Nos anos 80, os automóveis nacionais eram uma piada em termos de modernidade. Claro que lembramos com nostalgia daquela época e não há dúvida que havia algumas beldades cheias de personalidade, o que falta a muito carro de hoje. Mas o Brasil tinha um atraso tecnológico de dar dó. Era regra lançar novas versões de projetos já aposentados no seu país de origem (Chevrolet Opala), vender modelos que na essência eram os mesmos por mais de três décadas (VW Kombi) e não oferecer equipamentos nem como opcionais que eram praticamente itens de série na Europa (injeção eletrônica).
Nos últimos 15 anos, assistimos maravilhados a uma tremenda evolução técnica dessa indústria (também verdade que os preços acompanharam essa melhoria). Hoje temos lançamentos que estão alinhados com o que há de melhor no exterior. Chegamos ao estágio de ter, quem diria, modelos apresentados no Brasil antes de qualquer lugar do mundo (Jeep Compass) e até projetados por brasileiros para vender também lá fora (VW Nivus).
Se tudo isso enche você de orgulho quando olha para trás, prepare-se agora para perder um pouco desse sorriso. A crise mundial provocada pelo coronavírus vai fazer o Brasil voltar algumas casinhas no jogo da globalização tecnológica. As primeiras vítimas dessa guerra viral já começaram a aparecer no campo de batalha. E não foram poucas.
Gol bate na trave
O presidente da Volkswagen na América Latina, Pablo Di Si, admitiu numa entrevista para o portal Automotive Business que o projeto do futuro Gol foi para a geladeira. Oficialmente ele foi adiado, mas internamente não se sabe quando deve ser retomado. A decisão foi necessária para a reduzir o prejuízo dos meses sem vendas e das perdas que virão até o fim do ano com a retração do mercado.
“Em três ou quatro meses vamos gastar um valor similar de um plano de investimento de três ou quatro anos”, explicou Di Si. O projeto chamado internamente de A00 seria produzido em Taubaté, SP e daria origem ao novo Gol entre 2021 e 2022 e a um suve menor que o Nivus.
Outro hatch compacto que também subiu no telhado foi a nova geração do Fiat Uno. Previsto para ser lançado em 2021, ele ganharia muito em tecnologia: mais seguro, mais leve e com motores mais eficientes. Até que o presidente da FCA América Latina, Antonio Filosa, admitiu em uma entrevista recente: “Os produtos que estavam previstos para 2021 e 2022 precisaram ser revistos em um ano”.
Esse adiamento ainda pode se tornar um cancelamento, dependendo do que ocorrer na Europa, já que o sucessor do Uno deveria usar a mesma base do futuro Panda italiano. Para piorar, ao contrário do Gol, que mesmo envelhecido é o quinto automóvel mais vendido do país (20.919 unidades no acumulado do ano até maio), o Uno não pode esperar muito. Hoje ele é o 35º do ranking com apenas 4.454 unidades. Como dissemos na coluna anterior, a Fiat precisa decidir logo o que fará com ele e com sua estratégia no segmento de entrada, pois nem somando suas vendas com as do Fiat Mobi (12º do ranking e 14.446 veículos), os dois são páreo para o Gol.
E não foi só o Uno, que sofreu nessa história. Os Jeep Compass e Renegade híbridos e o Fiat 500 elétrico, antes confirmados para este ano, também foram empurrados para o ano que vem, como explicou Filosa na entrevista. Só para lembrar: estes três modelos eletrificados são importados. Portanto, além das incertezas de um mercado abalado pelo medo da contaminação e da perda de empregos dos compradores, ainda temos o ônus da alta do dólar, que transforma em fumaça qualquer plano de médio e longo prazo que envolva importar carros de países com moeda forte.
Foi essa volatilidade da moeda que minou os planos da picape Ram 1500 (foto de abertura), que disputaria o segmento acima de Toyota Hilux e Chevrolet S10. Antes garantida para a Festa do Peão de Barretos, SP, em agosto, a picape americana teve sua estreia suspensa apesar do enorme sucesso de público: lojas do Mato Grosso do Sul e do Paraná já contabilizam mais de 100 encomendas, como adiantou o site da Quatro Rodas. Faz sentido essa interrupção. Se antes a Ram 1500 seria vendida em torno dos R$ 240.000, com a chance de o dólar bater os R$ 6, ela não chegaria por menos de R$ 300.000
Atraso que vira bola de neve
É bom deixar claro que essa crise não afeta só ao Brasil. Outros mercados já começaram a ter seus cancelamentos/adiamentos. Para nós, porém, a consequência é pior porque é um efeito dominó.
Se um novo projeto demora a estrear nos mercados de origem, ele também demora para desembarcar por aqui. Enquanto isso, esse fabricante vai mantendo na loja seus carros e suas tecnologias um pouco mais defasadas. E o rival desse fabricante, por sua vez, percebe que também não precisa correr para atualizar seus produtos e vai atrasando investimentos em um novo projeto, até para recompor o caixa que foi perdido em tempos de pandemia. E começa aí um terrível círculo vicioso.
Do lado do consumidor, ele deixa de pressionar as marcas para oferecerem novos produtos e tecnologias. Seja porque o poder de compra dele diminuiu na crise, seja porque os modelos atuais ficaram mais caros mesmo sem renovação na linha. Afinal, o preços tiveram que subir pela necessidade da empresa de recompor o caixa ou pela alto do dólar, que impacta os diversos componentes importados que estão presentes em quase todos os carros nacionais.
Assim, só nos resta torcer para que o Brasil não volte aos sombrios anos 80, onde os automóveis nacionais estavam sempre um passo atrás (ou mais) em relação a Europa e EUA.
ZC
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