Na virada do dia 25 de janeiro último, aniversário da cidade São Paulo, para o dia 26, Interlagos presenciou mais uma largada da prova nomeada de GP de São Paulo 1000 Milhas, como forma de renomear a prova de longa duração mais importante da história do nosso automobilismo, a Mil Milhas Brasileiras.
Com nada menos que 71carros inscritos, a edição de 2025 está mostrando que a cada ano a força da tradicional corrida paulista que atrai pilotos de todos os cantos, está se recuperando aos poucos depois de um hiato de doze anos entre 2008 e 2020.
Dentre os 71 participantes, via-se de tudo, desde Fusca e Opala, Corsa, Courier, Porsche 911 GT3, até protótipos LMP3 Ligier e os nacionais Sigma e AJR. Uma gama de modelos cujos tempo de volta variavam de 1min30s até 2min20s, uma diferença abissal entre os mais velozes e os mais lentos. Arrisco até a dizer, um tanto quanto ousado.

Mas, era um grid cheio, algo que sempre marcou a Mil Milhas, não há como negar. Pode-se ver de duas maneiras esta quantidade de carros, uma é que valia qualquer coisa para encher a pista, outra é que os pilotos estão interessados em voltar a participar desta corrida. Ambas verdadeiras, ambas interessantes.
É um caminho bem pavimentado para o sucesso da corrida, assim como aconteceu no passado, até o ponto em que a Mil Milhas atraiu diversas equipes de fora do país.
Onde tudo começou
A primeira edição da Mil Milhas ocorreu em 1956, uma prova criada por Wilson Fittipaldi, o “Barão”, pai de Emerson e Wilsinho, então radialista de renome nacional, com o propósito de criar uma prova de longa duração, com mais de 15 horas e de grande porte, para mostrar a qualidade dos pilotos e preparadores brasileiros.
Em São Paulo havia um autódromo, mas poucos pilotos. No Rio Grande do Sul, muitos pilotos mas nenhum autódromo. A solução foi o Barão ir pessoalmente até a região de Caxias do Sul convidar os maiores nomes da região para correrem em Interlagos numa corrida de 1.600 km. O Sul sempre foi forte no automobilismo com seus carreteras Ford e Chevrolet disputando provas de rua.
Com inspiração na Mille Miglia italiana para a distância a ser percorrida, porém em circuito fechado (a Mille Miglia era disputada em estrada públicas fechadas ao trânsito), Fittipaldi teve que correr atrás de tudo. Os pilotos, ele foi caçar no Sul, o apoio do órgão organizador de provas de automobilismo no Brasil que tinha sede no Rio de Janeiro (Automóvel Club do Brasil), praticamente não teve, ele teve que criar sua própria ordem junto com o Centauro Motor Clube, na pessoa de seu presidente Eloy Gogliano, e que viria a dar origem a Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA). Foi atrás de patrocinadores para o evento, com placas, pneus, combustível. Conseguiu com o Exército um time de resgate equipado com radiocomunicadores para dar suporte aos pilotos em casos de acidentes.

Tudo isto foi feito para elevar o nível das corridas nacionais e também colocar Interlagos no mapa nacional. Como o próprio Barão disse na época, “Interlagos não passava de um caminho asfaltado no meio do mato”.
A vitória da primeira edição ficou com os gaúchos Catharino Andreatta e Breno Fornari, correndo com um carretera Ford V-8.
Crescente interesse de fora
Durante os anos 90, o aumento da participação de carros importados fez com que o nível dos competidores subisse consideravelmente. Os Porsche 911 dominaram boa parte das edições desta década em Interlagos, já com participações de estrangeiros.
Franz Konrad é um nome conhecidos em Interlagos. Nesta década de 90, ele trouxe seus 911 junto com o brasileiro Antônio Hermann. Konrad disputou nada menos que 17 edições da 24 Horas de Le Mans, tanto em equipes de terceiros, como com sua própria equipe, a Konrad Motorsport. Ele foi um dos que abriu portas para outras equipes de fora chegarem nas Mil Milhas.

Depois dos anos 90, os anos 2000 viram um aumento gradativo de competidores estrangeiros, até que em 2004 a equipe italiana Racing Box venceu a prova com um Dodge Viper GTS-R. Foi a primeira vez que o carro vencedor não teve nenhum piloto brasileiro ao volante.
2006, O GRANDE ANO
Provavelmente a melhor edição das Mil Milhas desde os tempos dos anos 70 foi a edição de 2006. Mesmo com apenas 34 inscritos, metade se comparado com a edição de 2025, a qualidade dos carros foi das melhores.
Franz Konrad trouxe dois modelos do Saleen S7R, onde o único brasileiro a pilotar foi Antônio Hermann, os demais todos estrangeiros. A equipe inglesa Cirtek trouxe o Aston Martin DBR9 V-12, vencedor da prova com Nélson e Nelsinho Piquet, Helinho Castroneves e o francês Christophe Bouchut, vencedor de Le Mans e Daytona.
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A equipe italiana Giesse Squadra Corse trouxe dois Ferrari 575 GTC V-12, enquanto que a inglesa GLPK Carsport trouxe o incrível Corvette C5-R V-8 com o qual nosso grande Paulão Gomes pilotou. A italiana Scuderia Playteam participou com o Ferrari 360 Modena GTC, tendo como um dos pilotos o também italiano Alessandro Pier Guidi, no começo de carreira nos carros GT, e que viria a ser vencedor de Le Mans tanto na categoria GT como na classificação geral com os modernos 499P.
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Além de todos estes estrangeiros, as equipes brasileiras vieram com força total. A tradicional Capuava Racing Team de Alcides Diniz inscreveu nada menos que três grandes carros. O já conhecido Lister Storm-Jaguar V-12, o novo Aston Martin DBR-9 e o Mercedes-Benz CLK DTM.
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A Scuderia 111 corria com o protótipo ZF derivado o americano Riley & Scott V-8. A equipe Tekprom correu com um Ferrari 550 Maranello e um Alfa Romeo 156 WTCC. A equipe Stuttgart trouxe os imbatíveis modelos alemães, famosos por sua durabilidade, os Porsches 911, sendo um GT3-RS 996 e um GT2 993. Diversos outros 911 participaram. A Eurobike Motorsport disputou a prova com um BMW M3.
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Os tradicionais protótipos brasileiros da marca Aldee estavam em peso, assim como os Omegas da Stock Car. Os Aldee, mesmo sendo carros de construção simples, são velozes por conta do baixo peso, boa distribuição de peso graças ao motor central e ótimo projeto de suspensão, simples e funcional.
A corrida foi dominada pelos importados, claramente muito superiores, mas em igualdade entre si. O protótipo ZF da 111 foi o mais rápido nos treinos, mas o V-8 Chevrolet não aguentou e deixou o caminho aberto para os GTs. O resultado foi o Aston Martin de Nélson Piquet em primeiro, o CLK DTM da Capuava em segundo e o Saleen da Konrad em terceiro.
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Lembro de estar nesta corrida e notar o profissionalismo das equipes de ponta, tanto as locais como as estrangeiras, era algo bonito de se ver. As equipes mais humildes, pelo menos as vizinhas de box das grandes, até observavam muitos procedimentos sendo feitos e tentavam replicar, tanto em termos de organização como em agilidade.
Os carros de ponta presentes nesta edição eram os melhores do mundo, compatíveis com competições em qualquer continente, mostrando que a nossa Mil Milhas era uma prova de peso e grande relevância.
ETAPA DA ELMS DE 2007
Com a visibilidade internacional da edição de 2006, em 2007 foi arranjado para que a última prova do campeonato da European Le Mans Series corresse em Interlagos, numa prova de mil milhas que “substituiria” a versão mais tradicional da corrida brasileira.
Dos quase cinquenta competidores que uma etapa da ELM regularmente tinha, apenas 23 carros vieram para Interlagos. Mesmo com poucos carros, foi uma prova e tanto, com o Peugeot 908 HDI V-12 diesel dominando a corrida e fazendo dobradinha, a frente do Creation V-10 LMP1 em terceiro lugar.

Diversos brasileiros participaram da prova, o melhor colocado foi Fernando Rees a bordo de um Aston Martin DBR9 da Larbre Competition na sexta colocação geral, e vencedor da categoria GT1.
Por ser uma prova internacional do campeonato fechado, os competidores locais de menor poder aquisitivo não puderam participar. A única equipe nacional a correr foi a Dener / Stuttgart com o Porsche 911 RSR GT2 de Raul Boesel, Marcel Visconde e Nonô Figueiredo, que terminaram em 12° lugar na geral.
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Este evento internacional já deu uma esfriada nos ânimos do esquema tradicional das Mil Milhas, mas em 2008 a prova foi retirada do calendário da Le Mans Series e voltaria a ser nos moldes conhecidos dos brasileiros.
2008, O ÚLTIMO ANO DESTA FASE
Apenas 23 carros participaram do que seria a última edição das Mil Milhas Brasileiras e só retornaria em 2020.
Com certa instabilidade na organização da prova, muito devido ao fato da edição anterior ter sido parte de um campeonato internacional e que não teria continuidade, os patrocinadores da prova tiveram dificuldade em manter o mesmo nível do que foi a corrida de 2006, repleta de participantes de fora e mesmo das equipes locais de alto nível.
A disputa pela vitória ficou entre o 911 GT3 RSR da Stuttgart, que levou a melhor, o protótipo Mitsubishi Eclipse liderado por Eduardo Souza Ramos (que terminou em segundo na corrida), e os dois protótipos nacionais mais forte da edição, o Dimep e o Predador, mas ambos tiveram problemas.
Salvo engano, o único piloto estrangeiro foi o italiano Istvan Minach que dividiu a pilotagem de um Ferrari 360 Modena GT3 com o brasileiro Uberto Molo, terminando na quinta colocação, atrás do Maserati Trofeo e do Porsche 911 da Eurobike.
Em 2009 a prova foi cancelada e só se retomou o assunto Mil Milhas no Brasil em 2020.
DAQUI PARA FRENTE
O que podemos torcer é que nas futuras edições desta tão importante prova nacional, a quantidade elevada de inscritos se mantenha, trazendo novamente o interesse de grandes equipes nacionais e também internacionais.
Quanto mais competidores de fora temos, maior o prestígio da prova, e maior o interesse em mantê-la ativa no calendário, com patrocinadores fortes e boa divulgação.
Acredito que um grid cheio como a deste ano possa atrair mais competidores de alto nível. Falando assim, pode parecer que o grid heterogêneo é ruim, depreciando os pilotos amadores com carros mais fracos, mas não é o caso, uma vez que a Mil Milhas sempre foi aberta a todos. Mas um nivelamento de carros um pouco melhor faz com que o nível da prova suba. É louvável ver um Fusca ou um Gol na pista disputando uma prova de 1.600 km de extensão, mas também é estranho fazer isso contra protótipos de competição e carros GT3 modernos.
Quem sabe não chega num determinado momento em que duas Mil Milhas possam ser realizadas, uma com carros de alto desempenho, nacionais e importados, e outra com modelos mais “caseiros” de menor potência. É até mais seguro, pois não haveria tanta diferença de velocidade entre os extremos do grid. Seria ótimo para nosso automobilismo nacional num futuro próximos tamanha quantidade de inscritos que esta possa ser uma realidade.
Torço pelo sucesso da corrida, o Brasil tem uma forte herança de corridas de longa duração, e a Mil Milhas no topo da lista merece ser o destaque que já foi no passado. Já temos carros nacionais capazes de disputar em igualdade com modelos importados, o AJR e o Sigma são provas disso. Quantidade de pilotos interessados já vimos que temos, agora é fazer a prova crescer ainda mais e voltar a ser uma referência internacional, sem prejudicar os locais, que são e sempre foram o coração da corrida.
MB
fotos sem citação: autor