Caro leitor ou leitora,
É com enorme prazer que comunico estar chegando ao time do AE um grande nome do jornalismo automobilístico brasileiro: Douglas Mendonça.
Jornalista na área automobilística há 44 anos, trabalhou na revista Quatro Rodas por 10 anos e foi diretor de redação da revista Motor Show até 2016. Formado em comunicação na Faculdade Cásper Líbero, estudou três anos de engenharia mecânica na Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e no Instituto de Engenharia Paulista (IEP). Como piloto, venceu a Mil Milhas Brasileiras em 1983 e a Mil Quilômetros de Brasília em 2004, na categoria Grupo 1 até 1.600 cm³. Tem 63 anos, é casado e tem três filhos homens, de 16, 28 e 31 anos.
Conheço o Douglas há mais de 35 anos e até fomos colegas na Quatro Rodas nos oito meses em que trabalhei lá. Ele é um autoentusiasta nato.
Quando eu soube que ele deixou a Motor Show recentemente — continuou lá como colunista por dois anos até a saída definitiva — pensei logo em trazê-lo para o nosso time. Convidado para ser colunista do AE, aceitou de pronto. Que ótimo!
O Douglas perdeu a visão e conta como aconteceu nesta sua matéria de estreia. Inclusive, ele descreve, em detalhes, como foi pilotar um Palio de competição, mesmo sem visão. Por conta disso me lembrei do filme “Perfume de mulher”, de 1992, em que o excelente Al Pacino personifica o tenente-coronel reformado Frank Slade, que havia ficado cego, e vai passar um fim de semana em Nova York e contrata um jovem estudante, Charlie Simms (Chris O’Donnell) para guiá-lo.
Nas andanças pela cidade, Charlie dá a ideia de darem um volta num Ferrari, vão a uma concessionária e saem com um carro de test drive. Charlie então oferece o volante a Frank e ele dirige o Ferrari.
Foi por isso que ao convidar o Douglas para o AE pensei imediatamente no filme e me veio à mente o título-paródia da coluna do Douglas, “Perfume de carro”. Mas não apenas por esse singular, mas importante feito de pilotar um carro de turismo em Interlagos sem visão, e sim, principalmente, por automóvel ser a vida dele.
Você terá o Douglas aqui todo domingo às 10 horas da manhã.
Bem-vindo ao time do AE, Douglas!
Bob Sharp
Editor-chefe
AUTOentusiastas
ENXERGO MESMO SEM VER. ENTENDA A BELEZA DESSA MAGIA
Foi no final de 2011, quando fui ao Japão cobrir o Salão de Tóquio e conhecer algumas novas tecnologias que a Honda aplicaria aos seus motores em um futuro breve, que percebi que algo não ia bem com minha visão. Pilotando em um circuito de alta velocidade da marca japonesa, até que me virava bem. Mas quando ia dirigir em um trecho urbano nas imediações desse circuito, penava e não entendia o que de fato acontecia com o meu organismo.
Na viagem de volta as dificuldades pioraram. Não conseguia ler o livro que levei, tampouco assistir aos filmes do circuito de TV do avião. Nesse momento ficou claro que eu estava com sérios problemas de visão. Tudo de uma hora para outra, sem prévio aviso ou dores.
Aqui no Brasil, consultei minha oftalmologista e ela realmente constatou que eu tinha sérios problemas nos olhos: a pressão no interior deles superava em 4 vezes o que era considerado normal e esse fato certamente levaria ao rompimento das ligações dos olhos com o nervo óptico. Esse rompimento desligaria os meus olhos do cérebro. Na prática, eu estava perdendo a visão.
Um terror para mim que, na época, era diretor de Redação da Revista Motor Show, viajava para todos os cantos do mundo avaliando carros e conhecendo novas tecnologias e, por pura paixão, participava de competições pelo Brasil sempre que surgiam oportunidades. Fiz três cirurgias nos olhos, mas a perda da visão foi inevitável. Apesar do susto dos primeiros meses, me adaptei a essa nova realidade. É a vida que segue!
Claro que dirigir, minha grande paixão, ficou fora de cogitação. Em vez de conduzir pessoas nos carros que dirigia, passei a ser conduzido. Mas, aos poucos, fui me adaptando a essa nova realidade e percebi que a avaliação de um carro não fica restrita aquilo que você vê, mas sim aquilo que você enxerga. Afinal de contas, enxergar engloba todos os outros sentidos, não apenas a visão.
Hoje, ouço mais apuradamente, minha sensação de conforto ou estabilidade são percebidas de maneira muito mais delicada. O toque no tecido de um banco ou de uma forração em couro é muito mais apurada quando passo minha mão sobre qualquer um deles. Antes, em uma simples olhada, julgava que já sabia se aquilo era bom ou ruim, mesmo sem tocar. Por isso, enxergar é um sentido muito mais completo do que simplesmente ver.
Há cerca de um ano e meio, uns bons e queridos amigos (Cláudio Larangeira, Ricardo Dílser, Eduardo Pincigher, Roberto Manzini e outros grandes companheiros de jornada) me fizeram uma grande e inesperada surpresa. Criaram uma história, ou melhor, jogaram uma isca que eu, um confesso apaixonado por Porsche 917, cai facilmente. Me disseram que um rico colecionador de carros havia comprado um 917 e que o modelo havia sido totalmente restaurado aqui no Brasil e naquele domingo andaria pela primeira vez em Interlagos.
Na realidade, essa história inventada tinha como único objetivo me atrair ao autódromo, não existia Porsche 917 algum. Fui convidado, entre outros motivos, para ver essa maravilha alemã em funcionamento e movimento. Mordi a isca direitinho. Naquele domingo acordei cedo e sai da cidade de Itu, onde moro, na companhia de outro grande jornalista da área, Ricardo Caruso. Nos dirigimos à sede do Centro de Pilotagem Roberto Manzini, de onde sairíamos para ver o tal Porsche.
Estranhei algumas coisas. Primeiro o grande número de pessoas que lá estavam e pensei comigo: Não sabia que toda essa gente admirava Porsche 917. Segundo que todas essas pessoas eram meus amigos. Mas, na empolgação de ver o 917, não me preocupei muito com essas coisas estranhas e lá fomos nós para o autódromo que fica defronte do centro de pilotagem.
Lá chegando estávamos no portão que dava diretamente na pista ao lado da linha de chegada. Vieram com um macacão, capacete, luvas que eu precisaria para andar no Porsche e pensei: Como, andar no Porsche? Não era só para ver? E quem é que vai pilotar? Eu não sou louco de andar com ninguém pilotando que não fosse eu mesmo…
Aquele mundaréu de amigos me diziam que antes do 917 eu daria umas voltas em um Palio de corrida para relembrar o circuito. Estranho…
Meu amigo e piloto Roberto Manzini, que dirige o centro de pilotagem que leva seu nome, assumiu o volante do Palio e eu ao seu lado devidamente paramentado. Saímos, demos uma volta mas, para mim, aquilo tudo era familiar: o barulho alto do motor, as freadas bruscas com reduções rápidas de marchas, curvas com força G acentuadas e o professor Manzini me dizendo onde eu estava em cada curva. Mas para quê?
Mesmo sem ver, eu sabia perfeitamente onde estava, enxergava o circuito onde quer que o professor estivesse andando, sabia os pontos onde deveria frear e quanto deveria ser o esterço do volante para contornar determinada curva. Paramos na linha de chegada e o professor Manzini propôs que trocássemos de lugar. Eu assumiria o comando do carro. Achei a proposta estranha e me neguei a aceitar no início. Depois de tanta insistência, resolvi topar o desafio. Pois é nesse ponto que eu queria chegar. Não dirigia há, pelo menos, uns quatro anos; na pista, muito mais que isso.
Sentado no posto do motorista, com o Manzini ao meu lado, estava preso ao cinto de quatro pontos, com capacete e luvas, parti para minha primeira volta sem ver, mas enxergando tudo. Manzini, com sua experiência no centro de pilotagem, me dava as instruções. Como parti com o carro praticamente da linha de largada, a primeira curva era o S do Senna. Mas, interessante: a partir do instante que o carro foi colocado em movimento, os outros sentidos assumiram e nem eu sabia que conhecia tão bem o autódromo de Interlagos.
Mesmo sem ver, enxergava cada metro por onde passava e por mais que o mestre Manzini tentasse me situar na pista, eu sempre dizia:” Sei cada metro onde estou”. Por tantos anos participando de competições em Interlagos, adquirimos uma familiaridade que torna automático o ato de pilotar. Impressionante!
Fiz uma volta completa, passei pela reta a mais de 160 km/h, perfeitamente relaxado e absolutamente consciente de tudo o que acontecia ao meu redor. Mesmo sem ver. Fui até o final da reta, pisei no freio e, simultaneamente reduzi as marchas como fiz centenas de vezes nas corridas que participei, inclusive na Mil Milhas que venci com um Passat em 1983 (em copilotagem com Alvino Pereira e Michael Walter).
Uma sensação deliciosa que me remeteu às competições que sempre foram minha grande paixão. Entenderam agora por que para enxergar não é preciso ver? Entenderam porque enxergar é algo muito mais grandioso do que simplesmente ver?
Claro, se você enxerga vendo, tudo fica ainda melhor, mas a visão não é fundamental para você enxergar.
DM