento”. Ele se tornou um dos grandes amigos dentro da VW.
AG
Agradeço o empenho do Edivaldo Hernandes, Ronaldo Berg e Omar Trevi para encontrar a foto da “Lambreta” apelido dado ao “Plattenwagen” feito na Fábrica Anchieta para transporte interno de cargas. No fim das contas, domingo pela manhã, eu estava com duas vias desta foto em mãos; uma delas minha que eu acabara de encontrar depois de muita busca. Valeu amigos.
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