Ao longo da minha carreira de 30 anos na indústria automobilística, aprendi algumas coisas. Três assuntos sempre geram polêmica — e todo mundo acha que é especialista. Todo mundo se julga autoridade em nomes, cores e design. E o curioso é que, nesses três temas, qualquer coisa que fuja um pouco do senso comum, que desafie o marasmo das massas ou que tenha um pouco mais de personalidade, inevitavelmente vira alvo de críticas. Às vezes, chegam até a decretar a morte de marcas que ousam mais.
O resultado disso são carros de massa cada vez mais parecidos, feitos para não desagradar ninguém. Produtos sem “carronalidade”, como diria meu amigo e editor do AE desde os primórdios, Juvenal Jorge.
Mas encontrar esse ponto de equilíbrio entre inovação e evolução — sem causar uma disrupção visual — não é simples. E, sim, às vezes o limite do aceitável é ultrapassado. Especificamente em relação ao design, vejo uma ansiedade enorme por parte das pessoas em emitir opinião. E não é só isso: querem cravar um veredito. Muitas vezes sem sequer terem visto o carro ao vivo. E isso, no mundo das redes sociais, é um combustível altamente inflamável.
O que os grandes “entendidos” sobre design muitas vezes não percebem é que os designers profissionais estão sempre, no mínimo, cinco anos à frente. São eles que criam tendências, que definem os caminhos visuais e estratégicos das marcas. Quando algo mais ousado surge, os especialistas de plantão não dão tempo para que o design amadureça ou seja compreendido. É por isso que eu nunca formo uma opinião definitiva sobre um design ousado na primeira impressão. Não carimbo “aprovado” ou “reprovado” antes de alguns meses de observação. Gosto de ver como a linguagem se desenvolve, como o carro se comporta no ambiente real, como ele interage com a paisagem urbana, como as suas linhas se assentam na minha percepção espacial.

Claro que alguns designs levam mais tempo para serem compreendidos e aceitos. Alguns, de fato, nunca chegam a esse ponto e acabam prejudicando as vendas. Outros, mesmo sem unanimidade positiva, elevam os números e consolidam uma nova identidade para a marca.
Muitos podem dizer que se trata de gosto pessoal. Não poderia deixar de concordar 100% com isso. Mas mais do que uma questão de beleza ou gosto pessoal, o design automobilístico é uma ferramenta estratégica fundamental na construção da identidade de uma marca. Ele comunica valores, desperta emoções, fideliza clientes e, sobretudo, vende carros. Um bom design não apenas agrada aos olhos — ele sintetiza a alma de um produto, cria desejo e transforma veículos em ícones.
Nos últimos anos, temos testemunhado uma polarização interessante nesse campo, especialmente entre os fabricantes premium alemães. A BMW, por exemplo, optou por uma guinada ousada e até controversa. Suas novas grades superdimensionadas e linhas arrojadas dividiram opiniões entre entusiastas e puristas. Muitos chegaram a questionar se aquela ainda era a BMW que conheciam. Por outro lado, a Mercedes-Benz seguiu uma abordagem mais conservadora. Suas últimas gerações, embora refinadas, vêm sendo criticadas por certa neutralidade visual — elegantes, sim, mas pouco memoráveis.

Essa diferença de abordagem não é acidental. Trata-se de estratégia. A BMW apostou na polarização como forma de gerar conversa, atrair atenção e se posicionar com clareza num mercado saturado. A ideia é simples: melhor ser amado por muitos e rejeitado por alguns do que ser ignorado por todos. E, até agora, os números parecem validar essa escolha. As vendas da BMW seguem em alta, especialmente entre os mais jovens, que veem nos novos modelos uma personalidade mais forte e contemporânea.

Já a Mercedes optou por uma evolução mais sutil, confiando no prestígio acumulado ao longo das décadas. É uma fórmula que transmite estabilidade, mas que corre o risco de parecer acomodada num setor onde ousadia pode ser uma vantagem competitiva.
Nesse cenário, a Porsche surge como um caso singular. A marca de Stuttgart encontrou o equilíbrio raro entre tradição e modernidade. Seus carros mantêm proporções clássicas, identidade forte e linhas reconhecíveis a distância, mesmo quando atualizados com tecnologia de ponta e soluções inovadoras.
A Porsche não precisa gritar para ser notada — ela é notada porque mantém sua essência, aprimorada com consistência e precisão.

Essa combinação de coerência visual e ousadia contida é resultado de uma filosofia de design que vai muito além da estética. E foi exatamente essa visão que encontrei nas palavras do chefe de Design da Porsche, Michael Mauer, e do executivo-chefe da marca, Dr. Oliver Blume, numa interessante conversa sobre o assunto realizada nos bastidores do Centro de Desenvolvimento em Weissach.
Lá, numa das áreas mais restritas, está o santuário do design da Porsche: os salões da Style Porsche. É lá que o presidente Oliver Blume mantém contato frequente com Michael Mauer, chefe de design da marca há mais de duas décadas. Blume acredita que o design vai além da estética dos esportivos da marca. Para ele, trata-se de uma diretriz estratégica, uma bússola que orienta a Porsche como um todo.
O objetivo é garantir que todos os pontos de contato com a marca ofereçam uma experiência coesa, emocional e autêntica.
Michael Mauer compartilha dessa visão. Para ele, a continuidade é um valor essencial para a Porsche. Em vez de reinventar tudo a cada geração, o trabalho da equipe de design é refinar aquilo que já é consagrado. As decisões não se limitam à forma: elas refletem o espírito da marca e direcionam seu futuro. Para isso, definiram três princípios estratégicos que orientam o processo criativo: foco, propósito e tensão. Essas ideias se desdobram desde conceitos abstratos até soluções práticas, como o painel curvo pensado para privilegiar a visão do motorista.
O início do processo criativo, no entanto, permanece fiel às origens: lápis e papel ainda são os primeiros instrumentos para dar forma a novas ideias. É fundamental que, desde o primeiro traço, o carro revele sua identidade Porsche. A proporção — especialmente a relação entre largura e altura — é o ponto de partida. Ela é a base do caráter esportivo e da coerência visual que torna qualquer Porsche reconhecível à primeira vista.

Há ainda elementos-chave que marcam essa identidade: a silhueta com queda abrupta do teto, as linhas musculosas e detalhes que diferenciam cada modelo, como o 911 e o Panamera, mas sempre dentro de um mesmo DNA visual. Ao mesmo tempo, o time de design precisa equilibrar tradição e inovação. Para isso, Mauer aposta na combinação entre a experiência dos veteranos e o frescor dos jovens designers. Esse intercâmbio gera soluções criativas que respeitam o passado sem abrir mão de olhar para frente.

Nos últimos 20 anos, o papel do design na Porsche passou por transformações profundas. O avanço da tecnologia e a digitalização mudaram tanto o produto quanto as ferramentas de criação. A experiência digital do usuário — ou, como prefere Mauer, a “experiência do motorista” — tornou-se essencial. Ainda assim, ele defende o uso de modelos físicos de argila como parte crucial da validação estética e ergonômica.
A mobilidade elétrica, por sua vez, abriu novos caminhos. A ausência de motores convencionais permite capôs mais arrojados, mas também exige soluções inteligentes para acomodar as volumosas baterias. Paralelamente, a evolução dos processos de fabricação ampliou as possibilidades formais dos designers, que hoje conseguem aplicar à produção em série linhas antes impossíveis. Mauer resume com precisão:
Quando alguém vê um Porsche na rua, se vira para olhar. Esse “momento Porsche” é o reconhecimento de décadas de consistência, um dos principais motivos que levam as pessoas a se apaixonarem e a comprarem os carros da marca.

Para Mauer, o design é — e será cada vez mais — uma peça estratégica para o futuro da Porsche. Não se trata apenas de esculpir carros belos, mas de fortalecer a identidade da marca de forma duradoura. Blume resume com precisão.
PM
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Paulo Manzano é engenheiro pela FEI, com pós-graduação em Marketing pela ESPM e MBA em Negócios pelo IBMEC. Com uma trajetória sólida e ampla na indústria automobilística, Paulo acumulou 30 anos de experiência em posições de liderança nas áreas de marketing, vendas, planejamento de produtos e relações públicas. Ele contribuiu para o crescimento e posicionamento de marcas renomadas como Jaguar Land Rover, PSA, BMW/MINI, Lexus, Toyota, GM e Mercedes-Benz, sempre com foco em inovação e excelência no mercado de luxo e automóveis premium. Em 2008, fundou o Autoentusiastas, um dos mais respeitados portais para apaixonados por automóveis, canalizando sua paixão e conhecimento para um público altamente engajado. Sua visão estratégica e capacidade de criar experiências memoráveis são marcas registradas de sua carreira, agora levadas à curadoria de experiências de luxo com a 88quatro8, seu novo projeto.