Muitos carros nascem de um trabalho enorme a partir de requisitos do mercado e nada mais. Sendo na maioria das vezes muito eficientes, podem também ser apenas transporte. Outros tem sua origem a partir de motivos completamente diferentes e inusitados, como o ATS 2500 GT.
Em novembro de 1961 o gerente de vendas da Ferrari, Girolamo Nardini, envia uma carta ao chefe Enzo, com sua assinatura e de mais sete gerentes, com reclamação a respeito da Sra. Ferrari. Laura Ferrari estava se intrometendo na empresa, algo que nunca fizera, mas que passara a ser rotina depois da morte de Alfredino Ferrari, seu filho. Ate mesmo nas provas de Formula 1 eram criadas situações complicadas devido à presença da “patroa”. O trabalho tinha se somado a psicologia de ter que atender os pedidos e “sugestões” de Laura Ferrari.
O marido Enzo, simplista como muitos executivos, fez o que a maioria deles faz quando encontra problemas basicamente humanos (muitos não sabem lidar com gente, só com números) — e mandou todos para a portaria, para não mais voltarem.
No grupo dispensado estava obviamente Nardini, além de Carlo Chiti, engenheiro-chefe, Romolo Tavoni, gerente da equipe de corrida, e o gerente da engenharia experimental, Giotto Bizzarrini, em última instancia o responsável pelos acertos gerais de dinâmica de cada modelo durante o desenvolvimento.
Nardini havia sido o principal elemento a trabalhar para formar a clientela chique e famosa (relativamente) da Ferrari, e busca apoio financeiro para formar uma nova empresa, dar emprego aos colegas e se vingar de Enzo. Foi então formada a ATS (Automobili Turismo e Sport), em Bologna, para ficar um pouco afastado da influencia ferrarista, e fazer algo que já vinham tentando levar adiante na Ferrari mas não conseguiram, o primeiro carro italiano de motor central-traseiro.
O Conde Giovanni Volpi di Misurata, dono da escuderia Serenissima, um dos clientes da Ferrari que utilizava seus carros em competições, foi convencido a se juntar ao grupo e aceitou, trazendo mais verbas para a empreitada. Havia também o investimento do empresário de mineração boliviano Jaime Ortiz-Patino.
Entre o finalzinho de 1961 e a apresentação em 1963 em Paris, o time faz um carro fabuloso, pequeno e superleve, formado por chassis de tubos de aço de seções quadrada e circular combinados, com suspensões independentes por elementos triangulares superpostos, quatro freios a disco, sendo os traseiros inboard – na saída do câmbio — e um motor V-8 de 2.503 cm³ com bancadas separadas a 90 graus, bloco e cabeçote em liga de alumínio, compacto, obra de Bizzarrini e Chiti. Tinha diâmetro de cilindro de 76,2 mm e curso de pistão de 68,6 mm, com comando no cabeçote e duas válvulas por cilindro.
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Quatro carburadores duplos Weber alimentavam o motor, mas a injeção mecânica inglesa da marca Lucas seria opcional para atrair clientes ainda mais ligados nas modernidades, e também ter o apelo para os entusiastas britânicos, mercado importante para qualquer marca de carros esporte.
Com taxa de compressão de 9,2:1, atingia 223 cv a 7.500 rpm, rotação de motores esportivos de hoje, meio século mais tarde. O torque máximo era de 26 m·kgf a 5.800 rpm, e um câmbio de cinco marchas transmitia a potência para as rodas traseiras.
Enzo Ferrari deu mais uma prova de sua famosa teimosia quando ficou sabendo que o motor do ATS era V-8. Chiti havia feito o projeto de um V-8 para a Ferrari, propriedade desta e que poderia ser manufaturado caso Enzo quisesse, mas foi cancelado e arquivado imediatamente pelo comendador. Ele não queria que imaginassem que sua empresa estava correndo atras do prejuízo de ter perdido parte de sua equipe técnica.
Esse foi o primeiro carro italiano com essa arquitetura, considerada a ideal para verdadeiros esportivos com tendencia a se transformar em carro de corrida, ou ao contrario, derivados destes. O motor central-traseiro, assim chamado por estar atras do habitáculo mas a frente do eixo traseiro, permite distribuição de peso mais próxima de metade nas rodas dianteiras e metade, nas traseiras, teoricamente a condição perfeita para um carro feito para andar rápida e seguramente. Apenas depois de mais quatro anos o Lamborghini Miura chegaria ao mercado com motor central traseiro, antes mesmo da Ferrari. A Ferrari só veio a ter um V-8 de rua uma década depois, em 1973, com o Dino GT4. Carlo Chiti e Bizzarrini mostravam que sabiam o que fazer, tecnicamente.
Estilisticamente falando, trata-se de uma beleza italiana rara, um carro de estilo magnifico, obra de Franco Scaglione. A carroceria foi fabricada pela Allemano, de Turim, italiana apesar do nome lembrar a Alemanha. Proporções equilibradas e detalhes bem imaginados e executados, como a bela grade de ventilação adiante das rodas traseiras, e o capo, longo para um carro de motor traseiro. O vidro vigia traseiro permite visibilidade excelente, algo não muito comum em esportivos.
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Giotto Bizzarrini faria no mesmo ano o projeto de um V-12 para a ATS, com objetivo de entrar em corridas, mas como não haveria dinheiro para materializar a ideia, vendeu o direito de uso para a Lamborghini, nessa época ainda um fabricante de tratores cujo dono, Ferrucio, fora esnobado por Enzo Ferrari ao reclamar que seu carro tinha muitos defeitos e que tinha que ser melhor. Digamos que arrogância era boa parte da personalidade de Enzo, que se superava em suas relações humanas problemáticas, mais uma prova sendo a resposta que o Sr. Lamborghini recebeu, algo no sentido de que ele deveria continuar a fazer tratores, e deixar os carros para Enzo.
Apenas oito 2500 GT foram feitos, com diferenças entre eles que fazem cada um ser exclusivo. Podia ter carroceria de aço — modelo GT, com peso de 816 kg — ou alumínio, nesse caso, era o GTS, pesando 755 kg, este para corridas, com velocidade máxima de 257 km/h. O GTS tinha também maior potencia, 253 cv, e diferenças marcantes, como a persiana em lugar do vidro traseiro, facilitando a saída de ar quente do compartimento do motor. Dois deles competiram na Targa Florio de 1964, mas não terminaram a prova.

O GT chegava a 100 km/h em 5,6 segundos, algumas fontes dizem que era ainda mais rápido, com 5 segundos cravados, fenomenal para começo dos anos 1960.
Apesar dos oito carros finalizados, foram doze chassis construídos, ou seja, quatro nunca receberam carroceria para serem terminados. Não há informações concretas do que aconteceu com eles, mas podem um dia surgir por ai para alimentar o caixa de alguém, se puder ser provada a autenticidade dos mesmos.
A ATS tentou também combater a fabrica de Maranello em 1963 com um Formula 1 de 1,5 litro, V-8, batizado de ATS100, que nasceu todo errado e não evoluiu nem mesmo com a ajuda de Phil Hill, americano campeão do mundo em 1961, justamente com Ferrari. A saída de Hill da Ferrari atraído pela promessa de um carro competitivo foi considerada como o fim da carreira vitoriosa do americano. Nenhum bom resultado em 1963, em 1964 fez apenas uma prova, em Monza, e encerraram a operação, depois de muito tempo e dinheiro investido.
Vale esclarecer que essa equipe ATS italiana nada tem a ver com a ATS que competiu na F-1 de 1977 a 1984, marcando apenas oito pontos no total. Esta era alemã, controlada pela fabrica de rodas Auto Technisches Spezialzubehör, fundada em 1969 e ainda na ativa.
O mesmo destino ruim aconteceria com o carro de rua, 2500 GT. Os gastos e a energia dispendida na equipe de Formula 1 fizeram-no menos prioritário, e no outono de 1964 a empresa fechou, sem chance de mostrar o que seria capaz de fazer a longo prazo. Tipico caso de tentar equilibrar vários pratos ao mesmo tempo.
O conceito era tão sensacional que mesmo apóos a falência devido a investidores de mau humor, o Conde Volpi tentou reviver o carro sob o nome de Sereníssima, mas não havia um bom futuro, e a ideia morreu.
Carlo Chiti foi para a Alfa Romeo, e comandou a sua empresa Autodelta, responsável pela equipe oficial de corridas para a casa de Milano. Sob sua coordenação, a Alfa Romeo aprovou e fabricou o que pode ser considerada uma evolução do ATS, 2500 GT o Alfa Romeo 33 Stradale, com um V-8 em posição central-traseira, obra com estilo de Scaglione.
Mas como se comporta o 2500 GT? Textos de revistas e websites sobre carros clássicos que retratam como ele anda deixam claro que tem grandes qualidades devido a uma dinâmica excelente e baixo peso, e pela potência certa, distribuída decentemente, ou seja, curva de torque bem próxima da planicidade, sem picos e vales que fariam o motor pouco dócil.
Em matéria de 1964 da revista Road & Track, Griffith Borgeson comentou que nunca se sentira de tal maneira seguro em alta velocidade, tamanho o equilíbrio do carro, que não provocava nenhum susto. Posição de volante, pedaleira e visibilidade, todos excelentes. A direção tem sistema simples e sem assistência, por pinhão e cremalheira, sendo bastante precisa e passando informação de posição das rodas com clareza.
Os freios requerem um pouco de forca além do normal, mas os discos Dunlop trabalham firme e sem sustos. Na suspensão, bastante conforto, e rolagem dentro dos padrões dos anos 60. Rolar não significa baixa aderência, e o 2500 GT prova isso.

Em 2019 foi apresentado um exemplar único do novo 2500 GT, mas também não entrou em produção normal. Era muito menos elegante que o original, apesar de bastante decente e honesto em estilo. Veja esse modelo em detalhes no site oficial da marca, que parece pouco ativo, como que aguardando investidores e pedidos para o carro.
JJ