Primeiro, vamos desfazer a confusão. Não se trata de um R8, o esportivo-topo da Audi, acredito que único com motor traseiro. Ele é mesmo um coitadinho de um A3 duas-portas, ainda dos “chucrutes”, os primeiros importados da Alemanha para o Brasil em 1996, já como modelo 1997. Só que seu motor aspirado 1,8 20V, de 125 cv a 6.000 rpm, estava no porta-malas totalmente desmontado por um acidente do destino. A correia dentada que impulsiona os comandos de válvulas estourou, entortou válvulas. O motor travado foi transformado num amontoado de peças e jazia inerte no porta-malas.
A maneira que descobri este Audi não deixa de ser um alerta para os perigos da internet. Alguns meses atrás, eu ia viajar pela Via Dutra e resolvi procurar uma loja de peças para importados no Vale do Paraíba (São José dos Campos ou Taubaté, não me lembrava), para tentar achar algum componente. Não achei a loja na net, mas encontrei este Audi A3 no interior de São Paulo, numa cidade na beira da Dutra, cujo dono desistiu de recuperar o motor pelos custos envolvidos.
Como uma das minhas poucas frustrações sobre rodas era a de nunca ter tido um Audi, resolvi dar uma olhada no carrinho.
Aliás, este é um dos perigos da net. Além de vírus que comem seu computador ou pegam suas senhas, golpes de pirâmide financeira que limpam seu bolso e o risco de sua mulher te pegar num site pornô, você pode dar de cara com o inesperado e comprar um carro que nem estava procurando. Autoentusiasta tem riscos inimagináveis quando fica brincando no computador.
Comprar um carro assim, com o motor desmontado, envolve dois perigos. Primeiro, você não consegue avaliar o carro direito. Como ele não anda, não dá pra saber como estão câmbio, suspensão, freios, direção, parte elétrica. O próprio motor deu para se ter uma idéia do estado, já que as peças estavam lá no porta-malas, várias delas detonadas. Ou seja, só se avalia aparência, carroceria, originalidade, detalhes estéticos e coisas assim.
Segundo grande risco: será que as peças estão todas lá, empilhadas no porta-malas? Espalhei tudo pelo chão da garagem, conferi umas dez vezes, peguei o Renato, meu mecânico, pelo celular e ele ajudava a lembrar: “Bomba de óleo taí? Vê se o bloco não está trincado. O “vira” não levou pancada? Você viu alternador, motor de arranque, polias?”. A lista envolve centenas de componentes, de tamanho e preço bem variado, ainda mais num Audi cujas peças são normalmente caras. E eu sempre achava que faltava alguma peça importante para o carrinho voltar a rodar. E conferia tudo novamente antes de comprar o carro.
A vantagem deste Audi em particular é que o A3 começou a ser nacionalizado no Paraná a partir de 1999, tendo boa parte da mecânica em comum com o Golf, feito na mesma fábrica da Volkswagen em São José dos Pinhais. Ou seja, a oferta de peças, inclusive usadas, é maior.
Fucei na net para ver o custo de componentes e achei um dono de A3 desesperado, tentando recuperar um motor 1.8 igual ao “quase meu”, só que queria peças originais. Ele publicou o orçamento assustador: R$ 17,5 mil, praticamente o valor do carro. Por outro lado, por um motor usado em ferro-velho se pedia entre R$ 5 e 7 mil. Ter de comprar um outro motor e restaurar era a pior hipótese e custaria uns R$ 10 mil.
Vale parênteses para a história deste A3, contada pelo ex-dono. O carrinho estava praticamente vendido por R$ 14 mil e o quase-futuro proprietário resolveu dar uma última volta antes de assinar o cheque. Pararam numa esquina e o motor morreu. Deram partida muitas vezes e nada do motor acordar. E aí eles desprezaram o tradicional conselho de meu velho tio Samuel, hábil mecânico: “Quando um carro quebra, você pode até fazer cagada tentando arrumar. Mas, pare para pensar e não sente em cima.” Eles sentaram: soltaram o Audi ladeira abaixo dando trancos até o motor travar, já que a correia dentada tinha estourado. Um pistão atropelou as válvulas e lá se foi o cabeçote, pelo menos.
Prejuízo da “sentada”: uns R$ 10 mil. O ex-dono gastou R$ 2 mil para recuperar o cabeçote, mais de R$ 1.000 em peças novas (correia dentada, bomba d’água, jogo de juntas etc.) e acabou passando o Audi pela metade do preço “quase vendido” antes. Ele desistiu de recuperar o motor quando descobriu que tinha biela torta e era necessário fazer a retífica completa, recuperando também a “parte debaixo” do motorzinho, que é bem sofisticado tecnicamente.
Como todo entusiasta sempre sonha com uma Las Vegas automobilística, dando uma sorte incrível, claro que o trouxa que vos escreve encarou a parada. Afinal, este entulho sobre rodas de liga leve seria meu primeiro Audi. Apesar do “detalhe” do motor jogado no porta-malas, o carro era “liso de lata”, sem ter levado pancadas, com poucos e pequenos retoques na pintura original e tinha todos os detalhes originais de carroceria e interior. E, melhor ainda, se trata da versão-topo da época, com direito a vidros elétricos one-touch, ABS, airbags variados, teto solar, couro, alto-falantes Bose com subwoofer em caixa selada, rodas de liga 16″… tudo de série. Os alto-falantes de fábrica estavam praticamente isolados e faltava o rádio/toca-fitas Audi Concert, que bobamente tinha sido trocado por um toca-CD sem-vergonha com amplificador e alto-falantes no melhor estilo “Pracinha de Cucuia da Serra” na tampa do porta-malas, uma das maiores fontes de ruídos internos que conheço. O ex-dono quis ficar com os alto-falantes, o que até agradeci. Em compensação, me deu um aerofólio traseiro que precisava de um bom “tapa” antes da colocação e um monte de cacarecos, inclusive peças plásticas do interior que haviam caído. Ele parecia contente em se livrar da encrenca, apesar do preju. E eu (espero que alguém entenda) estava feliz por ter um novo desafio na forma de um caco velho de grife.
Do meio da Dutra, de madrugada e a mais de 250 km de Tatuí, o Alemão aleijado subiu num caminhão-prancha, direto para oficina do Renato. Fui à frente com o Daihatsu Charade carregando boa parte do motor e cacarecos variados do Audi.
Hora de escutar os amigos, sempre compreensivos: “Caramba, belo carro de cigano. Agora que acabaram os Opala baratos, os ciganos estão limpando os Audi velhos do mercado”. Outro: “Lindo sonho de pobre, depois de pronto vai ser fácil vender. O A3 é sonho de consumo de 11 entre 10 pobres. O duro vai ser aceitar uma Brasília podre e um canário mudo no rolo”.
Assim, incentivado por amigos legais, Renato e eu começamos a remontar o Alemão em UTI. O Renato aconselhou: “Vamos parar de esquentar a cabeça com as peças que podem faltar no motor. A gente só vai saber à medida que for montando o motor.
Comecei a caçar peças para recuperar a “parte de baixo” do motor, já que o cabeçote e suas temíveis 20 válvulas (cinco por cilindro) veio retificado e pronto no porta-malas. Os quatro pistões com anéis, por exemplo, cheguei a ver por quase R$ 3.000. Comprei um jogo de uma marca nacional desconhecida por R$ 400, obviamente chineses, mas sem o “made in China”. Bastante chiques, os pistões tinham até aquela fitas grafitadas nas saias para diminuir atrito.
Apesar do motor Audi 20V ser um projeto bem mais recente, algumas peças do VW AP são iguais. Caso das bronzinas: basta fazer um furinho nas bronzinas de bielas, pois o pino de pistão é lubrificado por um canal interno da biela. Retentores também são iguais do AP e o jogo de juntas foi doação do ex-dono, que de Alemão não queria ver nem pastor.
Um dos “chuveirinhos” (injetor de óleo no bloco, que joga lubrificante na parte inferior do pistão) havia se quebrado quando o pistão bateu nas válvulas e desceu demais com a biela torta. Hoje este recurso para melhor lubrificação e menor temperatura interna do motor é usado até nos VW 1,0. Comprei o “chuveirinho” numa autorizada VW por cerca de R$ 50, só pra ninguém falar que o Audi não ganhou alguma peça original. A pecinha veio gravada com as argolas da Audi e o símbolo da VW.
Também foi fácil repor a biela que havia entortado, usada claro, mas que tem preço elevado: os APzeiros adoram estas bielas Audi/Golf para turbinar seus motores. Outra dificuldade foi convencer o vendedor e comprar uma só: as quatro custam uns R$ 500, mas por uma só paguei R$200. Ninguém quer desfazer o jogo de bielas. O motor era standard, assim virabrequim e camisas foram para a primeira retífica, tudo feito no capricho.
Começou a montagem do motor e, quando examinamos as polias da correia dentada, todas estavam muito gastas e com poeira metálica. São três polias e uma delas já veio junto com a nova bomba d’água, outra doação do ex-dono. Sai caçando as outras duas, do virabrequim e comandos de válvulas. Na autorizada Audi, o preço era uma gracinha: mais de R$ 1.000 cada. Acabei achando numa loja só de motores, no Brás, em São Paulo. A engrenagem pequena, do “vira”, original com as argolinhas da Audi, custou pouco mais de R$ 100. A grande, dos comandos, o cara jurava que tinha uma, mas não achava. Procurou no computador e depois no berro: “Algum filho da p*** pegou uma polia do Audi 20-válvulas?”. Sim, um dos filhos, digo, funcionários estava usando a bendita polia — novinha, alemã e original — como peso de papel na escrivaninha.
Minha proposta foi trocar por uma pedra, que faria a mesma função de peso de papel, mas ele me cobrou uns R$ 300.
Na hora de montar, a correia dentada não entrava. Desconfiamos do esticador da correia e, não deu outra: era maior e do mesmo motor, só que o 1,8 usado no Audi A4, que pede uma correia dentada com um ou dois dentes a mais.
Finalmente matamos a charada que custou R$ 10 mil para o ex-dono. Ele jurou que tinha trocado correia e esticador pouco tempo antes da correia estourar. Era verdade. Só que o mecânico colocou o esticador do A4 com diâmetro maior e forçou a entrada da correia: isto “comeu” a própria correia e as engrenagens rapidamente.
De novo sai caçando um esticador do A3 e escutei a mesma bobagem em várias lojas: “Tenho a do A4, que dá pra montar”. Não dá, a correia fica com excesso de tensão e ferra tudo. Como só achei o do A3 usado, modificamos o suporte do esticador do A4 para diminuir a tensão da correia. Outra solução seria colocar a correia dentada maior, do A4.
Nessa altura, só faltava levar escova de dente e colchão para a oficina do Renato. Estávamos ansiosos para terminar o quebra-cabeça (montar um motor que outro desmontou é sempre mais complicado) e ver o Alemão velho roncar de novo. Chegaram as mangueiras (de ar e respiros de óleo) compradas pelo eBay americano (cerca de US$ 80). Por aqui, iriam mais de R$ 1.000. Todos os agregados do motor também foram trocados ou revisados: injetores, fios e velas, sensores, filtros, escovas do motor de arranque, coberturas plásticas do motor, bateria….
A idéia sempre é fazer um carro que se possa viajar sem levar nem uma chave de fenda, totalmente confiável.
Por incrível que pareça, todas as peças do motor desmontado realmente estavam no porta-malas, faltou apenas meia dúzia de porcas. Até todos os parafusos estavam lá.
O Alemãozinho roncou suave na primeira partida. Funcionou uns 30 minutos parado, até ligar a ventoinha do radiador. Apareceu um vazamento de óleo na tampa de válvulas, que foi logo sanado. Na primeira volta, o Audi se revelou um carro gostoso, com a tradicional carroceria de alemão de luxo: sem torções.
Em compensação, chacoalhava como um barco de pescadores bêbados.
A primeira marcha arranhava. Voltou para o elevador.
O câmbio manual de cinco marchas foi fácil de reparar: lubrificamos e regulamos os cabos que ligam a alavanca e o trambulador. O óleo sintético foi trocado e colocamos o milagroso aditivo a base de molibdênio: em pouco mais de 500 km a primeira marcha parou de arranhar no engate.
Suspensão e freios deram mais trabalho: amortecedores e buchas, pastilhas de freio, guarda-pó e graxa das homocinéticas e rolamentos de rodas, molas traseiras…. mais uma semana de trabalho para compensar toda a manutenção atrasada por mais de 100 mil km.
Finalmente foi para a minha garagem: até a luz de cortesia, que mantém as luzes internas acesas por mais um minuto, funcionava. Olhava pra cara do A3 e ele parecia sorrir. Como já disse aqui: carro velho e vira-lata são agradecidos e fiéis a quem cuida bem deles.
Motor amaciando e ronronando, depois dos 1.000 km rodados começou a fazer mais de 10 km/litro cruzando já um pouco mais rápido, em torno dos 130 km/h. Em compensação, a escola de samba das forrações internas sobrou para os finais de semana do Tio. Mandei trocar o couro dos bancos dianteiros, já bem malhados, além de pintar e restaurar o aerofólio traseiro. O banco traseiro estava novo, já que não cabe ninguém. Até minhas netas, com menos de 10 anos, reclamam da falta de espaço.
Gastei vários finais de semanas e o pouco tempo livre (estou cheio de viagens e trabalho, daí minha pouca presença no novo site do AUTOentusiastas) recuperando a parte estética e, principalmente, o interior do velho A3. Absolutamente todas as forrações (de portas e traseiro, porta-malas, painel, laterais…) estavam soltas ou mal montadas. Usei a caixa de cacarecos plásticos que o ex-dono me deu, colas variadas, grampos, presilhas, suportes, tire-up (enforca-gato), parafusos especiais guardados para uma ocasião idem… toda minha longa experiência de “engenharia experimental” e RTI (Recurso Técnico Improvisado, quebra-galho, capando o gato…).
Troquei o pomo da alavanca de câmbio (igual ao do Golf e Bora), pois é um horror trocar marchas numa manopla toda ferrada, soltando pedaços. Isto dá uma sensação de dirigir um carro velho. O que certamente o Audi é. Só que agora não se tem essa sensação ao volante nas ruas e estradas. Ficou sem folgas ou barulhos, cruza tranqüilo e silencioso a 130/140 km/h com o motor em torno das 4.000 rpm (o torque máximo, de 17,6 m·kgf, está exatamente aí, nas 4.100 rpm). E não se esqueça que esse motor é um exagero de multi-válvulas (cinco por cilindro, três de admissão e duas de escapamento), feito para render mais em alta rotação e ser econômico, mesmo num carro que pesa 1.233 kg. Por isso o câmbio tem relações mais curtas (100km/h a 3.000 rpm) perfeitas para o motor. O volante do motor é o “rei dos peso-pesados” (o Renato pesou, mais de 12 kg), feito exatamente para guardar energia cinética e manter velocidade em subidas. Vai rápido mantendo a velocidade de cruzeiro escolhida na estrada e não se usa a quarta marcha. Em compensação, os 100 km/h demoram 12 segundos.
Mesmo assim, é um prazer ao dirigir, bem germânico, o que já comprovei por mais de 2.500 km rodados. Até os pistões chineses parecem felizes e acham que falam alemão e queimam cerveja.
Faltava a cereja do bolo: o rádio Audi Concert original. Achei na internet, a propósito em São Paulo. Não dá pra “mandar pelo correio”: quando chega geralmente não funciona. Fui pessoalmente buscar, testei, voltei toda a fiação do carro para os padrões originais, para usar o sistema Bose de alto-falantes. O rádio falou bem, com sonoridade de luxo do agudo ao grave. Não é “som” para dar show de volume, de pancadão, tocando música vagabunda em posto de gasolina com o porta-malas aberto.
Ah! O som Audi é só rádio/toca-fitas e as fitas nem existem mais? A solução custa uns R$20. Compre, de novo pela internet, um aparelhinho que você espeta no acendedor de cigarros, sintoniza numa freqüência sem uso do rádio, coloca seu pen drive (MP3 ou cartão SD) com sua seleção favorita de músicas (no meu caso rock e baladas dos anos 1960/70, quando ainda se fazia música). A trilha sonora fica perfeita num “carro de pobre”, que agora voltou a chegar aos 198 km/h, gosta de curvas e tem “pisada” de alemão sofisticado.
Ou você consegue coisa melhor, com motor novo amaciando, por uns R$ 15 mil?
JS
Fotos: autor